quinta-feira, 17 de março de 2011

Ética na imprensa - questão 5

Tenho uma questão sobre os pontos que foram levantados em aula na ESPM.
Na diferenciação de ética de valores/princípios e ética de responsabilidade/resultados, lembrei sobre o que disse de o jornal levar em conta as consequências na hora de publicar uma notícia (exemplos do casarão da Paulista e também de acusações recentes sobre obras literárias distribuídas a alunos da rede pública com palavrões, sem levar em conta o caráter pedagógico da leitura). Lembrei ainda sobre a expressão "legado positivo da corrupção", usada em aula para repensar a oposição implícita nas denúncias políticas de que a corrupção se contrapõe ao desenvolvimento.

Diante desse filtro proposto, como balizá-lo objetivamente, já que esse filtro é subjetivo ?
Como o jornalista justificaria dar uma notícia sobre corrupção de determinado político e não dar de outro, analisando caso a caso?

Acho válida a reflexão, mas de que instrumentos éticos o jornalista dispõe, ou poderia dispor, para sair do "tem que dar porrada em todo mundo para se manter neutro", sem medir consequências? Esse procedimento corrente, na minha visão, pode até levar a um efeito social ruim, de descrença no mundo como um todo ou na virtude
Enviada por Fabio Mazzitelli

Ética na imprensa - questão 4

Uma pessoa, tendo um ente querido na fila, pode tentar de alguma forma obter alguma vantagem, a fim de reduzir a espera, sem levar em consideração a necessidade das outras pessoas que também aguardam? Apenas a tentativa já se caracteriza como falha ética? Existem leis e normas que regulamentam a ordem dos transplantes. Tentar burlar essas normas, é um caso clássico de desobediência civil? Aceita-se uma possível punição, desde que o familiar esteja curado/transplantado.

Enviada por Douglas Prieto

Ética na imprensa - questão 3

Partindo da estória do filme Sob fogo Cerrado - de 1983 - com Nick Nolte e Gene Hackman.
Um país da America Central enfrenta os últimos momentos de uma guerra civil contra um ditador tirano que subjugou o povo durante anos. A batalha está quase ganha. Nosso repórter acompanhou tudo e é simpatizante do povo. Mas ele descobre que o grande líder da oposição, que inspirou o povo a lutar, foi morto acidentalmente apenas algumas horas antes da batalha final - e isso pode significar a retomada do poder pelo ditador.
Por outro lado essa é a grande, e talvez única, chance do maior furo da carreira do nosso repórter. Ele está entre a função do jornalista e sua consciência. O que fazer ?
Enviada por Cynthia Regina Ferrari

Ética na imprensa - questão 2

"Questão bem prática", focada no papel de um diretor de uma redação. A questão seria a seguinte: vc tem que demitir uma pessoa de sua equipe para cortar gastos e tem duas possibilidades. Uma delas é uma pessoa muito competente, recém casada, cujo marido é um pequeno empresário. A outra pessoa também é competente mas de convivência difícil no dia a dia, também casada, com uma filha pequena e um marido vivendo de bicos. Essa seria uma questão ética a ser discutida ?
Enviada por Cynthia Regina Ferrari

Ética na imprensa - questão 1

Esta história está documentada por aí, sei que é verídica, mas agora não tenho tempo de buscar fontes que a corroborem.
O então ministro da Justiça Petrônio Portela recebe repórteres em seu gabinete para conversar sobre a lei da Anistia, então em gestação. O repórter fotográfico Orlando Brito percebe que o texto da lei (ou o anteprojeto, que seja) está sobre a mesa do ministro. Enquanto os repórteres conversam com Portela, sentado nos sofás da sala, Brito captura o documento, disfarça, sai do gabinete, fotografa as tantas folhas de papel, volta e recoloca o documento no mesmo lugar de onde tirou. O jornal era O Globo, que deu um baita furo no dia seguinte. O fotógrafo, digamos, "roubou" um documento, invadiu a privacidade do ministro. Mas se tratava da anistia, um tema de inegável interesse público. É eticamente justificada a atitude do repórter fotográfico?
Enviada por Luiz Egypto.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Série sobre a ética

Os artigos que se seguem foram publicados no extinto AOL, do qual eu era colunista semanal, em 2004. Estão sendo disponibilizados para serem lidos na ordem em que estão. Normalmente, nos blogs, o mais antigo aparece por último. Mas, para facilitar a leitura, aqui o primeiro artigo que publiquei aparece em primeiro, e aí por diante.
Boa leitura!

Sobre o aborto

Renato Janine Ribeiro

Nosso tempo tem suas questões éticas características. Uma delas é o aborto. A lei brasileira o proíbe, exceto em poucos casos. É praticado em enorme escala no território nacional, em condições de saúde precárias e sujeitando muitas mulheres a chantagem ou pressão por parte da polícia.

Por isso, uma reivindicação importante do movimento feminista é pelo fim da punição penal a quem pratica aborto. Mas a questão é complexa. Os inimigos do aborto alegam que se põe fim a uma vida, e que portanto abortar é uma forma de matar. Daí que haja toda uma discussão sobre a questão de quando começa a vida, ou pelo menos a vida que merece ser chamada humana e protegida pela sociedade e pelo Estado.

Penso, porém, que esse debate, ainda que importante, mascara outro, mais profundo, menos evidente. Para isso, preciso remeter a minha experiência pessoal, quando fui estudar na França, na época em que estava sendo discutida a liberação do aborto naquele país. Isto se deu nos anos 70.

As paixões estavam exaltadas. E os jornais veiculavam posições pró e contra a descriminação do aborto. (Evito usar o termo “pró” e “contra” o aborto, porque não sei se alguém é “a favor” do aborto; o máximo que os defensores da liberdade de abortar pretendem é que esse ato deixe de ser crime; não conheço ninguém que defenda o aborto como ideal, como método, como prática).

Vindo de um país como o Brasil da ditadura, no qual o debate público sobre qualquer assunto era barrado, eu não era a favor do aborto. Pensava, como ainda penso, que a maior parte dos abortos decorre de uma pobre educação sexual. Se for fácil o acesso a métodos anticoncepcionais e os jovens tiverem bom conhecimento de como evitar a gravidez, o aborto se tornará quase desnecessário. A gravidez indesejada decairá em número e o recurso ao aborto será apenas excepcional.

Ora, fiquei espantado de não ler, nunca mesmo, este argumento nos jornais. Melhor dizendo, nunca vi ninguém, dentre os contrários ao aborto, falar algo parecido com isso, em meses de fóruns na imprensa. O normal, na argumentação contra o aborto, era – além de se falar em assassinato etc. – acrescentar: “teve prazer, agora pague pelo que fez”; “não pensou na hora, pense agora”; e por aí adiante.

Em outras palavras, quem era contra o aborto acabava sendo contra a sexualidade.

Para essa argumentação, é claro que nem a educação sexual nem métodos contraceptivos são bons. Esses recursos permitem o sexo sem seus efeitos colaterais, como a gravidez não desejada, a doença venérea, a AIDS. Eles fazem a sexualidade ser vivida como algo positivo, reduzindo seus riscos. Por isso, quem é contra a prática do sexo vê a gravidez como o castigo dele, como um sofrimento merecido – e por isso será contra tudo o que elimine essas penas.

Talvez os mais jovens não tenham consciência da revolução que foi a pílula, há menos de meio século. Ela permitiu, numa escala inédita, separar o sexo do seu ônus, que era a gravidez – ou a doença venérea; se pensarmos na sífilis, basta lembrar que no começo do século XX seu tratamento era muito sofrido e sem garantia de cura. Hoje, o espectro da AIDS assusta, mas mesmo assim a mudança foi enorme.

E no entanto convém, quando discutimos o aborto, pensar o que está em jogo. Volto a meu contato com a discussão francesa dos anos 70: os únicos preocupados em melhorar a educação sexual e em disponibilizar pílulas e preservativos eram, justamente, os defensores do direito de abortar. Pode soar paradoxal, mas somente eles contribuíam para reduzir o número de abortos – e isso porque o único meio de diminuir a interrupção voluntária da gravidez é evitar que essa última ocorra, e apenas se consegue isso com uma boa educação sobre o sexo.

Paro por aqui. Voltarei ao assunto. Ele tem outros aspectos, como a discussão sobre a vida e a morte, opondo o direito do feto a viver e o da mulher a decidir sua gravidez. Como em todas as questões éticas, não é fácil ser irrestritamente a favor de um lado. Mas quis começar apontando motivações inconscientes ou ocultas, que compareciam na discussão francesa e me parecem estar presentes também no Brasil.

Eu, que apóio a descriminação do aborto como um mal menor, tenho pleno respeito por quem se opõe ao direito de abortar, mas somente quando está realmente defendendo o feto e não quando o que quer é punir quem vive sua sexualidade e especialmente as mulheres, negando-lhes uma educação sexual ampla e aberta ou o acesso fácil a métodos anticoncepcionais bons e seguros. Mas retornarei ao tema.

O aborto como mal menor

Renato Janine Ribeiro

Disse na semana passada que não podemos discutir o aborto sem pensar nos contraceptivos, e que infelizmente uma parte dos que se opõem ao aborto o faz querendo punir a mulher que teve sexo por prazer. Considero ilegítima essa posição. Uma coisa é condenar o aborto em nome do direito do feto à vida, outra coisa é, mesmo dizendo isso, na verdade querer castigar quem saiu da velha moral convencional.

Mas isso não quer dizer que os argumentos em favor do direito de abortar sejam todos eles bons. Penso que o aborto é um mal menor. Evita talvez resultados piores, mas não deixa de ser um mal. Se na semana passada eu defendi o direito de abortar, agora quero mostrar os problemas que ele coloca.

Antes de mais nada: o direito de abortar só tem sentido para evitar situações pessoais ou sociais mais graves. Ele não passa de um paliativo, em sociedades nas quais a educação sexual é incipiente. Não deve ser um método sistemático para o homem ou a mulher controlar o número de filhos que deseja. Seu sentido é o da exceção, não o da regra.

Por isso mesmo, liberar o aborto exige que se adotem medidas reduzindo ao mínimo o recurso a ele. Precisa haver uma educação sexual de qualidade, que respeite o direito de cada pessoa a escolher, não só o número de filhos que pretende criar, mas também a vida sexual de seu agrado, sem filho nenhum ou com poucos.

E esse é o problema da Igreja Católica, na sua oposição tanto ao aborto quanto a uma educação sexual efetiva: ela acredita sinceramente (penso eu) que a solução não está aí. Todo ano, vemos isso no carnaval: o governo e as entidades de saúde, admitindo que vai haver muito sexo entre desconhecidos, procuram evitar que isso resulte em maior número de gravidezes indesejadas, em transmissão de doenças venéreas.

Mas a Igreja acha que essas precauções, em vez de diminuírem o problema, só fazem aumentá-lo. Elas incentivam a promiscuidade, com relacionamentos sem profundidade, entende a Igreja. Portanto, conclui ela, se tornarmos o sexo informal mais fácil e menos arriscado, estaremos incentivando o que já é um mal. Agravaremos o problema, em vez de reduzi-lo.

Não acho esse argumento desprezível. Na verdade, ele tem uma certa razão ao apontar, justamente, que as relações humanas – e inclusive as sexuais – se tornaram descartáveis. Cada vez mais, as pessoas se livram das outras, sem lhes dar qualquer satisfação, até por e-mail, até pela Internet.

Isso não significa, porém, que antes as coisas fossem melhores. Até algumas décadas atrás, o sexo só ocorria após muitas preliminares, e geralmente dentro de um casamento; mas disso decorria muita infelicidade, tamanha era a culpa associada a ele.

Portanto, o erro da Igreja está, mesmo agindo de boa fé, em esperar uma castidade que não existe mais em nosso tempo, como regra. Diminuiu a culpa associada ao sexo, o que é positivo; e diminuiu a responsabilidade ligada ao sexo, o que é negativo; mas tudo isso é fato. Daí que devamos lidar com a realidade e tentar que ela seja a melhor possível. Ora, o que isso acarreta?

Antes de mais nada, que a educação sexual é o nó da questão. É preciso que todos saibam, cedo, quais os cuidados a tomar com sua sexualidade. Não há outro meio de evitar a gravidez indesejada ou as doenças venéreas, isto é, antes de mais nada a Aids, já que as outras – a começar pela sífilis, que massacrava populações inteiras há menos de um século – estão dominadas já faz algum tempo.

Essa é a discussão principal. Sim, há outros debates em torno do aborto. Para defendê-lo, há o argumento de que a mulher é dona de seu corpo e faz com ele o que quer. Não é um bom argumento: nenhum direito de propriedade autoriza uma pessoa a fazer o que quiser.

Há também a tese de que o embrião não tem vida própria mas depende da mãe, e portanto abortar não seria um ato contra uma vida independente. Ora, o mundo em que vivemos é feito de relações, e é freqüente uma pessoa depender de outra para muitas coisas, até mesmo (no caso das crianças pequenas, dos doentes e dos velhos já sem energia) para viver. Nem por isso, essas pessoas perdem o direito à vida. Nem por isso, quem cuida do outro tem o direito de tirar-lhe a vida.

Fiz questão de criticar, ainda que sumariamente, dois argumentos utilizados na defesa do aborto para enfatizar o ponto principal: como disse na semana passada, não conheço pessoas que sejam “a favor do aborto”. Conheço, sim, gente que defende o direito de abortar. Mas elas também defendem cuidados com as crianças, uma educação sexual de qualidade – em suma, não são “contra a vida”. Se tem sentido suprimir a maior parte das proibições relativas ao aborto, é apenas como um mal menor.

Isso significa reconhecer que abortar não é algo positivo, não é um método de controle constante de natalidade – mas também significa reconhecer que proibi-lo causa mais problemas do que os resolve. E concluo enfatizando dois deles.

O primeiro problema é que a proibição do aborto, historicamente, veio junto com a repressão à sexualidade. A solução está, portanto, não em barrar o aborto, mas em educar para o sexo seguro e responsável. A discussão essencial não é sobre o aborto, mas sobre a sexualidade.

Não é um debate fácil. Soa bonito, quando sentimos que se trata de liberar “nossa” sexualidade. Mas basta um de nós se sentir traído, sexualmente, pela pessoa amada, para tudo isso se tingir de horror (ver coluna Amar sem ser amado). Contudo, é uma discussão necessária, porque aqui lidamos com a realidade do desejo.

E o segundo problema é apenas realista. Toda sociedade renuncia a punir certos atos que ela mesma não admira. Há várias razões para essa renúncia. Pode ser porque não há mais um consenso forte sobre o que é certo e o que é errado. Mas pode ser também porque certas proibições facilitam a chantagem. O aborto ilegal fez florescerem clínicas clandestinas, achaques policiais. Se o Estado desistir de proibir o aborto nos primeiros meses de gestação (porque só neles ele tem sentido), baixará a corrupção na polícia. Isso é positivo.

Com estas duas colunas sobre o aborto, portanto, não quis só discutir esse fenômeno que hoje desafia o direito: quis também começar uma discussão sobre a ética. As questões éticas não são apenas perguntas sobre o certo e o errado. Essas idéias mudam conforme o tempo e o meio social. Numa sociedade democrática, não há nem deve haver acordo sobre todas elas.

O que precisamos é saber quais são os princípios mínimos sobre os quais há acordo. Não toleramos o assassínio nem o roubo. Mas o aborto foi deixando de ser considerado questão de assassinato. Assim saiu da esfera pública e foi passando para a privada. Nem todos concordam com isso, porém. Muitos continuam achando que abortar é assassinar.

Porém, para concluir com uma proposta positiva, enfatizarei dois pontos. O primeiro é que o único modo de evitar um enorme número de abortos é investindo na prevenção, isto é, na educação sexual. E o segundo é reconhecer que proibir o aborto causa mais problemas do que resolve. Repito, não se aborta porque se gosta disso. Não há movimentos “a favor do aborto”. A questão não é essa, mas ter uma relação mais feliz com o corpo, com a vida. Paradoxalmente, a única maneira de reduzir o número de abortos é reconhecer, dentro de limites razoáveis e legais, um direito a ele.

Desafios para a ética

Renato Janine Ribeiro

Nas duas últimas colunas, tratei do aborto, que é uma das grandes questões éticas de nosso tempo. Agora quero tratar da própria ética e de seus problemas nos dias que correm.

A ética (ou moral – usarei os termos como quase sinônimos) vive um grande desafio desde o século 19. Ela lida, como sempre lidou, com uma distinção entre condutas que aprovamos e desaprovamos, entre o certo e o errado. Contudo, alguns autores mudaram isso completamente. Vou lembrar Marx, na segunda metade do século 19, e Freud, na primeira metade do século 20.

As questões éticas são questões de consciência. Falamos na consciência moral de uma pessoa. Ora, Marx e Freud mostram que a consciência que temos, das coisas que fazemos, é bastante limitada.

Marx fala nos aristocratas franceses que se comovem a fundo pelas dores de princesas exiladas; mas, acrescenta ele, na hora decisiva, o que conta para eles é a renda agrária. Ou seja, há uma dimensão belíssima em que as pessoas vivem dramas de consciência, mas por trás disso tudo há interesses bastante chãos, terra-a-terra, que são os econômicos.

Assim como Marx destaca a economia, Freud mostra a importância do sexo por trás de nossas decisões. Vivemos dramas, sofremos, acusamos, defendemos; mas, abaixo disso, sem que tenhamos consciência, pulsa o inconsciente. Não espanta, então, que tanta condenação moral se dirija aos atos sexuais.

Termos como economia, sexo, inconsciente sofrem alterações ao longo dos tempos e não importa aqui a exatidão deles. O que conta é que, para Marx e Freud, a consciência é uma dimensão bastante limitada do que vivemos. Há algo mais forte que ela, que poderá estar nas relações de produção (ou na economia), para Marx, ou na vida sexual, para Freud, mas que em todos os casos escapa à consciência de quem age.

E isso coloca a ética, não em xeque, mas em questão. Como tratar de questões de consciência, se a consciência é um aspecto limitado, superficial, de nosso ser? O risco de nos enganarmos se torna enorme. Mesmo quem conhece pouco da psicanálise sabe o que é a “projeção”, isto é, o projetar no outro aquilo que na verdade é nosso: isso quer dizer que muitos dos juízos mais severos sobre a conduta alheia apenas expressam algo de nossa psique. Por exemplo, acusamos o outro de fazer exatamente o que fazemos nós mesmos.

Esse vai ser o grande problema da ética desde o século 19, crescendo cada vez mais ao longo do século 20 e do atual. Como saber se nossos julgamentos são válidos – ou só a tradução de preconceitos muito pessoais? Por isso, perguntei nas últimas colunas se a oposição ao direito de abortar (que pode incluir argumentos de certa qualidade) não ocultaria um desejo de punir as mulheres que vivem sua sexualidade. Perguntas desse tipo se tornaram necessárias, hoje, quando se enuncia algo na ética.

Ou talvez eu pudesse começar de outro ponto. A ética passa por uma revolução no século 18, em especial com Kant. O filósofo alemão enfrenta uma questão decisiva. Até sua época, a ética estava subordinada à crença em Deus e à religião. Chamava-se de “ateu” não só quem não acreditasse em Deus, mas também quem recusasse a crença no inferno, isto é, num severo castigo a quem pecasse.

Pensava-se, pelo menos no mundo cristão, que sem inferno não haveria moralidade. As pessoas seriam éticas na medida em que acreditassem, não só em Deus, mas na punição eterna pelo pecado. Sem medo, não haveria ética.

Kant levanta a questão de uma ética que não precisa de um Deus punitivo para enunciá-la. Seus preceitos podem ser encontrados pelo homem. Resumidamente, ele diz que, toda vez que eu ajo, estou proclamando que meus atos têm a validade de uma regra universal. Isso é brilhante. Rompe com a separação entre o que eu faço e o que eu digo – porque, quando faço algo, implicitamente declaro que essa ação é a correta, para todos. Cada ação minha é uma escolha ética para toda a humanidade.

Por exemplo, se respeito o sinal de trânsito, estou declarando que sempre devemos parar na luz vermelha. Inversamente, se furo o sinal vermelho, proclamo (implicitamente) que todos têm o direito de passar com a luz fechada – e portanto autorizo os outros carros a baterem no meu. Se não pago o que devo, autorizo todos (inclusive os meus devedores) a não pagarem as dívidas. Essa é talvez a melhor base para uma ética de sustentação humana, sem precisar de Deus para decretá-la ou para punir quem a viole.

A ética assim fica humana. Ninguém mais pode ter a certeza de falar em nome de Deus, ou dizer de cima para baixo o que é certo ou errado. Mas Marx e Freud trazem um problema a esse quadro. Eles põem sob suspeita minhas motivações ou razões para enunciar juízos morais. Não terei mais segurança de ser honesto, porque quando emito algum julgamento posso estar apenas dando saída a preconceitos de classe ou de sexo, a interesses econômicos, a ódios pessoais. As certezas morais ficarão fracas.

Posso decretar normas universais, mas quem garante que elas sejam, mesmo, universais? Por exemplo, se insisto num direito absoluto de propriedade, posso estar discriminando os sem-terra, os não proprietários, os pobres em geral. Sabemos que o sistema penal pune mais os crimes contra a propriedade do que os crimes contra a vida.

Às vezes, para salvar a vida, alguém ataca a propriedade alheia. Como fica isso, eticamente? Condenar o furto por necessidade pode ser um preconceito de classe social, mais do que um sólido e autêntico princípio ético.

Isso não quer dizer que a ética tenha perdido o sentido, hoje. Ao contrário: é justamente porque não tenho certeza absoluta que a pergunta ética se torna mais importante do que nunca. Não é mais lícito uma pessoa pontificar do alto de uma posição de dono da verdade: cada um precisa, hoje, ser capaz de duvidar de si próprio. E para tanto posso concluir tentando uma diferença entre moral e ética.

Distinguem-se duas posições em matéria moral. Uma tem por critério os costumes da maioria. Costumes, em latim, é “mores”. Por isso, a palavra “moral” pode se referir aos costumes ou modos que o grupo considera os melhores. Também por isso, muitos acham que a moral alude aos costumes que a sociedade valoriza. Por sua vez, a palavra “ethos”, em grego, designa “caráter”. Daí, muitos entendem que a ética remete a escolhas morais que cada um realiza, em seu caráter, independentemente da opinião da maioria.

A moral seria a do grupo (da “manada”, dirão os críticos), enquanto a ética seria da pessoa, do indivíduo que pensa por si próprio. Mas é importante lembrar que a filosofia tem dois mil e quinhentos anos de idade. Portanto, também há autores que chamam de moral o que chamamos de ética, e vice-versa. Mas para concluir é bom dizer que, mesmo que os nomes sejam trocados, a distinção é valiosa.

E por isso o desafio ético (ou moral) é sair da manada e pensar por si mesmo. Devemos ser capazes de pôr em dúvida os preconceitos que os outros nos incutiram – e também os que nós temos. Julgar é uma tarefa árdua. Não deve ser cometida sem autocrítica.

Redução de danos

Renato Janine Ribeiro

Temos falado de ética. Mas a ética encontra um grande problema em nosso tempo: é que condutas que eu acho honestas, corretas, certas, são consideradas por muitas outras pessoas como desonestas, más, erradas. Falei do aborto em semanas passadas, mas isso vale para muita coisa, a começar pelo que diz respeito ao amor e ao sexo.

Muitas pessoas, corretíssimas em tudo o mais, passam em algum momento da vida por uma ruptura e recomeço de relação. Elas estão casadas e, de repente, se apaixonam. Vivem, por um tempo, na mentira e no engano. Depois, se tiverem sorte, iniciam uma nova relação.

Serão fiéis e quererão que o novo companheiro também seja fiel. Isto é, pedirão do novo relacionamento o que negaram no anterior. Quer isso dizer que são hipócritas? Não necessariamente. Se tiverem um mínimo de dignidade, sentirão que estiveram numa situação difícil, sofrerão, tentarão reduzir os danos que causaram ao antigo parceiro.

Pois é disso que se trata: os ideais, hoje, nem sempre funcionam. Há rachas na sociedade, e um dos principais deles diz respeito ao sexo. As atitudes em relação à sexualidade vão da promiscuidade irresponsável, passando pela busca do prazer mas com responsabilidade, e pelo amor sexuado entre pessoas que não precisam estar casadas mas são fiéis uma à outra, até a castidade dos solteiros e mesmo a aversão ao sexo. Não dispomos de consenso a este respeito, e cada um destes grupos se acha ético no que faz. Como, então, ficamos?

Numa sociedade complexa como a nossa, o acordo sobre os valores se torna problemático. Vá lá que isso sempre aconteceu, e o que para uns é crime – por exemplo, a invasão de uma fazenda – para outros é legítimo direito de lutar pela vida e mesmo pela sobrevivência.

Mas numa sociedade democrática as diferenças entre os valores se tornam maiores, e com isso se mostra impossível chegarmos a consensos morais. Por isso, quando pedimos ética na política, ou na sociedade, às vezes estamos pedindo o impossível, ou aquilo que nós mesmos não queremos, porque há o risco de junto com a honestidade dos políticos – por exemplo – vir o moralismo sexual, ou sei lá o quê.

Daí, uma idéia que cresce nos últimos anos, e que é a da redução de danos. Não vou tratar dela tecnicamente. O que importa é que se renuncia à pretensão de impor plenamente determinados valores morais, e em vez disso se procura apenas diminuir o desastre. Penso que o direito ao aborto faz parte desse pacote. Já comentei que ninguém é “a favor” do aborto, mas apenas a favor do direito de que as mulheres, em certos casos, decidam se querem ou não abortar; e, mesmo entre as que abortam, pouquíssimas o fazem sem dramas de consciência ou sem sofrimento psíquico.

Mas há outros exemplos. A droga é um caso típico de redução de danos. Por que tantas pessoas, que não se drogam nem têm simpatia alguma por drogas, querem descriminalizar o usuário? Vejamos suas razões.

A primeira é que a repressão à droga é quase inviável. Tornou-se enorme o número de pessoas que as utilizam. A esmagadora maioria delas, além disso, não causa mal nenhum com seu hábito. Pouquíssimos usuários da maconha produzem danos à sociedade. Portanto, a pena não tem nada em comum com o suposto delito.

Uma segunda razão é mais grave: é que certas proibições levam à corrupção no aparelho policial. Por isso, fica pior reprimir do que tolerar. Toda sociedade assim admite, na prática, certas condutas que na teoria ela desaprova. E a principal razão para isso é que o custo de punir se mostra alto demais.

Vejam-se os Estados Unidos. Eles têm cerca de um por cento de sua população na cadeia. Essa proporção é de longe a mais elevada em qualquer país democrático. Além disso, como a repartição dos presidiários varia em função da classe social, da cor da pele e da idade, isso significa que mais da metade dos jovens negros do sexo masculino passou ou passará pela prisão.

O custo social disso se revela assustador. Uma guerra civil latente pulsa nos Estados Unidos. Não seria melhor encontrar penas alternativas à prisão para boa parte deles ou, mesmo, perguntar se certos crimes não deveriam sair do código? Porque na verdade não é só na polícia que ocorre, então, a corrupção. É na sociedade como um todo.

A corrupção deixa então de ser apenas o furto de dinheiro público, como hoje ela é entendida. A corrupção volta a ser o que era no passado, isto é, a degradação de todas as relações. O que é uma família na qual provavelmente metade dos homens esteve, está ou estará na cadeia em algum momento? Que educação assim se dá aos filhos?

Reduzir os danos é, então, fazer um cálculo: em certos casos, punir o crime com rigor é a pior solução. Mas isso não quer dizer que devamos fazer, simplesmente, vista grossa ao delito. O melhor é retirá-lo do código penal, ou substituir o tipo de pena. Devemos parar de pensar só em cadeia como castigo.

Mas, como aqui estamos falando em ética, e não em lei penal, precisamos ir mais longe. O que faz que cada vez mais pessoas que estudam o crime pensem em punir menos, em vez de punir mais? Há um velho ditado, que é “Fiat lex (alguns dizem: Fiat justitia), pereat mundus”. Em português, seria “faça-se a lei (ou a justiça), ainda que pereça o mundo”. É um adágio irônico, que mostra que a aplicação rigorosa demais das leis pode gerar problemas vultosos.

Ou seja, em muitos casos pode ser tão nocivo exagerar no cumprimento da lei quanto desobedecer a ela. Mas a razão dos que defendem uma redução dos danos, em vez da observância estrita da lei, é que não podemos ter um ideal de condutas perfeitas. Não só porque os humanos não são perfeitos mas, sobretudo, porque os modelos de perfeição são bastante duvidosos.

O que, para terminar, significa que numa sociedade democrática, dividida em grupos que sustentam valores diferentes mas coexistem em certa paz, não é possível (nem seria bom) ter um ideal muito estrito de bem. Aquilo que eu chamo de bem, de ideal ou de perfeição está longe de ter as mesmas qualidades para o outro.

No fundo, se eu decido reduzir os danos, em vez de impor ao outro os meus valores morais, não é por preguiça nem por complacência. É porque percebo que não dá para ter uma única visão de mundo. E neste sentido a redução de danos deixa de ser, apenas, a busca de um mal menor. Deixa de ser a renúncia ao bem. Torna-se, isso sim, a renúncia ao bem propriedade privada minha, à minha pretensão de ser dono da verdade. E é bom para a sociedade que as pessoas não queiram ter, sozinhas, toda a razão.

A ética, questão de vida ou morte

Renato Janine Ribeiro

A preocupação ética cresceu muito nos últimos anos, no Brasil e no estrangeiro mas sobretudo aqui. Penso que tem a ver com o crescimento da sociedade brasileira, ou melhor, com o crescimento do que chamamos “a sociedade”. Infelizmente, em países marcados como o nosso pela desigualdade, “a sociedade” não se refere a toda a população. Sempre foram muitos os excluídos. Mas a novidade é que diminuiu o número deles.

Vejamos o trânsito. Funcionou bem, enquanto tinham carro apenas três ou cinco por cento dos brasileiros. O tráfego fluía. Era fácil guiar e estacionar. Mas, hoje, metade das viagens realizadas na cidade de São Paulo é por carro.

Não dá. E é claro que toda pessoa que já pensou no trânsito sabe que o transporte individual tem de ser a exceção, não a regra. Mas o que fazer, quando na maior parte de nossas cidades o ônibus é a vala comum na qual as classes abonadas não querem se meter e da qual os mais pobres querem escapar? Ter um carro, ainda que caindo aos pedaços, passa a ser um sinal mínimo e necessário de dignidade.

Porque dignidade e cidadania não são palavras abstratas, de teor apenas cívico: têm a ver com o conforto. É errado pensar que o civismo se mede só pelos símbolos nacionais ou pela dedicação ao bem comum. Ele está no respeito ao outro. É por isso que, quando o conforto é negado a quem se vale do ônibus, ter um carro se torna distintivo do cidadão. É um distintivo errado e destrutivo a médio prazo, pela poluição e engarrafamentos que causa, mas é um distintivo.

O que tem isso a ver com a ética? Duas coisas. A primeira é que a educação e as boas maneiras têm forte sentido ético. Aliás, alguns até derivam a palavra “etiqueta”, no sentido das regras de comportamento, do termo “ética”, como se a etiqueta fosse a pequena ética, a “small morals”, que lida não com os princípios mas com as regras.

Essa etimologia é errada (etiqueta vem do rótulo que se colocava nos processos e, por extensão, significa rotular as pessoas pela sua classe social), mas rica: mostra que tratar bem o outro é sinal de respeito. E o respeito é um dever ético, é um valor que atribuímos aos nossos semelhantes, justamente para assinalar que são nossos iguais, que não nos consideramos melhores que eles.

Chego assim ao segundo ponto. O Brasil funcionou, enquanto a desigualdade era aceita socialmente. Não se via maior problema em uma pessoa furar a fila, se ela tivesse certas características que a faziam superior – a beleza, o charme, a “boa aparência” (expressão cujo significado, como se vê nas novelas, era “não ser negro”), a riqueza. Isso era detestável, mas a sociedade aceitava razoavelmente a desigualdade.

Nossa sociedade não deixou de ser desigual, nem acabou a exclusão, mas aumentou incrivelmente o desejo de inclusão. É o que leva os mais pobres, já sem esperança num transporte coletivo decente, a comprar carros. Esse é o nosso equivalente das “invasões bárbaras”, de que fala o filme canadense. Como se negou e se nega aos mais pobres a cidadania, eles a tomam por si próprios – e isso se dá de maneira altamente conflituosa. Nosso trânsito é uma guerra social.

Ampliou-se tanto o número dos que andam de carro - incluindo os mais pobres, ainda excluídos de tantos direitos e vantagens - quanto a classe média. Não é de minha profissão lidar com números, mas dá para perceber que a classe média brasileira vai muito além dos três ou cinco por cento que usavam carro há meio século.

Ora, isso quer dizer que aqueles que podiam furar a fila – falei no banco, mas pode ser o restaurante chique, a loja de bom atendimento, qualquer lugar – também aumentaram em proporção. Passar na frente dos outros, com a aceitação resignada ou mesmo prazerosa deles, é uma coisa quando são raros os que o fazem. Mas, quando muitos começam a querer isso, se torna intolerável.

Em nossa sociedade, adotamos então recursos indiretos para manter a desigualdade. Quem pode, manda um boy para o banco. Ou usa a Internet para o acesso. Ou se torna um cliente, não apenas especial, porque muitos já o são, porém vip, com guichê escondido para você. Ou dá um jeito de passar na frente discretamente, quase envergonhado: porque, antigamente, furar na fila era já um sinal de distinção.

Voltemos então à ética. Nas colunas anteriores, sustentei que a ética não é abstrata, um conjunto de princípios genéricos sem relação com a vida social, que devemos impor a todo custo. O fato é que, se o Brasil hoje fala tanto em ética, é porque chegamos à conclusão de que um mínimo de respeito ao outro é necessário para sermos, nós mesmos, respeitados.

Aumentou a classe média, e portanto até os abonados percebem que, se continuar a regra (ou a des-regra) de furar a fila, eles mesmos serão prejudicados. Ou seja, também quem está bem na vida sabe que precisa seguir a regra comum. Também a elite começa a ver que passou a depender de princípios éticos para sobreviver.

E por outro lado os pobres não acham mais “bonito não ter o que comer”, para citar fora de contexto um verso de “Amélia”, uma das mais belas canções de Mário Lago. Ver o outro passar na sua frente não é mais aceitável. Daí que falemos tanto em ética: a sociedade brasileira foi tomando consciência de que, na guerra de todos contra todos, valores como o do respeito, o da igualdade e o da liberdade são fundamentais. Ou eles, ou o caos.

É esse o chão que fez, nos últimos anos, crescer tanto o interesse pela ética, desde cursos que são ministrados até um clamor cada vez maior por ética na política. Esse é um dado altamente positivo de nossa vida social. É provável que, em alguns anos, ele mude o perfil do País para melhor.

A sociedade crê mais na ética do que a elite. Um dos erros do governo passado foi não dar o devido peso ao protesto ético das pessoas contra os políticos, e espero que o atual governo não repita isso. Mas não devemos tampouco acreditar no empenho social pela ética como se fosse apenas o resultado de uma inspiração moral. Ele tem uma razão bastante simples, que é termos percebido que, ou passamos a nos respeitar uns aos outros, ou o caos tomará conta de tudo. É uma questão, hoje, de vida ou morte para o Brasil.

Ser ético, ser herói

Renato Janine Ribeiro

Quem viu o filme Casa da Rússia, com Sean Connery e Michele Pfeiffer? Numa certa altura, entusiasmado, o editor inglês que é representado por Sean Connery diz: “Hoje, para alguém ser uma pessoa decente, precisa ser herói”. É uma frase fortíssima, que muda toda a história que vai acontecer depois – e que por isso mesmo eu não vou contar. Mas quer isso dizer que, hoje, para ser ética, uma pessoa tem que ser heróica? Ficou tão difícil a ética, assim?

É o que ouvimos quase todo dia. Os brasileiros dão muita importância à ética. Dividimos o mundo em gente decente e indecente. Quando algo dá errado, por exemplo uma política pública, automaticamente se pensa em roubalheira, não em incompetência.

Mesmo os bandidos falam em ética. Na cadeia, punem sem piedade quem abusou sexualmente de crianças ou de mulheres. É comum até um criminoso falar na sua “ética”, nos seus valores.

Também, quando tratamos um serviço, é freqüente a pessoa contratada explicar por que ela faz tão bem o seu trabalho e, sobretudo, por que não pratica certas desonestidades que seus colegas (jura ela!) fazem.

Acredite, claro, quem quiser. Mas faz parte do nosso discurso social, da nossa fala com o outro, afirmar: eu sou ético, num mundo em que o resto não o é. Eu sou do bem. O mundo está de pernas para o ar, tudo está errado, mas eu não.

Aqui temos então duas grandes idéias fortes da brasilidade. A primeira é que as coisas em geral não andam bem. A economia nos aperta, a sociedade está complicada, até a amizade e o amor estão em crise. Percebemos bem essa devastação e ela nos incomoda. Mas a segunda idéia é que eu, pessoalmente, ajo bem. Sou honesto.

Serei herói? Aqui é que estão as coisas. Boa parte do auto-elogio (eu sou o único decente num mundo de bandidos) é mentira. Basta ver como termina o serviço do profissional que gabou sua honestidade: tão ruim quanto o dos outros, ou mesmo pior. Então, parece que o personagem da Casa da Rússia tem razão: a ética virou artigo raro. Ser ético é mostrar-se capaz de heroísmo.

Vale a pena então irmos, deste filme recente, baseado num livro de John Le Carré, para a tragédia grega Antígone, que Sófocles escreveu no século V antes de Cristo. Penso que toda reflexão sobre a ética deve começar por ela.

Antígone é filha de Édipo. Dois de seus irmãos lutam pelo poder, e ambos morrem. O trono fica então com seu tio, Creonte, que manda enterrar um dos sobrinhos com todas as honras – e deixar o corpo do outro aos abutres. Antígone não aceita isso. Participa do enterro solene de um irmão e depois sepulta, com os ritos religiosos, o outro, o proscrito.

O rei fica furioso. Está convencido de que é uma conspiração contra ele. Manda descobrir quem violou suas ordens. Ao saber que é a sobrinha, tenta poupá-la: se ela negar que foi ela, ou se pedir desculpas, enfim, ele lhe dá todas as saídas – sob uma condição só, de que ela negue o seu ato. Antígone se recusa e é executada.

Essa história é exemplar. Ela mostra que há um conflito latente entre a ética e a lei. Um governante dá ordens. Estas podem ser legítimas ou não. Creonte fez o que não devia, moralmente, mas é ele quem manda. A lei está com ele. Neste caso, o que fazer?

Vou passar a um caso relativamente recente. Um tempo atrás, eu estava na França, quando um homem morreu na calçada, em frente de uma farmácia, sem que ninguém o acudisse. O farmacêutico explicou: se tocasse no outro, se tornaria responsável por ele. Só um médico poderia fazê-lo. Descobriu-se, porém, que bastaria um remédio simples para salvar o rapaz da morte. O que fazer?

Assisti então a um amplo debate. Foi sugerida uma mudança na lei, para que as pessoas pudessem acudir a seus próximos sem serem processadas, quando agissem de boa fé. Também se propôs um sistema de atendimento mais rápido das emergências. Mas quem, a meu ver, resolveu a questão foi um jornalista, que disse mais ou menos o seguinte:

- Se precisarmos de uma lei que autorize as pessoas a agirem humanamente, a socorrerem os outros sem pensar nos castigos e riscos que correm, não estará tudo perdido? Porque nunca as leis vão prever todos os casos. Sempre, para alguém agir bem, de maneira ética, em solidariedade com os outros, haverá um terreno incerto, um espaço que pode até ser ilegal.

- Precisamos de uma lei nos permitindo ser decentes?, continuou ele. Ou deveremos estar preparados para correr os riscos, até mesmo de sermos presos, quando um valor mais alto se erguer, o valor do respeito do outro?

É este o heroísmo de que falava o personagem da Casa da Rússia. É este o heroísmo que Antígone praticou. E ele exige que, às vezes, estejamos dispostos a infringir a própria lei, a desobedecer às regras, quando for em nome de um valor superior. Em nosso mundo, este valor mais elevado pode ser, antes de mais nada, a vida de alguém. Aliás, costuma haver polêmica sobre o chamado “furto por necessidade”, quando um esfomeado furta comida para sobreviver: isso não é um crime.

Mas as coisas podem ir mais longe. Maria Rita Kehl elogiou aqui, na semana passada, o líder dos sem-terra João Pedro Stédile. O que vale mais, a lei de propriedade da terra, que perpetua uma exclusão social enorme, ou o direito das pessoas a viver, e acrescento, a viver dignamente? Do ponto de vista ético, é claro que vale mais o direito à vida digna.

Nem sempre foi assim. Um pregador puritano inglês do século 17, Richard Baxter, tem uma frase horrorosa. Na época, enforcava-se quem roubasse um pedaço de pão. Ele justifica isso: a vida dos pobres, explica, não vale grande coisa, ao passo que o atentado à propriedade destruiria os fundamentos da própria sociedade.

Não há consenso a este respeito. Uns defendem os sem-terra, outros os atacam. Mas o que quero levantar aqui é algo mais forte: é que a ética e a lei não coincidem necessariamente. Muitas vezes, ser decente exige romper com a lei. Foi assim sob o nazismo e sob todas as formas de ditadura. É assim também quando a desigualdade ou a injustiça impera.

Aí, sim, o ser humano precisa ser heróico. Porque violar a lei, mesmo que seja por um valor moral relevante, significa sofrer as penas da lei. Numa sociedade decente, imagino que o juiz não mandará para a cadeia quem infringiu as normas legais devido a valores morais mais altos, como os que citei. Mas não há garantia nenhuma disso. Pode ser que a pessoa seja punida, mesmo.

E é importante insistir nisso. O que queremos nós: cidadãos obedientes à lei, a qualquer lei, ou sujeitos éticos, decentes? O ideal é juntar as duas coisas. Mas, na educação, devemos apostar na autonomia, isto é, na formação de pessoas que sejam capazes de decidir por si próprias. O que significa que, em casos raros e extremos, elas tenham a coragem de enfrentar o consenso social e suportar as conseqüências de seus atos.

Isso, para terminar, pode fazer de qualquer um de nós um pequeno herói. O heroísmo não está só nas personagens da mitologia grega ou nos super-heróis da TV. Ele pode estar presente quando cada um de nós enfrenta uma pequena prepotência, em nome de um valor mais alto – desde, claro, que arque com os resultados de sua ação e que além disso lembre que é falível e pode estar errado. Mas é desses pequenos heroísmos pessoais que depende a dignidade humana.

Há uma etiqueta democrática?

Renato Janine Ribeiro

Tempos atrás, escrevi um livrinho chamado A etiqueta no Antigo Regime, que já teve três edições [1]. Estava redigindo minha tese e notei que tinha reunido todo um material sobre as boas maneiras, que não ia usar no trabalho, por isso achei que valeria a pena publicá-lo em separado, na coleção “Tudo é História”, criada por Caio Graco Prado na editora Brasiliense.

É um livro de história, mas é claro que o título me levou a receber alguns convites curiosos: programas de rádio me telefonando para saber como se serve à mesa. Mas a convicção principal do livro é que a etiqueta, criação do final da Idade Média e do começo da modernidade, une duas idéias importantes.

A primeira é a dos bons modos ou boas maneiras. .Esquecemos, hoje, como foi difícil superar os modos vulgares ou rústicos (a palavra vem do latim “rus”, campo), adquirindo uma certa cortesia (a palavra vem de “corte”), urbanidade (vem de “urbs”, grande cidade) ou civilidade (vem de “cives”, cidadão ou morador da cidade).

Por exemplo, o filósofo Erasmo escreve um livro inteiro, quinhentos anos atrás, para explicar que não devemos cuspir à mesa nem na mesa, nem beber a sopa direto da sopeira, nem colocar as botas em cima da mesa... Soaria estranho fazer isso hoje, mas houve um tempo em que os nobres precisaram ser educados para melhorar seus modos.

Portanto, a primeira idéia é de respeito ao outro. Os bons modos mostram a nosso próximo que temos estima por ele: se escarramos na sua frente, enfiamos o dedo no nariz ou metemos a mão na travessa de comida, nós o desrespeitamos. Então, o certo é tomar certos cuidados, que provam nossa consideração por ele. É claro que isso pode ir longe demais, e de certa forma o século 20 corrigiu os excessos da etiqueta.

A segunda idéia é a da hierarquia entre as pessoas. Os bons modos podem ser também um meio de reforçar a desigualdade social. Trato de maneira diferente meu superior e meu inferior.

A rainha Maria Antonieta, da França, era excelente nisso. Conseguia, encontrando um grupo de pessoas, saudar cada uma de um jeito diferente – digamos, tocava com o dedo o chapéu para cumprimentar a menos importante, aí se virava para a segunda e retirava levemente o chapéu da cabeça, diante da terceira tirava-o um pouco mais e inclinava o corpo discretamente para a frente para mostrar maior respeito pela quarta pessoa.

Sua camareira, Mme. Campan, que escreveu Memórias que foram um certo sucesso de livraria no século 19, considerava essa a maior qualidade da rainha...

A etiqueta teve, então, em sociedades altamente hierarquizadas, dois sentidos. O primeiro, repito, era o do respeito ao outro. Mas este sentido indica uma certa igualdade. E o segundo aponta para a desigualdade. Por isso, a etiqueta não é uma coisa simples. Não é só igualdade, não é só desigualdade. Há uma batalha política em torno da etiqueta. Ela é de esquerda ou de direita? Perguntar assim é quase cômico, mas faz um certo sentido.

Tomemos um manual de etiqueta. Quando eu era criança, li Marcelino de Carvalho, que era o “papa da etiqueta”. Naquela época, existia em São Paulo um personagem chamado “quatrocentão”. A cidade completou quatrocentos anos em 1954 e nas décadas seguintes os descendentes dos primeiros povoadores se gabavam, diante dos imigrantes italianos e depois orientais, que tinham dinheiro mas não ocupavam as colunas sociais, de serem melhores que eles.

Marcelino de Carvalho fazia a etiqueta dos quatrocentões. Lembro que estranhei muito as regras que ele ditava: por exemplo, o luto, que devia ser utilizado por um longo tempo. Mas ninguém, que eu conhecia, usava mais roupa preta em sinal de luto! Saímos do luto fechado – só preto, em todas as roupas, durante meses ou anos – para a idéia do “pretinho básico”, a roupa elegante que serve em toda situação.

E o mais estranho eram as regras para como tratar um príncipe ou o papa. Eu achava muito improvável um dia me sentar à mesma mesa que um príncipe. E sabia que o papa não viajava (foi Paulo VI quem começou, em meados dos anos 60, a sair da Itália). A chance de me encontrar com Sua Santidade me parecia inexistente, ainda mais em São Paulo. O manual de etiqueta me parecia uma peça de ficção.

Mas digo tudo isso para quê? É que me perguntaram se etiqueta tem a ver com ética. De fato, alguns a chamam de “small morals”, pequena ética, donde etiqueta. É possível. Mas em francês, pelo menos, a primeira ocorrência de etiqueta no sentido de bons modos vem de um rótulo (ou etiqueta) que se colocava, nos tribunais, para indicar o conteúdo dos sacos que guardavam processos penais ou civis.

E daí veio a idéia de que etiqueta é um rótulo. É um modo de rotular as pessoas. Por exemplo, num lugar público eu avisto uma pessoa que não conheço. Mas, pelo modo como a tratam, ou então pelo modo como ela se exibe, tenho noção de sua importância. É o seu rótulo. E por isso vou tratá-la com atenção maior ou menor.

A etiqueta tem a ver então com as aparências. Dá para entender por que tanta gente se veste com cuidado, apura os gestos, enfim, joga com as aparências para impressionar os outros. Nas antigas monarquias, era até proibido o plebeu usar certas roupas, que fariam os outros pensarem que ele fosse nobre. Mas essas proibições nunca deram certo.

No Brasil, ficou famosa uma novela do final dos anos 60 – do momento exato em que a ditadura dava o golpe conhecido como “Ato 5” – que foi “Beto Rockefeller”, um pobre que freqüentava a alta sociedade paulista e se fazia passar por rico. A personagem foi tão forte que ainda hoje o ator que a fez, Luis Gustavo, é conhecido por esse papel – e embora ninguém, com menos de quarenta anos, tenha visto essa novela. Eram as aparências que levavam os outros a aceitá-lo como membro da “alta”.

Essa seria a etiqueta, digamos, de direita: dou mais respeito a quem usa terno (e por isso as igrejas evangélicas, dando aos mais pobres noção do seu próprio valor, difundem o uso do terno e gravata entre os seus fiéis), a quem tem dinheiro, a quem se exibe.

Haverá uma etiqueta “de esquerda”? O termo pode soar exagerado, mas se pensarmos na outra idéia de etiqueta – não a da hierarquia, mas a do respeito –, faz sentido dizer que haja uma etiqueta democrática. É a de quem recusa ser superior ao outro. Cedo a vez a ele. Peço licença, se quero fumar na frente de um estranho, e aceito a negativa.

Conhecemos a imagem do militante de esquerda sujo, fumando o tempo todo, sem bons modos. Mas ela é uma mentira e uma raridade. A maior parte dos militantes que conheço são educados, respeitosos. Podem não conhecer certas regras (a colocação das facas), mas essa só é a essência da etiqueta conservadora, “de direita”, hierárquica. Há, sim, uma etiqueta democrática – e ela não está nas regras, mas num valor básico: mostrar ao outro que temos respeito por ele, que não nos sentimos superiores, que acreditamos no valor e na igualdade de todos. Quando cedo a vez ao outro, é isso o que estou dizendo: uma lição de igualdade.

Só que há um “pulo do gato” em toda etiqueta, mas disso vou falar na semana que vem.



[1] Está-se esgotando a quarta edição, pela Moderna, e vai sair uma quinta, pela Ateliê.

O “pulo do gato” da etiqueta

Renato Janine Ribeiro

Discuti na semana passada se haveria uma etiqueta democrática – isto é, que em vez de insistir nos formalismos, no lugar onde se coloca o talher, atenda ao espírito de mostrar respeito ao outro.

Uma etiqueta é pedante e hierárquica quando se torna uma cilada, uma armadilha, para pegar os incautos e os incultos, para que os “finos” possam rir daqueles que bebem a lavanda destinada a molhar as mãos. E ela é democrática quando se revela uma gentileza, um modo – sem muitas regras – de deixar o outro à vontade. Essa, a diferença que conta.

A grande história a esse respeito é a do príncipe de Gales do começo do século 20, o futuro rei Eduardo VII da Inglaterra. Um dia, ele recebeu um marajá hindu, que obviamente se pôs a comer o frango com as mãos. E, quando os cortesãos começavam a rir, o próprio príncipe agarrou a ave com as mãos e também jogou os ossos no chão. O segredo é esse, você nunca humilha o outro, muito ao contrário.

Mas hoje quero falar, apesar de tudo, do “pulo de gato” que há na etiqueta. Começo com uma história que, segundo o historiador Huizinga, ocorreu na Holanda alguns anos depois de 1400. Pode ter acontecido várias vezes.

As ruas eram muito estreitas; numa esquina apertada, dois burgueses se encontram e cada um oferece a passagem ao outro. É um gesto de educação. Mas eles insistem, e gastam pelo menos quinze minutos cada um instando o outro a passar primeiro.

Do ponto de vista racional ou pragmático, é um delírio: seria mais rápido um deles passar, e pronto. Nós insistimos um pouco, e depois tanto faz. Contudo, num momento em que a Europa substitui a relativa grosseria da Idade Média pelos (bons) modos, a insistência exagerada até se compreende. Mas a questão que quero colocar é: quando um cede a vez ao outro, quem se honra mais? Quem está honrando quem?

Vamos a um exemplo mais perto de nós. É educado o homem abrir a porta do carro para a mulher, dar-lhe a passagem, a prioridade. Ele, assim, respeita-a. Ela, assim, é respeitada. Mas, quando esses gestos se praticam, quem é o mais importante: quem honra ou quem é honrado?

Não é fácil responder. Tomemos o presidente Mitterrand, que governou a França de 1981 a 1995. Ele, apesar de socialista, a certa altura mandou que nos jantares o servissem antes, até mesmo, das mulheres. Então, a exemplo dos reis de França, ele se proclamava o mais importante. Mas, se tivesse mandado servir primeiro as mulheres, ficaria ele menos importante?

Recorro a um último exemplo. Sou professor universitário e, portanto, estou acostumado a participar de bancas de teses. Há uma precedência na ordem em que os membros das bancas interrogam o candidato. Começa-se pelos examinadores convidados, de fora da Faculdade, e depois se passa aos que são de dentro. Às vezes, as mulheres falam antes dos homens. Tudo isso é gentileza: você prioriza o hóspede. Dá preferência às mulheres. Mas essa gentileza não será envenenada?

Porque a história das bancas remete aos tribunais. Nos tribunais militares, era regra a votação das sentenças começar, não pelo oficial de mais alta patente, mas pelo de mais baixa. Era uma gentileza. Era também um cuidado: se o capitão votasse depois do general, talvez ele se sentisse constrangido a repetir o voto do seu superior.

Mas, vejam, a idéia de gentileza envolve algo meio escondido, que é: quem cede a vez é porque é dono da vez. É porque é o mais importante. E, cedendo a vez, ele apenas reforça sua superioridade.

Por isso, nas bancas há um certo veneno: fala primeiro quem entende menos. Gentileza: porque assim ele não terá que repetir o que a prata-da-casa vai dizer, no fim. Veneno: porque assim ele pode errar à vontade, até com menos público, que vai chegando mais perto de terminar o ritual.

Dá então para entender por que tantas militantes feministas recusaram, numa certa época, as gentilezas masculinas, achando que eram apenas a parte emersa do iceberg machista? Quem dá honra é porque tem honra de sobra. Quem recebe a honra é, talvez, porque não a tenha.

Mas essa também não é uma resposta definitiva. Se fosse, Mitterrand comeria sempre por último!! Por sinal, se ele fosse mais esperto, faria mesmo isso. Há um jogo constante nessas regras. Aliás, há o jogo justamente porque as boas maneiras não são meras regras, são um modo de viver.

A etiqueta, sim, se resume em regras. Mas os autênticos bons modos, os do príncipe inglês que suja as mãos nos ossos de galinha, para não deixar o hindu perceber que cometeu uma gafe, sabem ajustar as regras ao respeito. Ou seja, o respeito é o fim, as regras são meros meios.

Só que, com isso, não temos muita certeza do que está acontecendo. Só fica claro o seguinte: quem faz questão de passar primeiro só mostra que, realmente, não tem modos. Agora, se você cede a vez ou se recebe a prioridade do outro, quase que tanto faz. O importante é que não ignore seu semelhante, que não o agrida ou o humilhe. Porque quem humilha, na verdade, mostra sua falta de educação.

Então, a diferença não está tanto – hoje – entre quem entra primeiro ou depois no elevador, no carro, na sala. Está em isso ser negociado, em haver um diálogo. Hoje importa relativamente pouco a ordem de precedência, pela qual pessoas já se mataram em outras épocas. O que importa é que isso resulte de uma troca de sinais, sejam palavras ou olhares.

E assim as boas maneiras podem ser, ao mesmo tempo que um sinal de respeito (a etiqueta democrática) ou de desrespeito (a etiqueta aristocrática), um campo ambíguo de conflito ou pelo menos de encontro social.

As pessoas mais superficiais pensam que, entrando na frente, ganham. As mais refinadas sabem que, insistindo em dar vantagem ao outro, na verdade elas ganham – talvez mais que ele. Mas nem todos o percebem, e talvez faça parte da vida social essa série de ambigüidades, tanto a concorrência pela prioridade, quanto a mais discreta e secreta noção de que só dá honra quem a tem de sobra, quem a tem “para dar e vender”. Honra não se vende mas, quando se tem, se dá.

Códigos de ética

Renato Janine Ribeiro

Nosso tempo exige cada vez mais ética. Por isso mesmo, as empresas e também o setor público criaram seus códigos de ética. Eles proíbem uma série de condutas consideradas imorais. Há muitos casos assim.

O grande caso de comportamento anti-ético é o das relações promíscuas entre um funcionário público e uma empresa que ele fiscaliza. Isso é inaceitável. Por isso mesmo, há muitos anos que os servidores norte-americanos são proibidos de receber presentes, de qualquer pessoa, acima de um certo valor – se não me engano, cem dólares.

No Brasil, durante o regime militar, o ditador Figueiredo viajou a Buenos Aires e foi presenteado pelo seu colega de plantão na Argentina com um cavalo de raça. Na verdade, o ditador argentino lhe ofereceu a escolha entre três animais; como nosso ditador achou todos eles ótimos, acabou trazendo os três cavalos.

É uma atitude que não se pode aceitar. Já é errado existir uma ditadura - quanto mais, o seu chefe dar com dinheiro de seu povo (no caso, o argentino) presentes a um amigo. Mas também é errado o governante brasileiro ganhar, a título pessoal, mimos que possam influenciá-lo em suas decisões.

Esse é o espírito da ética no serviço público. Ela tem seus equivalentes no setor privado. Se chefio o setor de compras de uma empresa, devo evitar contatos suspeitos com os fornecedores.

Está claro que aqui surgem problemas. O maior deles diz respeito à verdade e à aparência. Posso ser amigo pessoal de alguém e, nesse caso, manter a amizade é legítimo, mesmo que suscite eventuais desconfianças.

O que deve contar é, antes de mais nada, a honestidade, não a aparência. E já aqui começo a discordar de alguns códigos de ética, que acabam mais ocupados com a aparência do que com a verdade das coisas. Mas voltarei a isso depois.

Outro aspecto essencial dos códigos de ética é o cuidado com as relações pessoais na empresa e, em especial, com os grupos que foram discriminados ao longo do tempo. Isso quer dizer, hoje, antes de mais nada, as mulheres.

Alguém viu o filme “Se meu apartamento falasse?” É uma película dos anos 60, em que Shirley MacLaine é uma ascensorista que tem um caso com o patrão. Hoje, seria um exemplo nítido de assédio sexual por parte dele – mais que isso, até de abuso sexual, porque ela é sua funcionária e, se não mantiver relações com ele, será despedida.

É muito bom que essas condutas sejam proibidas. Usar as funcionárias como estoque de abuso sexual – como já sucedeu e em alguns lugares ainda sucede com as empregadas domésticas – é inadmissível. Negar emprego a um descendente de africanos, por causa de sua cor, é intolerável.

Isso significa que as empresas e o setor público estão indo além, nas exigências de decência, do que a própria lei pede. Mostra que novos padrões de relacionamento estão se consolidando, mais respeitosos da pessoa humana e do bem público.

Mas os códigos de ética têm seus problemas. Um deles está na importância que dão à aparência. Falei do caso de amizades que passam a ser suspeitas. Pede-se então que, em nome da aparência, se sacrifique a essência. Ora, um princípio básico da ética moderna é a preocupação com a verdade, em vez das imagens. Aqui os códigos de ética já se mostram mais códigos do que éticos.

Porque há um velho conflito entre a ética e o código, ou seja, entre a ética e a lei (clique aqui para ver meu artigo Ser ético, ser herói). É difícil a lei dar conta das intenções das pessoas. Nenhum guarda pára os carros que respeitaram o sinal vermelho, isto é, que estão dentro da lei, para saber se fizeram isso por respeito humano ou só por medo da multa e dos pontos na carta. Para a lei, basta que obedeçam. Mas, para a ética, isso não quer dizer nada. Se eu cumprir a lei por medo das conseqüências, meu ato não tem nada de ético.

Então, o que dizer de quem obedece aos códigos de ética? É verdade que as disposições desses códigos são, quase todas, corretas. É bom respeitar o colega e, sobretudo, o subordinado. É bom não se corromper nem favorecer situações que permitam a corrupção.

Mas os códigos de ética, na verdade, são leis disfarçadas, leis light, promulgadas por quem não tem poder para legislar (por exemplo, uma empresa, uma associação profissional) – e não são textos que decidam, de maneira cabal, sobre o caráter ético ou não das pessoas.

Não quero dizer que devamos violar os códigos de ética. São, geralmente, bons. Há exceções, é claro. Durante muito tempo se entendeu que a “ética profissional” consistia em não denunciar nem mesmo criticar o colega pelos absurdos que cometesse: isso se viu muito nas profissões liberais. E é óbvio que não há conduta mais anti-ética do que essa!

Ainda hoje, o recente Código de Ética das autoridades federais as proíbe de se criticarem, umas às outras, em público. Acho a disposição legítima, mas é uma regra disciplinar, que não tem nada de ético, e é profundamente errado ela constar de um código com esse nome. Está mais perto das regras que regem o cerimonial da administração do que de qualquer preocupação ética.

O grande problema dos códigos de ética é o seguinte: eles podem levar as pessoas a pensar que são éticas a baixo custo. Bastará obedecermos a suas disposições e, pronto!, seremos éticos. Numa sociedade que questiona inúmeras coisas, que está atravessada por dúvidas (o que é muito positivo, porque desperta a pergunta ética), um código pode ser a resposta fácil para um problema complexo. Pode calar a pergunta pela decência, em vez de dar-lhe o devido valor.

Isso eu já constatei várias vezes. Sou professor de ética, e acontece de me perguntarem se uma ação é ética ou não. Ora, não é possível responder assim, sem conhecer o seu contexto e, sobretudo, as intenções da pessoa. E este é o grande alerta que devemos dar, hoje.

Provavelmente a sociedade vai continuar gerando códigos de ética, e o resultado básico é bom, sobretudo se eles decorrerem de uma ampla discussão social, porque assim se envolve todo um grupo, por exemplo, todos os funcionários de uma empresa. Mas devemos sempre deixar claro que nenhum código de ética vai fazer uma pessoa ética.

Para alguém ser ético, é preciso mais do que a obediência a uma lei, e isso por melhor que seja a lei. Ou, para terminar: numa época cheia de agências certificadoras (tipo os vários ISO, 9000, 14000 e outros), não há agência certificadora para nosso caráter ético. Ele depende só de nós, de nossa consciência, com toda a insegurança que isso possa trazer – e quanto mais insegurança trouxer, melhor, porque mostrará que estamos mesmo em dúvida diante de nós e de nossa ação.