terça-feira, 30 de agosto de 2011

As cartas estão com Dilma Rousseff

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 29--2011

Até agora me preocupei com os poucos dons de comunicação que Dilma Rousseff demonstrava, comparada com FHC, que entusiasmava a elite, ou Lula, que galvanizava o povo. Mas começo a mudar de ideia. Já achava bom, sim, termos uma dirigente "normal", sem o carisma de seu antecessor. Mas afirmei que ela precisava de um estilo, até para conter o apetite dos políticos, hoje desmedido. Para não dizer que penso só na ameaça Temer, o poderoso vice, lembro a bancada do PT na Câmara querendo indicar o novo ministro de Relações Institucionais. Se o atrevido movimento tivesse êxito, o presidencialismo acabaria naquele dia - e, com ele, a presidente e, claro, seu insano partido.

Mas hoje, apesar das denúncias que chovem, vejo um roteiro melhor para o governo e o país.

Dilma prossegue um projeto que não podia ser interrompido, simplesmente porque enfim deu prioridade às questões sociais na agenda brasileira - algo que Itamar Franco e FHC esboçaram, mas sem ir tão longe quanto Lula. O projeto que os tucanos tinham se completou em dois mandatos federais. Precisa e merece ser revisto. Já o projeto petista é pauta longa e demorada. Centra a mudança do país na priorização do social. Isso ainda exige muito. Cresceram renda e consumo. É preciso complementar com educação e cultura. A aprovação eleitoral desse projeto - cujos fins podem parecer com os dos tucanos, mas cujos meios o cidadão preferiu - dá continuidade, com mudanças, ao que Lula encetou.

A política passará dos shareholders aos stakeholders?

Com mudanças. A mais visível é a das alianças para garantir a governabilidade. Quase todos os analistas as deploram; os equilibrados reconhecem que alianças análogas sustentaram FHC. Ora, como tais alianças parecem corromper os costumes políticos, Dilma estaria ante uma necessidade ou possibilidade inédita: reduzir o peso delas. Dilma não deixa apodrecer. Demite. Depois, é certo, nomeia sem audácia. Lula colocou seu próprio vice no ministério da Defesa. Surpreendeu. Dilma não surpreende. Mas age. Se renovar o gabinete, baixando o desperdício de talento e dinheiro, terá dado um grande passo. Inédito.

Outra mudança chama menos a atenção, até porque não entra no truque freudiano de só culpar, por tudo, "o outro". Mas é mais importante. Falo da melhor articulação das ações públicas, que teve exemplo notável, agora, em São Paulo. Dilma elegeu a sede do principal governo de oposição para integrar programas sociais federais e estaduais. Já é difícil articular as ações de uma única esfera de governo. Unir petistas e tucanos, tendo por meta o Brasil sem Miséria, foi notável. Ela ainda não é uma estadista, mas se vislumbram qualidades suas que vão além da gestão e talvez mostrem uma liderança.

Lula foi um presidente audaz. Adorava políticas novas. Deu certo. Apostou no pré-sal, na expansão do ensino federal, nos programas sociais. Mas, assim como o coração abre e fecha constantemente, alternando diástole e sístole, também na política precisam alternar inovação e consolidação. Vejam: a expansão das universidades abriu vagas para estudantes, aproveitou professores doutores sem emprego, ampliou a educação superior no país com docentes que pesquisam. Muito bem. Mas resta fazer cada departamento ou grupo funcionar. Esse é um trabalho inglório. Não se presta a inaugurações. Prefeitos não o aplaudem. Ao contrário: porque nessa hora você não expande nem dá. Corta e cobra. É coisa de chato. Mas são essas super-formiguinhas que fazem a máquina funcionar. Essa é a grande oportunidade de Dilma - como, ironicamente, talvez pudesse ter sido de Serra.

Trabalhei, entre 2004 e 2008, na avaliação da Capes, órgão que afere a qualidade de todos os mestrados e doutorados do Brasil. É a avaliação que faz a pós-graduação ser nosso único nível de ensino de padrão internacional. Mas, fora do mundo da pesquisa, ninguém a conhece. Aos políticos, inclusive no governo, interessa mais um projeto novo, qualquer um, do que a árdua tarefa de centenas de bons pesquisadores, viajando de graça para ajudar a montar um curso de mestrado ou doutorado. Mas é esse trabalho minucioso que maximiza o investimento. Articulando professores e temas, alunos e teses, avança-se mais do que só pondo dinheiro. Aliás, na avaliação da pós, era difícil e inútil saber quem votava no PT ou nos tucanos: todos se uniam pela qualidade. Isso não dá prestígio junto ao político tradicional, mas vai direto na veia da sociedade. O beneficiado é o doutorando, o ensino, a pesquisa, a inovação. A política sai de uma visão subordinada a shareholders, os políticos, que pensam ser seus donos ou proprietários, para outra em que contam os stakeholders, as partes interessadas, isto é, tanto os que põem a mão na massa quanto os que a vão consumir.

Será esse o papel de Dilma na Presidência? Exige muito trabalho, fé enorme e pouca vaidade. Ela parece ter essas qualidades. Elogia Lula (a "herança bendita") e também FHC. Não disputa com eles. Revejo aqui minha tese de que o presidente do Brasil teria de ser um grande comunicador político. Precisamos é do presidente adequado ao momento. Creio que, depois de muitos anos no fragor das batalhas - padecer e derrubar a ditadura, levar um presidente ao impeachment, vencer a inflação, privatizar, consagrar a agenda social - o Brasil talvez possa ter um clima mais tranquilo. Não será fácil. Porém, se a presidente continuar por aí e mantiver o sangue frio, acredito que, o mais tardar no final de 2013, terá ganho a aposta. O que obviamente, em nossa recente tradição, a credenciará para a reeleição e, quem sabe, um segundo mandato com menos hipotecas partidárias. Mas essa é outra história.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br


http://www.valor.com.br/opiniao/990762/cartas-estao-com-dilma-rousseff

O que deveria ser discutido

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 22-8-2011

Uma amiga me disse, ao ver na TV o arrastão promovido por sete meninas entre dez e 14 anos de idade, e sua sequência - mães e pais ausentes, Estado omisso, gente sem futuro: "Isso devia estar sendo discutido, e não a Copa do Mundo, os aeroportos, sei lá o quê". Em atenção a ela, hoje vestirei mais a condição de professor de ética que a de filosofia política, ou melhor, enfatizarei o caráter ético na discussão sobre o poder.

Muitos sabem de que se trata. As meninas fizeram um arrastão na Vila Mariana, em São Paulo. Foram detidas. As mães de quatro delas foram buscá-las na polícia. O delegado prendeu-as por "abandono de incapaz" - porque não cumpriram o papel de mãe, cuidando das filhas. Uma repórter, chocada, contou que foi à casa de uma delas, no Jardim Maravilha, a léguas de onde as garotas roubavam. Uma mãe tinha sete filhos, o esgoto corria pelas "ruas", crianças brincavam na água poluída. A Defensoria Pública pediu que as mães fossem soltas. A Globo News mostrou a gravação, feita no banheiro, de uma mãe repreendendo a filha: "Volta no mesmo local do crime, mas é besta mesmo, né!" Um pai apareceu na delegacia, indignado porque a mulher ainda estava presa. É isso.

Antes de tudo: por que essas questões não são discutidas, nem resolvidas? Por que, enquanto isso, o Estado de São Paulo anuncia a construção de um túnel entre Santos e Guarujá, no qual gastaremos 1 bilhão e 300 milhões de reais? E por que debatemos estádios, em vez de crianças que viverão mal, morrerão cedo e talvez matem?

É sórdido uma mãe ensinar a filha a roubar

A primeira questão: algumas mães têm muitos filhos e mal cuidam, quando cuidam, deles. Tanto que foram encontrados bem longe de sua moradia. É imoral e criminoso os pais largarem suas crianças. Não concordo com quem, simplesmente, tem pena de pessoas que põem crianças no mundo, sem mostrar responsabilidade por seu futuro. Mas como lidar com isso, ainda mais numa democracia, que não pode impedir ninguém de ter os filhos que quiser? Até porque, se os pais forem presos por descaso, aí as crianças ficarão mesmo sem ninguém.

É terrível o que a gravação da TV revela. É sórdido uma mãe ensinar a filha, de quem já não cuida, a roubar. Só isso mereceria severa punição legal, pois é incitar menor ao crime. Mas volta o problema: como resolver a questão de tantas crianças que, nas inúmeras horas sem escola, são largadas na rua?

Aqui, divisões políticas imperam - mas não para resolver, e sim atrasar a solução do problema. A esquerda já combateu a ideia de controlar a natalidade dos pobres: limitar o número de filhos seria uma proposta "de direita", para não enfrentar o "verdadeiro" problema, que seria a distribuição de renda. Bobagem: uma ação não exclui a outra. A gravidez indesejada, sobretudo de adolescentes, precisa acabar. O ideal é só ter filhos quem deseje tê-los e possa mantê-los. Uma boa educação sexual pode trazer o primeiro resultado, além de reduzir os abortos. Paternidade e maternidade devem ser responsáveis. Mas este simples parágrafo já deve causar muita divergência, entre quem concorda com uma parte e não outra, ou com nenhuma. Não temos saída, porém, se não unirmos esforços nesta prioridade humana e nacional.

E a escola? Dá para admitir que crianças não tenham o que fazer a não ser vagar pela rua, com pais que as mandam se virar para terem o que comer? Leonel Brizola, trinta anos atrás, deu a solução: centros integrados em que crianças e adolescentes passariam o dia todo, estudando, fazendo esporte, comendo e até tomando banho. Mas os Cieps foram abandonados. Com o nome de CEU, ressurgiram na gestão de Marta Suplicy em São Paulo e também não tiveram sequência. São caros, mas são a saída mais barata. Dizia o Bradesco, nos envelopes em que mandava extratos de conta, décadas atrás: "Educai as crianças para não punirdes os adultos". O que queremos, escolas ou cadeias?

Temos aqui uma série de culpados ou, se quiserem, de (ir)responsáveis. Há pais e mães que não cuidam dos próprios filhos; há o Estado, que não provê educação nem saneamento básico; há nós mesmos, que discutimos se é melhor o túnel ou a ponte para o Guarujá, ou - mea culpa que vale por hoje - se é melhor um governante do que outro, um sistema ou outro.

Mas não seria esta a oportunidade de, como a sociedade tanto quer, aproximar a política do "mundo real"? Aqui, há que somar em vez de dividir. Haverá posições diferentes sobre tudo o que mencionei, mas é possível, respeitando a divergência, unir o máximo de empenhos. Tudo depende disso. Se essas e muitas outras crianças não forem salvas, boa parte irá para o crime - com prejuízo enorme para as vidas e paz geral. Isso para não falar nos talentos que tantas têm e serão desperdiçados, porque jamais terão chance de desenvolvê-los.

Uns dez anos atrás, ouvi do Padre Julio Lancelotti que o custo para cuidar de um adolescente em liberdade assistida - isto é, que delinquiu - de modo a recuperá-lo, seria de algo como seis salários mínimos por mês, se não me engano por dois anos, incluindo os profissionais que cuidariam deles e são necessários. É caro. Mas era cerca de metade do que custava cada internado na Febem, para resultados pífios.

Hoje disse que trataria de ética, mais que de política. Mas há outro modo de salvar a política? No Brasil, como no mundo desenvolvido, é enorme o descontentamento com a falta de ética na política. Há algo mais elementar na ética que cuidar da prole? Aqui, estão em jogo prioridades do Estado e de cada pessoa. Há erros do governo, erros dos pais, erros nossos. Não seria esse um bom lugar para começar a construir laços, a melhorar como vivemos juntos?

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A internet não é tão democrática


Renato Janine Ribeiro
Valor econômico
15/08/2011

Sou fã da internet. Graças a ela, confiro datas, citações e muito mais, cada vez que escrevo. Descubro autores e ideias novas. Tenho, claro, que tomar cuidado com o que leio, porque há informações sem conhecimento, afirmações sem base. Mas também acho democrático que a rede permita difundir valores que antes não tinham lugar. Um jornal é um produto caro, por seus custos industriais e de distribuição. Daí que seja difícil fazer um jornal, como antes se dizia, alternativo. Já um blog pode ser barato - e servir de contraponto aos jornais maiores, expondo valores diferentes (como os blogs de esquerda fazem, no Brasil), oferecendo análises, algumas delas boas, ou, ainda, produzindo informação própria (o que é o mais raro - só lembro o caso de Geisy Arruda, revelado pelo Boteco Sujo).

Mas a maior esperança que muitos tiveram, inclusive eu, foi que a internet se mostrasse uma grande ágora, o espaço de uma cidadania global, um fórum de democracia quase-direta. A palavra grega - que significa a praça onde os cidadãos deliberam sobre assuntos públicos - parecia caber perfeitamente ao terreno virtual, em que todos adquirem igual cidadania e debatem temas de interesse geral. Ao pé da letra, a internet é republicana, porque abre lugar para a "res publica", a coisa pública. Assim, quando concorri à presidência da SBPC, em 2003, criei uma página na Web para a campanha; ela até surtiu efeito, pois tive uma boa votação (tratei do assunto em meu livro "Por uma nova política", Ateliê editorial).

Rede facilita a pressa e a intolerância

Ora, o que lamento é que, ao contrário do esperado, o espaço virtual exponha pouca divergência e pouca reflexão. Quase sempre, escreve num blog quem compartilha as ideias do blogueiro. Esse é o primeiro problema. A internet é democrática porque torna mais fácil surgir a divergência, limita o quase-monopólio da mídia tradicional, impressa ou não - mas a divergência que ela admite está no confronto entre os sites, não dentro de um site que seja, ele mesmo, democrático. Ou seja, a internet é democrática porque encontramos URLs para todos os gostos - mas não porque algum portal abrigue uma discussão inteligente sobre um assunto de relevo. A democracia dela está em que os vários lados têm como e onde se expressar. Mas não está na tolerância. A internet é democrática na luta entre os sites - não dentro deles, embora alguns tentem, heroicamente, fazer funcionar a democracia do debate e do respeito mútuos.

Os leitores são mais radicais, às vezes, que os próprios blogueiros. Vejamos o blog de Luis Nassif que, por exemplo, não esconde seu respeito pelas "raposas políticas" mineiras e publica posts de quem diverge dele. Só que os comentários dos leitores estão, na maioria, divididos entre a condenação, a ridicularização e a acusação. O debate esquenta, mas isso não quer dizer que os leitores respeitem a opinião alheia. Isso também acontece em órgãos da imprensa. É comum os leitores radicalizarem a posição do jornal ou do blog.

Até aqui, discuti o caráter pouco democrático - considerando um aspecto fundamental da democracia, que é o respeito ao outro, a liberdade de divergir - da internet. Mas há outro ponto importante. É que a democracia funciona melhor quando ela é produtiva. Em outras palavras, se a democracia não melhorar as condições de vida mas, ao contrário, piorá-las, nosso apreço por ela dificilmente se manterá. É triste lembrar isso, mas a democracia não é fim em si. Quando a República de Weimar levou a Alemanha a um impasse, deu no nazismo. Os constitucionalistas aprenderam com isso e as constituições recentes evitam ao máximo as falhas que permitiram o advento do regime mais criminoso da história moderna.

A questão, então, é: a internet, enquanto espaço em que se exprimem diferentes opiniões, não tanto no interior de cada unidade sua (portal, blog, site), mas delas entre si, é produtiva? Ela gera ideias novas, propostas, mudanças? Receio que pouco. Noto isso pela fraqueza da argumentação. É frequente haver comentários que são reações epidérmicas irritadas, imediatas, mais do que um pensamento. Nada proíbe as pessoas de se exprimirem. Nada as obriga, também, a pensar. Mas, quando se torna fácil divulgar urbi et orbi o que cada um acha, muitos sentem que é mais fácil escrever do que ler.

Hemingway dizia, de um desafeto: "He is not a writer. He is a typist". Pois há pessoas que não escrevem, digitam. Ou que escrevem sem ter lido o assunto em pauta e, pior, emitem julgamentos peremptórios. Recentemente, notei isso quando postei no Facebook um artigo de um analista que respeito, colaborador aqui no Valor, e algumas pessoas o atacaram severamente. Direito delas. Mas uns três confessaram só ter lido minha chamada de 420 caracteres, não o artigo que estava linkado. Ora, como se pode julgar algo ou alguém sem ler? Por espantoso que pareça, esse pequeno fato transmite a impressão de que é mais fácil escrever do que ler. Fácil, talvez seja; mas não quer dizer que seja melhor. Sempre houve mais leitores do que escritores. A internet inverte esse dado, talvez, mas ganha-se com isso? É perigoso quando as pessoas nem escutam direito o pensamento dos outros.

Em suma, o que falta para a internet ser o tão almejado espaço de criação democrática de ideias e projetos? Primeiro, o respeito ao outro. Segundo, uma argumentação racional. Não basta reagir com o fígado. Talvez, terceiro, seja preciso tempo: ler com atenção, refletir, só depois postar. A internet favorece a imediatez. Isso não ajuda a amadurecer o pensamento. Mas ela continua sendo uma arma poderosa, notável. Só que é preciso melhorá-la, e muito.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A autoridade presidencial


Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico
8/8/2011

Em meio ano, Dilma Rousseff demitiu quatro ministros, dos quais três de pastas importantes. No começo de seu governo, escrevi que ela estava em busca de seu estilo. Sucedia a dois grandes comunicadores. Fernando Henrique Cardoso, em que pese vivermos num país sem maior simpatia pelos intelectuais, usou sua cultura e simpatia – era o chefe de governo mais culto que tivemos desde José Bonifácio – para transmitir, à sociedade, uma nova agenda, mais econômica na verdade do que política. Lula utilizou sua verve e carisma para comunicar-se com uma parcela bem maior da sociedade. Se adotou políticas de inclusão social, aumentando a classe C e reduzindo as D e E, fez algo parecido no discurso político: dirigiu-se sobretudo aos pobres, falou com eles, em especial com suas famosas metáforas. E Dilma? Que estilo teria, perguntei em fevereiro, depois desses governantes que sabiam tão bem falar à sociedade?
Agora, temos dados concretos. Dilma continua falando pouco. Também não é de escrever. Ela assina. Assina demissões. Há uma lógica clara no seu modo de demitir. Quando um ministro é suspeito de corrupção, ela quer que preste satisfação à sociedade. Dá-lhe uma chance. Não demite ninguém de pronto. Porém, se a satisfação prestada não for convincente – e foi esse o problema de Palocci, que era o grande ministro de uma grande pasta, bem como o de Alfredo Nascimento, que dirigia um dos principais ministérios da Esplanada, não só pelo dinheiro manejado mas pela popularidade que gera, se construir e consertar estradas – o ministro sai. Esse não é um juízo criminal. Não sabemos se foram ou não culpados das acusações que lhes foram dirigidas. É um julgamento político. A política lida com aparências. Para ela, não basta a mulher de César ser honesta, ela tem de parecer honesta – para retomar o célebre dito de Júlio César, pronunciado assim mesmo na terceira pessoa.
Não basta acusar para derrubar um ministro. Ana de Holanda foi atacada no começo do governo, pelas políticas que adotava (ou não adotava) e também por uma questão de diárias pagas a ela. Dilma deu-lhe um abraço, num corredor, e disse que fosse em frente. Só isso. Não houve colo, força-tarefa para defender a ministra, nada. Mas Holanda se virou e saiu dos holofotes. Em suma, a presidente dá chance a quem é criticado e espera que a pessoa se mostre capaz de superar o mau momento. Porém, cobra. Um ministro não ficará no cargo fazendo-se de tonto.
Lembremos o episódio Hargreaves, em que o principal ministro de Itamar Franco, falsamente acusado de corrupção, se demitiu para que tudo fosse apurado e só voltou ao ministério devidamente isentado de culpa. Os tempos mudaram. Hoje, o único tema da oposição é a corrupção. Ela não discute como baixar a apreciação do real, não entra no mérito do trem-bala – apenas, acusa o governo de corrupto. Os decepcionantes PV e Marina, por sua vez, sequer fazem campanha contra a redução do imposto sobre os automóveis. Seria impopular defender mais impostos sobre os carros, mas o que se espera dos verdes? Que proponham o novo. Isso não vemos nem na oposição tucana, que só fala em desvio de verbas, nem na verde, que praticamente não fala. Hoje, se cada ministro acusado se afastasse, a oposição inviabilizaria a baixo preço e com meras palavras o governo. O que se pode esperar da presidência é que mande os acusados prestarem contas.
Já o desfecho do caso Jobim é diferente, mas normal. Se não o demitisse, a presidente se desmoralizava. O que temos de entender, e cabe aos jornalistas descobrir, é por que ele quis sair como saiu. Em poucas semanas, multiplicou provocações que não podiam ser toleradas. Recordo o sociólogo Emir Sader, que seria diretor da Casa de Ruy Barbosa. Numa entrevista, Emir se referiu a sua superior, a ministra Ana de Holanda, como “autista”. Era uma alusão bem humorada e até carinhosa. Bastou para que perdesse o cargo. Mas Emir é um acadêmico; nesta área, estamos acostumados a dizer o que pensamos, sem meditar muito as conseqüências.
Nelson Jobim é um político brilhante, que foi ministro de três governos seguidos e se destacou nos três poderes da República. Foi o melhor ministro da Defesa que tivemos desde a criação da pasta. Então, por que deu três declarações sucessivas e provocadoras? Queria sair como herói? Para tanto, precisaria estar representando uma causa nobre, contra uma eventual falcatrua. Nada disso está à vista.
Dilma não aceitou, nem podia aceitar, o que precisamente para os militares é o pecado mortal: a indisciplina e, com ela, a tolerância com a indisciplina. (Ainda hoje, paira a suspeita de que, se Jango não tivesse admitido a indisciplina dos sargentos e marinheiros em 1964, vários generais, entre eles o comandante de São Paulo, não se teriam revoltado; o golpe de Estado fracassaria). O chefe do ministério da Defesa desrespeitou a comandante-em-chefe das Forças Armadas. A essa altura, importa pouco avaliar como será Celso Amorim – como ainda sabemos pouco de Gleisi Hoffmann e Ideli Salvatti. Nenhuma dessas indicações, em que pesem as qualidades do ex-chanceler no Itamaraty, impressionou muito a opinião pública. Mas o que conta é que a presidente mostrou firmeza.
Ainda ignoramos como Dilma vai se comunicar. O que vimos é que exige respeito. É um dado importante. É um começo. Talvez precise terminar de ajeitar o governo. Isso demora – talvez um ano. Depois, terá de mostrar que ideais vai transmitir – como FHC e Lula fizeram. Está indo bem na tarefa de pôr ordem no ministério. Terá de mostrar para quê. Isto é: o que tem a propor ao povo. Esperemos.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A luta contra a corrupção desanima

Renato Janine Ribeiro
Valor econômico
01/08/2011

Escolhi um título que pode somar vários e até distintos significados. Na verdade, a corrupção nos desanima porque, embora a opinião pública a tolere cada vez menos, e tenhamos visto a demissão de vários acusados de mal-feitos, no Brasil e no mundo, restam três grandes problemas.

O primeiro é a suspeita de que o desvio de dinheiro público esteja crescendo, em vez de diminuir. Falo em suspeita e não em certeza, porque a corrupção, quando bem conduzida, não deixa traços. O tempo todo, lemos denúncias de atos corruptos, mas geralmente se trata de casos pequenos ou que foram descobertos devido a erros primários. É possível que os grandes corruptos jamais deixem impressões digitais. Para dar um exemplo: os sistemas de controle do governo federal checam se o funcionário pagou 8 reais por uma tapioca, mas dificilmente descobrem se ele foi subornado.

Em nossos dias, aumentaram a transparência dos gastos públicos e a indignação com os atos de corrupção. Isso é bom. Na ditadura, vivia-se a euforia com obras faraônicas e o sigilo das contas estatais. Mesmo assim, muitos pensam que a corrupção teria aumentado de lá para cá. Para além da questão factual, difícil de responder, fica a sensação de que algo está errado no regime democrático - se este efetivamente, aqui como na França, Estados Unidos e Itália, não consegue pôr fim à corrupção em larga escala.

A corrupção impune gera o descrédito pela política

Também é grave um segundo ponto: a percepção de que castigo, mesmo, não ocorre. Corruptos não devolvem o dinheiro, não são presos nem sofrem penas maiores. Assistimos agora a uma sucessão de denúncias sobre o governo federal. Dois ministros já caíram, sob a suspeita de práticas não-éticas. Ignoramos se houve mesmo corrupção. Não dispomos de provas para condená-los. Mas a opinião pública sentiu-se informada o bastante para se indignar com suas ações e lhes negar a legitimidade ética, que um homem público deve ter como um de seus maiores capitais. Daí, a demissão deles. Contudo, na série ininterrupta de denúncias que vem desde o governo Collor, passando pelos episódios da reeleição e da privatização das teles (governo FHC) e chegando ao mensalão (governo Lula), o fato é que pouquíssimos, se é que alguns, foram realmente condenados e/ou devolveram o dinheiro desviado. Tudo isso faz pesar, sobre o ambiente político, grande descrédito.

Mas o mais grave é o terceiro ponto. Nos parágrafos anteriores, supus uma clara divisão clara entre a minoria de corruptos ("eles" ou, nos debates políticos, "vocês") e a maioria de gente decente ("nós", "nós", "nós"). Ora, cada vez me convenço mais, lendo as manifestações contra a corrupção, de que a grande maioria delas emana de pessoas absolutamente indiferentes à corrupção. "Nós" não estamos nem aí para a corrupção. "Nós" queremos é instrumentalizá-la para fins políticos. Na maior parte dos casos, o que se lê são acusações severas a corruptos, que imediatamente são ligados a um partido. A bola da vez é o PT, mas poderia ser qualquer agremiação. Como ele tem o governo federal e conta com a oposição de vários grandes jornais, é alvejado. Mas lembrem que Alceni Guerra (PFL), ministro de Collor, e Ibsen Pinheiro (PMDB), que presidiu a votação de seu impeachment, tiveram as carreiras políticas truncadas por acusações falsas de corrupção.

O uso da corrupção como álibi para atacar o outro mostra, não só uma cabal despreocupação com as provas dos malfeitos, mas também um completo repúdio a investigar toda denúncia que afete os políticos do "nosso" lado. Se alguém diz que é preciso apurar todas as denúncias de corrupção, custe o que custar, sofre prontamente um ataque de "nós". Vi a revolta de um facebooker porque um jornalista reputado, discutindo o superfaturamento de obras públicas, pediu em seu blog que também fossem investigados casos do governo paulista. Ora, para o indignado seletivo, a corrupção só valia contra a política petista. O que ele condenava não era a corrupção, era o PT. Se a corrupção fosse de outro partido, não cabia investigá-la.

O que é particularmente grave nessa atitude, que está longe de ser rara? É o descaso pela honestidade. Se a corrupção serve apenas para atacar o outro, é porque falta real empenho em combatê-la, em separar o público do privado. O Executivo federal luta no Congresso para evitar CPIs sobre denúncias de corrupção no governo - mas o mesmo acontece com o governo paulista, que aprovou na assembleia CPIs ridículas, para impedir que se apurem acusações a ele. Pelo menos, desde 2003, os procuradores-gerais da República não hesitam em acusar líderes governistas, como no caso do mensalão. Dizia-se, no governo FHC, que o procurador-geral só engavetava acusações. Infelizmente, a corrupção não é monopólio de nenhum partido. Nem a ética.

Diante disso, nosso quase esquecido Rui Barbosa o que diria? Talvez que, "de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos homens, o homem chega desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e ter vergonha de ser honesto." Porque, aqui, não há meio termo. Ou condenamos a corrupção, ou somos seus cúmplices. Condená-la é condenar todo ato de corrupção, é exigir sua apuração, seja qual for o partido ou o governo que a pratique ou tolere. Quem é seletivo é conivente. E, dado que citei o brasileiro que talvez tenha escrito mais difícil em nossa história, a ponto de hoje ser pouco lido porque não se entende o que ele disse, posso terminar indo para o outro lado, o da telenovela, e dizer que na novela "Insensato coração" é muito bom o nome do blog do jornalista Kleber Damasceno, "Impunidade zero". É disso que precisamos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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