segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A crise na USP

O conflito na Universidade de São Paulo é um assunto político relevante. É uma crise “na” USP, não é a crise “da” USP, porque ela continua sendo a melhor universidade brasileira. Não é a PM que está em jogo. Ela é, se tanto, pretexto, sintoma ou álibi. Podemos resumir a questão em duas frases: é nossa melhor universidade, e a única universidade pública brasileira que não tem eleição direta para seu reitor. Há relação entre esses dois fatos? É a melhor porque não elege seu reitor, ou apesar disso? Cada lado responde de um jeito. A universidade mais próxima da USP, a respeitada Unicamp, elege seu reitor. O mesmo fazem a UFMG, a UNESP e a UFRJ. Então? Temos na USP um conflito áspero entre quem quer uma universidade “democrática” – entendendo por isso a eleição de seus dirigentes pelos professores, alunos e funcionários, mas não pelo povo (demos em grego, lembremos) – e os que têm como principal questão a qualidade da pesquisa. Quem quer qualidade se incomoda com a retórica da eleição direta, demasiado politizada. Mas o esquema uspiano de escolha do reitor é um fracasso histórico. Graças a ele o titular do cargo faz o sucessor, o que acontece desde 1989, com duas exceções, a mais recente datando de 2009, quando o governador José Serra nomeou o segundo da lista tríplice. Esse esquema faz que a comunidade não sinta o reitor como um líder que ela apoia.

O sistema de escolha na USP é único no Brasil. No primeiro turno, votam membros das Congregações e Conselhos Centrais, quase 2 mil pessoas, na maioria professores. Isso não é ruim. Ruim é que seu voto vale pouco. Cada um pode sufragar até três professores titulares (qualquer deles, pois não há candidaturas formais). Os oito mais votados vão a um segundo turno, perante um colégio de 360 membros, composto pelos Conselhos Centrais, sobre os quais a reitoria tem forte influência. Esse colégio envia uma lista tríplice ao governador, que costuma nomear o mais votado. Mas, quando Serra escolheu o segundo, a universidade nem chiou – sinal de que nem ela leva muito a sério sua própria votação. A idéia original do sistema era que nomes surgissem espontaneamente, de modo que, sem fazer campanha, algum valor notável despontasse dentre os oito, depois entre os três, e acabasse escolhido pelo governador. Mas nunca foi assim. Sempre a disputa se polarizou, desde o início, entre dois ou três nomes.

O que fazer? O mais simples é eliminar o segundo turno e passar a decisão para o colégio amplo. Ou, mais radicalmente, seguindo o que a lei federal faculta, instituir uma eleição direta na qual os votos dos professores pesem 70%, ficando funcionários e alunos (e talvez ex-alunos) com 30%. Mas a representação sindical e a dos alunos querem bem mais que isso, o que apavora os bons pesquisadores, receosos de que a universidade seja tomada por micropartidos políticos. Daria para chegar a um acordo que, pelo menos, reduzisse o poder da reitoria na escolha do sucessor. Mas não há conversa. Relatei o assunto no Conselho Universitário, este ano, e metade dos que falaram defendeu uma “estatuinte”: o curioso é que vários oradores nem mencionaram o assunto em pauta, que era a eleição do reitor...

Posso atestar, por minha experiência na Capes, convivendo com reitores do Brasil todo, que a eleição direta, apesar de trazer o risco da escolha de um reitor demagogo e sem compromisso com a qualidade, tem levado a bons reitores ou, pelo menos, razoáveis. Isso não quer dizer que o sistema seja perfeito. Desde Tarso Genro, é política do MEC nomear o mais votado – mas sei que, quando ele levou ao presidente da República sua proposta de reforma universitária, depois sepultada, Lula foi taxativo: não tiraria da lei a lista tríplice. Na prática, o ministro nomeia o preferido da comunidade; mas as universidades federais não têm a autonomia das paulistas. A USP, Unesp e Unicamp não precisam ir a cada mês pedir dinheiro ao governo. As universidades federais, sim. Daí, também, que no período democrático nunca um reitor paulista tenha declarado apoio a um candidato a governador ou presidente. Já a grande maioria dos reitores federais é induzida a apoiar o candidato do PT, como se viu em 2006 e 2010. Em suma, nada disso é simples. Os reitores federais, eleitos, têm apoio da comunidade, mas pouca autonomia em face do governo federal.

Não estamos na situação em que um lado é inteiramente certo e o outro, totalmente errado. Mas talvez o maior problema esteja em confundir poder e autoridade. A reitoria tem poder. Os defensores da eleição direta querem democratizar esse poder. Mas, numa boa universidade, o poder é menos que a autoridade: o respeito que alguém conquista por sua qualidade ética ou, no caso, científica. Não há nomeação ou eleição que confira autoridade. Disputar o poder é perder o que é próprio de uma boa universidade.

Mesmo assim, é preciso negociar. Um lado tem o poder, sabe que é impossível – salvo uma improvável revolução que tivesse por meta principal mudar a escolha do reitor da USP – alterar o Estatuto sem o Conselho Universitário, e conclui que basta aguentar duas invasões da reitoria por ano. O atual reitor tinha prometido mudar as regras de escolha no seu primeiro ano de mandato; está para vencer o segundo e não o conseguiu. Já o outro lado é mobilizado, procura tornar o reitor antipático, provavelmente não é majoritário na USP e não parece querer negociar uma solução intermediária. Daí, um impasse desnecessário e que mancha a imagem externa da USP – na qual, enquanto isso, ótimos pesquisadores, da Medicina à FFLCH, continuam seu trabalho.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A democracia e a economia

Por Renato Janine Ribeiro

Valor Econômico, 21/11/2011

Em nosso tempo, nada rivaliza com a economia, em termos de poder. Menos de dois séculos atrás, Karl Marx chocava o mundo ao dizer que a política (estou simplificando) seguia a economia. Faz cinquenta anos, a direita usava argumentos religiosos, espirituais, morais para enfrentar o "materialismo ateu", que reduzia a riqueza do ser humano, criado à imagem de Deus, à vulgaridade econômica. Mas como bem disse, embora grosseiramente, James Carville, o marqueteiro de Bill Clinton que foi decisivo para elegê-lo presidente dos Estados Unidos: "O que conta é a economia, seu estúpido".

Esse fato tem vários desdobramentos. O primeiro fortalece a democracia. Acabou, quase por completo, pelo menos nos países em que há comunicação de massas, a ideia de que os pobres acatariam sua condição porque Deus assim o quis. Uma notável peça de Pedro Calderón de la Barca, "O grande teatro do mundo", sustentava, na década de 1630, que cada um deveria contentar-se com sua condição social, do miserável até o monarca, e cumprir o seu papel (daí, a referência ao teatro) adequadamente. Hoje, nem pensar. Em nossa sociedade, todos querem viver melhor. Mesmo quem está no topo da escala social e poderia nada almejar a mais, continua desejando subir. Quanto aos mais pobres, nenhum argumento religioso os convencerá de que devem suportar sua situação, digamos, cristãmente. Um arcebispo de Diamantina, líder da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, disse certa vez que precisa haver pobres, e mesmo muito pobres - porque, se não houver, como os ricos conseguirão ir para o céu, não podendo exercer a virtude da caridade? Admirável essa preocupação de salvar os ricos no Além, ainda que às custas dos pobres aqui e agora. Mas acabou. Ninguém mais diria essa tolice, hoje.

Vencer a pobreza só é possível com a economia

Portanto, os pobres querem, dos governos, que os ajudem a melhorar de vida e a deixar a pobreza. A classe média quer subir na vida e os ricos, pouco numerosos mas com bala na agulha, também. Isso faz que, em países como o nosso, a grande maioria de pobres tenha bem claro o que deseja da democracia: que ela seja social, isto é, que não fique só na política, mas mexa também na estratificação da sociedade, tornando-a mais justa. Esse fator, fortemente democrático, está ligado ao primado da economia em nossos tempos.

Mas há outro lado, que é pouco democrático. Porque quem entende da economia? Bem poucos. O sufrágio universal se impôs. Os eleitores têm cada vez mais consciência do que desejam e querem. Mas o instrumento para realizar essa prosperidade crescente, ou pelo menos para acabar com a miséria, reduzir a pobreza e baixar a desigualdade, é arcano - isto é, de difícil compreensão. Em outras palavras: está numa ciência (ainda que não exata), cujo domínio exige especialização e conhecimento profundo. Daí que as eleições tenham alcance limitado. Isso porque, entre o dia da eleição, que é quando se manifesta a democracia, isto é, a soberania popular, e os quatro anos de gestão dos negócios públicos, onde a economia prevalece, há uma distância - e mesmo um abismo.

Tudo isso, tanto o aspecto democrático que consiste num povo que não aceita mais a pobreza como natural ou santa, quanto o lado pouco democrático de uma gestão das coisas cuja compreensão escapa à esmagadora maioria, traz consequências para as democracias. Primeira e óbvia: nunca se promete uma recessão, um empobrecimento. O que se oferece é o contrário. Vejam a Califórnia, tema de reportagem de novembro na "Vanity Fair", acessível na Internet: o Estado quebrou, vários municípios ricos quebraram, sobretudo porque uma emenda constitucional de perfil conservador exige dois terços do Legislativo para aumentar qualquer imposto. Kaputt. É um caso extremo, mas que mostra que políticos, quando concorrem a uma eleição, têm de omitir o que vão fazer, ou mesmo mentir. De onde José Serra tiraria os aumentos que prometeu, no mês final antes da eleição de 2010, para o salário mínimo e a bolsa-família? Não o acuso; apenas digo que nenhum político pode agir de outro modo. Vão prometer. Então, a emancipação do povo, que consiste em ele não acatar mais a pobreza, vem junto com sua infantilização: ao povo, não se conta a verdade.

Daí, outra consequência: o primeiro ano de governo é de cortes e talvez de recessão. Já o ano da eleição tem que ser próspero, custe o que custar. Os economistas ficam de cabelos em pé ao verem isso, claro. Mas, por outro lado, suas receitas só eles entendem. Pouca gente mais. Alguém acredita que FHC entenda profundamente de economia? Ele conhece finamente a sociedade, seus processos e sua política. Emprestou sua competência para viabilizar o Plano Real, e com ele ganhou dois mandatos presidenciais. Mas a economia tem segredos. Por isso, quem entende dela - ou quem convence os outros que entende dela - tem acesso direto aos governantes.

E aqui vem nosso último problema. Quase todo o receituário dos economistas, salvo os keynesianos e os (poucos) marxistas, é conservador. Propõe corte de gastos públicos, redução de direitos sociais, até mini-recessões. Não há como defender isso junto ao povo, seja este grego, italiano ou brasileiro. Há alternativas? Claro que sim. A Argentina renasceu sem esse receituário. O Brasil superou 2008 sem essas receitas. A Islândia se recusou a cumpri-las. Claro que, em outros casos, o caminho será outro. Mas geralmente só se diz a receita quase única, aquela que nunca passaria numa eleição. Daí que, se a democracia exige uma economia em crescente prosperidade, a atuação dos economistas nem sempre seja muito democrática.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Ministérios de primeira e de segunda

Por Renato Janine Ribeiro

Valor econômico, 14/11/2011

Por que o governo não dá a merecida importância a ministérios como Esportes, Turismo - que foram moeda de troca na composição da aliança no poder e talvez por isso tiveram seus ex-titulares acusados de malfeitos - e Cultura, cuja ministra é criticada, pelos artistas, por um desempenho que não lhes agrada? São três Pastas pequenas e secundárias na Esplanada, mas portadoras de um enorme futuro. Tudo indica que, em poucos anos, o aumento do lazer, inclusive criativo, a preocupação com a saúde e a difusão do hábito de cuidar do corpo vão gerar um grande boom, econômico e social, na cultura, nos esportes e no turismo. Por que, então, figuram eles no final da hierarquia dos ministérios? Por que essa miopia dos governantes - e aí incluo os estaduais e municipais?

Esportes e Turismo estão entre os ministérios cujos primeiros titulares no governo Dilma foram acusados de corrupção. A ministra da Cultura foi chamada de inepta. Tenham ou não razão os seus críticos, essas Pastas sempre ficaram em segundo plano. Cultura teve alguns grandes ministros, a começar por Celso Furtado, mas nunca muito dinheiro. Mas será nesses ministérios, e alguns outros, que muita coisa boa poderá nascer no futuro próximo. Então, ou o governo passa a priorizá-los - ou vamos perder grandes oportunidades.

Esses setores têm potencial de riqueza econômica. Nos esportes estão hoje dois eventos de alcance mundial, a Copa e os Jogos Olímpicos. Mas, para além das efemérides, o fato é que, quanto mais as classes médias e a sociedade em geral queiram ter maior prazer com seu corpo, maior "wellness", palavra ainda sem tradução mas que designa um bem-estar intensificado, mais crescerá a área de Esportes. Isso abre perspectivas inéditas para os ministérios e secretarias, estaduais e municipais, da área.

Governo despreza as Pastas de maior futuro

Turismo é outra Pasta que às vezes serve, como Esportes, para fazer alianças a baixo custo com partidos ou líderes a quem você não teria coragem de dar a Fazenda, a Justiça ou a Casa Civil. No segundo governo Lula, foi o prêmio de consolação a Marta Suplicy por não receber a Educação - e ela fez uma boa gestão. Contudo, politicamente é um ministério fraco, até porque notícias a respeito saem no caderno de Viagens e não no de Política... Mas cada vez mais o prazer de viajar estará na ordem do dia. Não por acaso, quando Mares Guia ocupava a Pasta, no primeiro governo Lula, seu amigo Claudio de Moura Castro propôs medidas em favor do ecoturismo, do turismo radical e de outras formas de prazer, digamos, "de ponta".

Ao contrário de Esportes e Turismo, a Cultura não serve de moeda de troca partidária - ou porque se tem mais respeito por ela (improvável), ou porque se vê menor chance de negócios. Mas costumo cotejá-la com Ciência e Tecnologia. São dois ministérios refinados, que lidam com assuntos de qualidade. Contudo, embora haja bem mais artistas do que cientistas no Brasil, o MCT é mais rico que o MinC. Por quê? Porque os cientistas são organizados. Unem-se. Pressionam. Embora biólogos e físicos praticamente controlem a politica científica, também as outras áreas conseguem seu quinhão. Já na Cultura, é difícil. A criação é muito dispersa. A verba acaba pequena.

Temos aqui grandes oportunidades desperdiçadas. É provável que, em poucos anos, as áreas de maior interesse das pessoas sejam os esportes e a cultura - com uma brecha para as viagens, claro. "Mens sana in corpore sano", dá vontade de dizer, mas com uma diferença: o ideal da primeira metade do século XX - ginástica sueca e alta cultura - cede lugar a exercícios alternativos, variados, e a uma cultura cheia de diversidade, criativa, espontânea. Acredito que aí surgirão negócios economicamente poderosos. Ouso dizer que quem apostar em menos carros e mais academias e centros culturais (ou em cultura sem centros) não só fará um bem para a humanidade como, além disso, poderá ganhar um bom dinheiro.

Por que, então, os governos deixam esses ministérios num segundo plano? É verdade que o único ministro de FHC maior que seu cargo foi o dos Esportes - Edson Arantes do Nascimento - e que o único ministro de Lula maior que o seu posto era o da Cultura - Gilberto Passos Gil Moreira. No entanto, Pelé foi um ministro apagado e Gil várias vezes esteve ameaçado de ficar sem orçamento. Pelo menos uma vez, eu soube que esteve a ponto de pedir demissão, pois iam cortar 57% de suas verbas. Imaginem só, perder Gilberto Gil: falta audácia a nossos governos.

Sei que algumas Pastas são decisivas. Uma comanda a economia, da qual hoje tudo depende. Ora é a Fazenda, ora o Planejamento. Outra dirige a política, as leis - é a Justiça. A terceira é a Casa Civil, que articula o governo - tanto que nos Estados se chama secretaria de Governo. Um grupo de Pastas que já foi decisivo, os militares, hoje se reduziu à sua real significância, no ministério da Defesa. Muito bem.

Temos os grandes ministérios "sociais", como Saúde, Educação e Desenvolvimento Social. Eles investem no futuro, pois quando funcionam bem reduzem doenças, melhoram a qualidade de vida, qualificam as pessoas no trabalho e no lazer. Merecem seus orçamentos altos.

Mas o que não dá para entender é que, ainda hoje, Pastas que têm carimbado no seu DNA as palavras "futuro", "prazer" e mesmo "felicidade" fiquem relegadas a um segundo plano, com verbas pequenas e, sobretudo, pouca antevisão, pouca projeção do novo, servindo de moeda partidária e se exigindo pouca performance delas. Um mundo novo está surgindo, e falta arrojo aos governos para perceber tudo o que pode nos trazer - e, mais que isso, tomar as medidas nesta direção.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

De cargo em cargo

Por Renato Janine Ribeiro

Valor econômico, 7/11/2011

Uma coisa que me surpreendeu, quando trabalhei em Brasília num cargo de confiança bastante técnico e nada partidário (como diretor de avaliação, na Capes, incumbido de avaliar os milhares de doutorados e mestrados brasileiros), foi ver como é difícil a situação de quem assume tais cargos. Esse assunto costuma ser tratado politicamente, sob a forma de críticas ao número de cargos de confiança. Mas nunca o vi ser tratado humanamente, vendo a dificuldade que acarreta para quem se muda para a capital por um período, em princípio, provisório. Esse lado "humano", obviamente, tem consequências políticas.

Explicando os cargos de confiança: eles incluem, além dos ministros e secretários executivos, uma hierarquia de DAS, que vão de 1, o mais baixo, até 6, diretamente subordinado ao ministro. Cada nível de DAS tem remuneração e prerrogativas próprias. Por exemplo, só os DAS 4 e superiores têm direito a auxílio-residência, necessário para quem vem de fora da cidade em que vai trabalhar. Isso vale para Brasília, onde está a maioria dos dirigentes federais, mas também para outras cidades. Por exemplo, o diretor da Biblioteca Nacional, que fica no Rio de Janeiro, tem seu DAS (ou, como se diz, "é um DAS") e, se vier de fora do Rio, receberá auxílio para a moradia. Este valia 2100 reais por mês em 2008 e é apenas suficiente para pagar as despesas de residência, até porque é prudente o DAS evitar um compromisso de longo prazo (o aluguel de um apartamento por tempo fixo), dado que pode ser demitido ou demitir-se a qualquer momento.

Outra prerrogativa: os DAS 5 e 6 têm direito a usar carro oficial (a serviço, obviamente), enquanto os outros DAS só podem utilizá-los acompanhando os primeiros. Uma curiosidade é que o DAS-5 usa carro oficial branco, com logotipo enorme do órgão em que trabalha, enquanto o DAS-6 utiliza carro oficial preto, com discreto logotipo genérico anunciando tratar-se de serviço público federal. Há um curioso dégradé que vai do lógico (o pagamento diferenciado, certos direitos hierarquizados) ao risível (a cor do carro e, pior, as formas de tratamento que o dirigente tem de usar). Certa vez, tive de responder ao mais importante dos senadores. Era uma formalidade qualquer, mas disse à minha secretária que subscreveria "atenciosamente" sem nenhum problema mas me recusava a dar, àquele prócer, a fórmula "respeitosamente". Veio então uma funcionária categorizada com um manual, que mandava autoridades de meu nível usar o "respeitosamente" com os membros do Senado Federal. Lembrei um livro que escrevi sobre a etiqueta nas cortes do Antigo Regime...

Um depoimento de cinco anos na ponte aérea

Voltando ao que é sério, bastante sério: numa Federação, é preciso que um número razoável de DAS-4 a 6 venham de fora da capital. Compreende-se que os DAS-1 até 3, que não têm auxílio para morar, sejam sobretudo de carreira e/ou já morem em Brasília. Contudo, quem sai de seu Estado para viver no Distrito Federal enfrenta escolhas difíceis. Precisa decidir se muda mesmo, ou se mantém casa e família no Estado de origem. Se voltar para casa toda semana, a passagem sai do seu bolso. Este é um ônus financeiro alto. Há também o ônus afetivo de estar longe dos entes queridos. A alternativa é mudarem todos para a capital. Isso implica conseguir um emprego para o cônjuge e transferir os filhos de escola, com as rupturas de vínculos que isso requer. Evidentemente, em especial ante os riscos de apagão aéreo, humanamente falando a solução menos ruim é a segunda, mas notem os custos. Evita-se o desgaste do alto funcionário, porém seu cônjuge precisará de um emprego, geralmente no governo, mas em outro ministério, recendendo um tanto a favor, e os filhos mudarão toda a sua rede de relações, numa fase delicada da vida. Mudam amigos, sotaque, hábitos.

Dá para entender que quem se transfere mesmo para Brasília dificilmente queira sair de lá? Delfim Neto disse certa vez que camadas geológicas vão se depositando no DF, cada uma legada por um governo. Porque quem pagou tanto para se mudar dificilmente vai querer, desde que se adapte, voltar para seu Estado. Daí que muitos procurem se manter lá, seja no governo, seja em entidades não governamentais mas que com frequência têm contatos com o poder público.

Daí, também, outra consequência. Se é natural supor que, ao fim de quatro ou oito anos, isto é, de um mandato presidencial, mudem os detentores dos cargos - o que em tese permitiria prever o retorno, não fosse o enorme custo afetivo, de que falei - também sucede muita demissão e nomeação ao longo do mandato. Chefes e subordinados se indispõem. Vi ministros realocarem DAS que eles mesmos haviam demitido. Porque há o lado humano. Imaginem que em maio, na metade do ano escolar, alguém deixe o cargo e, com ele, Brasília; como ficam o cônjuge e os filhos? Em dinheiro, o custo de voltarem todos para seu Estado já é alto. Em termos humanos, o preço sobe exponencialmente. Daí que não se queira largar o cargo. Por isso, ou as pessoas se apegam a eles e fazem de tudo para os manter, ou procuram ir de cargo em cargo, governo após governo. Daí, finalmente, as camadas geológicas...

O que fazer para melhorar essa situação? Não sei. A solução que eu e vários adotamos foi a de pagar passagens para nossos Estados, onde continuamos vivendo, mesmo trabalhando a semana toda em Brasília. Não aconselho, porém; você fica sem raiz. Passei quase cinco anos sem saber onde vivia. Deve haver uma solução para isso, mas ignoro. Creio que deveria, pelo menos, levantar um problema que afeta muitos quadros graúdos do país, mas passa sem comentários na discussão politica.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br