segunda-feira, 14 de maio de 2012

A democracia e a presidência

Autor(es): Renato Janine Ribeiro Valor Econômico - 14/05/2012 Ouvimos com frequência advogados, juristas, políticos e analistas políticos dizerem que, no Brasil, a iniciativa de legislar saiu do Poder Legislativo e foi tomada pelo Executivo. Dizem isso, e o lamentam. Concordo com o diagnóstico, mas nem tanto com o lamento. Há razões fortes, objetivas, para o protagonismo legislativo da Presidência da República. Isso porque, gostemos ou não (eu, pessoalmente, não gosto), em nosso país o Poder mais democrático é o Executivo. Quero dizer: ele é o Poder cuja eleição é mais democrática. Só na escolha do chefe de Estado todos os brasileiros são iguais, todos os nossos votos têm o mesmo peso. Esse fato fortalece a Presidência, aos olhos do povo, e enfraquece o Parlamento. Sim, há outro argumento que é dado para nossa preferência - brasileira, latina ou do continente americano - pelo presidente, em detrimento dos parlamentares. É que nós, sobretudo os latino-americanos, gostaríamos de personalizar a política. Para nós, o nome da pessoa e sua história importam mais que o partido e seu programa. Seria esse, quem sabe, um sinal de nossa imaturidade política. Mas tal explicação, mesmo que parcialmente correta, é insuficiente. Na verdade, a grande ferida de nossa vida institucional é que a forma de composição da Câmara dos Deputados reduz seu peso democrático. No regime presidencialista, que predomina nas Américas, é comum o Parlamento (na verdade, usa-se mais o nome "Congresso") contar com duas casas. Uma delas, a Câmara dos Deputados, dos Representantes ou Câmara Baixa, representa o povo e é renovada integralmente cada tantos anos. Outra, o Senado, tem mandatos longos, conta com membros mais experientes (mais velhos, também, ou, pelo menos, que tenham "senioridade") e representa os Estados, províncias ou até mesmo, em raros casos, outras organizações da sociedade. O Senado, ou Câmara Alta, é ainda chamado de "casa revisora", porque seria menos importante que os deputados. Estes, porque representam o povo, numa democracia são mais significativos. O Senado revisaria decisões dos deputados, mas teria menos atribuições que eles. Só que no Brasil o Senado é mais relevante que a Câmara. Por quê? Insisto: esse fato é estranho, se o poder vem do povo e quem representa o povo são os deputados (o Senado, em nosso sistema, representa os Estados). Acredito que a Câmara se tenha esvaziado porque não representa fielmente o povo e, em parte, imita o Senado. Há um piso e um teto para o número de deputados por unidade da federação, o que achata a representação do Estado mais populoso e exacerba o número de deputados de vários Estados com pequena população. Na Câmara, os brasileiros não são iguais. Uns valem mais que outros. Isso é correto? No Senado, sim. O princípio de nosso Senado é dar igual peso a cada unidade federada. Há um certo elemento artificial e mesmo artificioso nisso, porque, ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil não foi formado pela união de Estados soberanos. Foi a república, desde 1889, que concedeu autonomia às antigas províncias, antes governadas por presidentes nomeados pelo poder central, sediado no Rio de Janeiro. O Senado não deriva da formação histórica do país. Ele é uma criação política, já no Império, que mudou de papel ao longo de nossa história republicana. Mas assim seja: no Senado, faz sentido cada Estado ter o mesmo número de votos. Só que, quando esse princípio de representar os Estados (e não só o povo) se estende à Câmara, esta perde seu significado. Lembremos que a Constituição americana garante, a cada Estado, o "mínimo" de um deputado. A nossa assegura oito... Daí, também, que lá haja Estados com um deputado e dois senadores, isto é, mais senadores do que deputados. Aqui, o menor Estado tem três senadores e oito deputados. Uma Câmara que se senatizou se priva de parte de seu papel. Ela deveria representar o povo ou, se quiserem, o eleitorado. Quando passa a representar o povo com ressalvas, sua missão constitucional se perturba. Vejamos: São Paulo, com 21,5% da população, tem 13,6% dos deputados. Em contrapartida, chegando-se aos Estados menos populosos, a super-representação fica nítida. Acre, Amapá, Rondônia, Roraima e Tocantins, contando com entre 0,3 e 0,8% da população brasileira, têm cada um 1,6% dos deputados. Já o Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Sergipe superam 1% da população cada um, mas ainda estão afastados do 1,6% de que dispõem na Câmara. Essa desigualdade se acentuou com a mudança na Constituição efetuada pelo ditador Geisel, em 1977. Com isso, a Câmara não representa cada brasileiro; representa paulistas, acreanos, mineiros; não é o que devia ser. Imitando (mal) o Senado, ela falta à sua missão e perde a vocação de voz maior do povo brasileiro. Disso, o que decorre? Que, se quisermos ver onde a voz do povo melhor se expressa, é quando escolhe o presidente da República. Não importa quem seja ele ou ela, ou seu partido. Isso valeu para Fernando Henrique e Lula, vale para Dilma e valerá para seus sucessores, se não houver uma grande mudança institucional. Será muito difícil alguém considerar que a voz do Parlamento - ainda por cima, dividido em numerosas legendas - seja mais representativa da vontade popular do que o eleito do voto universal e, sobretudo, igual. Se quisermos que o Parlamento ganhe o poder que deve ser seu, antes de mais nada precisa ser fortalecida a Câmara e, para isso, a principal medida tem de ser fazê-la representar o povo, não os Estados - que, para isso, já têm o Senado. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A Constituição tem um programa

Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 7 de maio de 2012 O Supremo falou: as políticas de ação afirmativa são constitucionais. Elas consistem em tratar desigualmente os desiguais, por um tempo e como meio, para que se consiga um fim fundamental, que é promover a igualdade de direitos entre as pessoas. A unanimidade na decisão é um sinal de que a sociedade brasileira, pelo seu maior tribunal, opta pela inclusão social dos grupos que, ao longo da história, foram discriminados negativamente. Mas vale a pena ver algumas implicações de longo prazo da decisão do STF. Comentei na semana passada que o Supremo dá mais valor a direitos humanos do que aos políticos. Nossos juízes compreendem melhor os direitos que têm pessoas - individuais ou mesmo muitos indivíduos - como titulares do que os que têm a pólis, a sociedade inteira como sujeito: por exemplo, o direito ao que se chama "democracia", o poder do povo. Conta-se que certa vez Fernando Henrique Cardoso teria reclamado de uma sentença do Supremo, má para as finanças governamentais, dizendo que "eles não pensam no Brasil". Mudando o contexto, eu poderia sugerir que os ministros pensam mais nos brasileiros do que no Brasil. Os brasileiros são titulares dos direitos humanos. Estes têm sido tratados com esmero por nossa corte suprema. Já o Brasil é a sociedade democrática que estamos construindo. A esse respeito, o STF parece ter menos convicções. Tolerou, como observei aqui, a concessão de dois governos estaduais a candidatos derrotados nas urnas. Se a reflexão dos ministros desse à questão da democracia a atenção que tem dedicado aos direitos humanos, isso não teria acontecido. Talvez pela mesma razão, salvo erro meu, os ministros não basearam seus votos sobre a ação afirmativa no artigo 3º da Constituição, que define os "objetivos fundamentais" de nossa sociedade. O Brasil assim se propôs em 1988 a "construir uma sociedade livre, justa e solidária" e a "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". Durante os primeiros anos de vigência da Constituição, esses pontos ficaram de lado. O salário mínimo não subia sequer o mesmo que a inflação, contrariando o artigo 7º da Carta, que diz quais necessidades do trabalhador ele deve atender. Mas os "objetivos fundamentais" do país foram se implantando. Por exemplo, é meta do Brasil a integração latino-americana (artigo 4º). Disso, podemos sugerir que o Mercosul e ações análogas sejam imperativo constitucional. Se um governo quiser sair dele sem razões muitíssimo boas, o Supremo poderá impedi-lo. Ou, se tivesse pretendido participar da invasão do Iraque, a corte suprema poderia tê-lo proibido, dado o princípio constitucional da não-intervenção. Não quer dizer que o Brasil não possa travar guerra alguma, nem ter conflitos políticos com os países vizinhos; mas isso teria de ser bem justificado. Nossa Constituição manda erradicar miséria e pobreza Entendo que as ações afirmativas visam a erradicar a desigualdade acentuada. Aliás, a Constituição manda erradicar, não só a miséria, mas a pobreza. Simplificando, é pobre quem vive da mão para a boca. Poupa ou progride pouco. Tudo o que ganha vai para sua sobrevivência. Já o miserável, trabalhando ou sem emprego, corta na própria carne. Alimenta-se de suas reservas físicas. Degrada-se. Está abaixo da linha de sobrevivência. Até se entenderia que a Carta priorizasse o fim da miséria. Mas ela não quer erradicar só esse traço indecente de nossa sociedade. Ela propõe "erradicar a pobreza". A Constituição quer uma sociedade brasileira de classe média. Quando a presidente Dilma disse que esse era seu objetivo, expressava a meta dos constituintes de 1988. Eles não quiseram o fim dos ricos. Mas propuseram o fim da pobreza. Todos devem ter direito de ascender na vida e de, poupando, adquirir bens duráveis. Se o farão, é outra coisa; mas a sociedade deve dar-lhes oportunidade para isso, de modo que, se não o conseguirem, tenham que culpar somente a si mesmos. Exige-se, do governante, que aja para reduzir a desigualdade injusta. É o que fundamenta - e limita - as ações desse tipo. Quando se tornarem desnecessárias, não deverão persistir; mas não antes disso. Assim, se é lícito adotar ações que ampliem a presença social de negros, mulheres e egressos de escolas públicas, por outro lado serão inconstitucionais medidas legais que direta ou mesmo indiretamente aumentem o protagonismo de brancos, varões e formados por escolas caras. Evidentemente, ninguém colocará isso às escâncaras; mas nosso país é perito em subsidiar os ricos e a classe média em programas ditos sociais, que aumentam, em vez de diminuir, a desigualdade. Parece-me legítimo interpretar a parte programática da Constituição de modo a determinar ações dos gestores públicos, em especial, penso eu, a das prefeituras. Há dias, Laura Capriglione informou, no jornal "Folha de S. Paulo", que a Prefeitura de São Paulo gasta "per capita", no Jardim Europa, o dobro do que despende em bairros pobres e necessitados da cidade. A Constituição permite contestar essa política. É até plausível contestar políticas que, mesmo não agravando a miséria, não a minorem. Talvez as consciências ainda não estejam maduras para isso. Mas acredito que em breve, se os poderes eleitos na cidade ou no país não explicitarem políticas de redução da pobreza, sobretudo a extrema, serão cobrados para tanto, pela opinião pública, pelo voto popular e também pelo Ministério Público e o Judiciário. Desde já, deveríamos exigir que cada plano diretor diga como vai melhorar a condição de vida dos pobres. Leis ou atos que aumentem a distância entre quem mora bem e quem mora mal devem ser declarados inconstitucionais. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

O Supremo e a Constituição

Renato Janine Ribeiro Valor Econômico 30/04/2012 Ao tomar posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Ayres de Brito recomendou ler a Constituição todos os dias. Isso vale para quem opera com o Direito e, penso eu, para todos os cidadãos. Muito bem. Mas será bom que os tribunais superiores e o próprio Supremo também sigam a sugestão do novo chefe do Poder Judiciário. Porque decisões importantes do Tribunal Superior Eleitoral, endossadas ou toleradas pelo STF, vão contra o maior princípio de nossa Constituição: a democracia. Há várias teses sobre a democracia. Mas uma delas é fundamental e inconteste. Democracia é, literalmente, poder do povo. Só há democracia se o povo escolher os governantes. É ele, diretamente ou por seus representantes eleitos, quem decide leis e impostos. Ninguém governa democraticamente um país, Estado ou município se não tiver sido eleito. Nas Américas, que adotam o regime presidencialista, os chefes do Executivo são votados diretamente pelo povo. Só em casos excepcionais, como se vagar o cargo perto do fim do mandato, cabe uma eleição indireta para completá-lo. E nessa eleição votam representantes do povo, isto é, pessoas que este elegeu. No parlamentarismo, o povo não elege diretamente o chefe de governo, mas vota em deputados, que elegerão o primeiro-ministro. Também aí, só pode governar quem o povo, em última análise, escolheu. Na democracia, todo poder emana do povo e é exercido em seu nome, como disseram nossas Constituições republicanas, ou diretamente por ele, como acrescentou a Constituição de 1988. A democracia não admite governante não eleito O que não se admite, num regime democrático, é que se dê posse ao candidato derrotado pelo povo. Esse é o fim da democracia. Mas, nos últimos anos, o TSE cassou mandatos de governantes eleitos e mandou dar posse ao candidato derrotado. Em 2009, destituiu os governadores do Maranhão, Jackson Lago (PDT), e da Paraíba, Cassio Cunha Lima (PSDB), dando seus cargos a Roseana Sarney e José Maranhão. O mesmo tinha acontecido em vários municípios - como Mauá (SP), que, depois da eleição de 2004, foi governado por quatro anos pelo candidato perdedor. Debato aqui só os eleitos pelo voto majoritário - presidente, governadores, prefeitos e senadores. No voto proporcional, a cassação prejudica o candidato, mas sua cadeira permanece com seu partido (ou coligação). O voto popular é preservado. No majoritário, a cassação tem o efeito oposto. É um tapetão. Descarta o voto popular. Não sou contra cassação de governantes pela via judicial. Se cometeram crimes graves, percam o mandato. Haverá que medir a gravidade do delito. A cassação deveria valer somente para delitos sérios. Hoje ela está prevista para tantos casos que sua aplicação ou não é aleatória; não há meio termo. Mas essa é uma questão de dosagem jurídica do erro e da pena. O que discuto aqui é mais fundamental: é teórico, é constitucional, é ético. O que ofende a essência da democracia é dar posse ao candidato que o povo recusou. Nenhum tribunal tem, no regime democrático, o direito de inverter a decisão popular. Ele organiza o processo eleitoral. Pode mandar recontar os votos. Pode até anular uma eleição e convocar uma nova. Mas não pode virar pelo avesso a vontade do povo. Nem um tribunal, nem ninguém. Ainda em 2009, o governador de Tocantins também foi cassado. Mas, alegando razões técnicas, o TSE determinou nova eleição - indireta, pois se acercava o fim do mandato e seria difícil uma consulta popular. Foi uma solução correta. O novo governador foi eleito por deputados que o povo tinha escolhido. Teve legitimidade. Talvez o TSE se arrependesse das decisões anteriores. E jamais se atreveria a dar posse a um candidato derrotado em São Paulo, Minas Gerais ou Rio de Janeiro. Mas o grave, mesmo, é que a Corte não percebeu a gravidade do que fizera. Não soube articular teórica e juridicamente o que é democracia. Considero preocupante que nosso tribunal especializado em eleições, bem como o tribunal guardião da Constituição, ignorem em questão tão crucial o que é o significado essencial de democracia. Os defensores dessas sentenças poderiam alegar que o TSE cumpre a lei. Mas leis não podem violar a Constituição. Aliás, com razão, o TSE e o STF debateram - até longamente - a Lei da Ficha Limpa, para que ela respeitasse princípios constitucionais importantes. Talvez nossos juízes entendam melhor os preceitos constitucionais que respeitam os direitos individuais ou pessoais, do que os que dizem respeito aos cidadãos e à coletividade. Sua formação os orienta mais nessa direção. Por isso insisto, neste artigo, no valor da democracia e da república. Não são palavras genéricas. "Democracia" quer dizer que o poder é do povo. "República" quer dizer que a coisa pública não pode ser apropriada por interesses particulares. Basta a Constituição dizer que o Brasil é uma república, para que ações cometidas em flagrante prejuízo do bem comum - nepotismo, concessão de bens públicos em troca de corrupção ou de vantagens pessoais, uso do mandato em benefício próprio - sejam ilícitas. Igualmente, basta a Constituição afirmar o caráter democrático de nossa pólis para que seja errado dar o poder a quem perdeu as eleições. Aliás, a solução para esse problema é bastante simples. Espanta que não tenha sido tomada por nossos tribunais superiores. Casse-se o mandato de quem cometeu o crime eleitoral, com as penas que merecer, inclusive a inelegibilidade. Convoque-se nova eleição, para que o povo escolha novo governante. Dará algum trabalho. Custará dinheiro. Mas custará menos do que ter, como governante, alguém que o eleitorado rejeitou. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras