segunda-feira, 4 de junho de 2012

A verdade

Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 28/5/2012 O Brasil sempre lidou mal com sua história. Nossas rupturas não são para valer, mesmo quando deveriam ser. Mudamos tudo para manter tudo como estava, na célebre frase do romance de Lampedusa, "O Leopardo". Ou "façamos a revolução antes que o povo a faça", como disse o governador de Minas Gerais, Antonio Carlos, em 1930. Daí que nossas mudanças fiquem truncadas. Vejamos os grandes acontecimentos de nossa história. A independência foi proclamada pelo príncipe herdeiro de Portugal, a conselho do pai ("Pedro, toma essa coroa antes que um aventureiro lance mão dela"). A abolição foi assinada pela princesa regente do Império. A República foi proclamada por Deodoro, que o imperador fizera marechal. A revolução de 1930 foi liderada por Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda do presidente que ele depôs. A ditadura Vargas foi derrubada em 1945 por Gaspar Dutra, ex-ministro da Guerra do presidente que ele depôs. A segunda ditadura caiu em 1985, colocando na presidência José Sarney, que um ano antes chefiava o partido do regime. Com tudo isso, como "passar o Brasil a limpo"? Cada coisa ruim de nossa história - a colônia, a escravidão, o despotismo, a fraude eleitoral da oligarquia, o golpe militar de 1964 - sai de cena derrotada, mas na hora de mudar não se vai adiante. Não se cobra, não se conserta, não se renova. Não precisamos ter medo da verdade nem da Comissão A Comissão de Verdade é a tentativa, simbólica e mais que simbólica, de ir além disso. O Brasil demorou a criar a sua. Vários países já o tinham feito. Finalmente o fizemos. Pela primeira vez em nossa história, tratamos o passado vergonhoso de maneira consequente. Se ele é infame, por que calá-lo? Se foi repudiado nas ruas, por que não apurar o que ele efetivamente foi? Vá lá uma anistia, mas anestesia e amnésia por quê? O Supremo Tribunal decidiu não rever a anistia autoconcedida pelos mesmos que violaram leis humanas e acima do humano. Mas como perdoar, sem antes saber quem e o que está sendo perdoado? Na verdade, a lógica da Comissão é a mesma da lei do governo FHC, que manda indenizar as vítimas da ditadura. É também a lógica das ações afirmativas, que o Supremo recentemente validou por unanimidade. Em todos esses casos se reconhece que quem mandava no Brasil agiu mal - fosse o regime militar, fosse a oligarquia escravagista. Essa ação má e injusta causou vítimas e danos. Ora, numa linha de ação consistente mas inédita em nosso país, desde a iniciativa citada do presidente Fernando Henrique o Estado brasileiro explicitamente condena a ação má desses grupos e, consequência lógica também nova entre nós, busca reverter os resultados igualmente maus que produziram. Essa a razão, por exemplo, de compensar os afrodescendentes para que seu terrível ônus histórico, que os situou nas camadas subalternas da sociedade, seja temporária e instrumentalmente convertido em bônus. Isso também exige trabalhar a memória. Mentiras e silêncios precisam ser substituídos pela verdade. Uma tradição forte que nos vem da Grécia antiga celebra o bem, o belo e o verdadeiro. Essa trindade de valores deveria andar junta. A verdade sobre o passado exige expor o que nele representa o mal. Só assim produziremos algo do bem. Tratando-se de uma história construída a partir do poder, tem que ser revelado o mal exercido com e pela dominação. Quando passamos, gradualmente, à democracia, a contínua linha histórica baseada na exclusão e na opressão não deve subsistir. Mas não basta distribuir renda. É preciso abrir o pensamento, a compreensão do passado, a construção do futuro. Nada disso se fará com a mentira ou a ignorância. Pessoalmente, não defendo a revisão da anistia. Mas isso porque a verdadeira discussão é sobre a memória. Notem que já esquecemos os presidentes da ditadura. O último governante que lembramos com admiração, antes dos recentes, foi Kubitschek, que a ditadura cassou; antes dele, Getúlio, cuja herança ela quis liquidar. Contra o mal na política, a verdade é o que há de mais precioso. Só precisa ter medo dela quem tem razões para temê-la. É bom separar o joio, raro, do trigo, abundante. Dezenas de milhares de oficiais das nossas Forças Armadas, que nada têm a ver com a tortura, só podem se sentir bem ao se demarcarem da minoria que, um dia, agiu contra a honra da farda. O Brasil ganha, desenvolvendo um processo de mudança consistente, pelo qual não só reduz a pobreza medida em poder de compra mas também, e sobretudo, revisa a fundo os significados atribuídos pela sociedade ao que são liberdade e opressão, crescimento econômico e exploração do outro, florescimento da pessoa e sua escravização ou humilhação. Isso não ocorre só no Brasil. Um século atrás, três por cento da população mundial, se tanto, tinham direitos humanos em ampla escala. Hoje, mesmo não sendo otimista, essa proporção terá passado a trinta, talvez quarenta por cento no mundo. Falta muito. Mas nunca tanta gente - incluindo mulheres, povos de cor, como os chamava Sukarno, minorias comportamentais, como homossexuais - desfrutou de direitos como esses. Essa multiplicação por dez do porcentual de seres humanos respeitados, em cem anos, é um avanço que nunca antes ocorreu - e nunca mais ocorrerá, nessa dimensão. Se e quando todos os habitantes do mundo tiverem reconhecidos seus direitos humanos, o avanço a partir de hoje será uma multiplicação por dois ou três, não por dez, que foi o que conseguimos nas últimas gerações. Ora, para realizar este processo, é preciso acabar com a mentira. Saber o que foram (ou, infelizmente, ainda são) a tortura e a opressão extrema é uma condição para se construir um mundo melhor. Renato Janine Ribeiro - é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras © 2000 – 2012. Todos os direitos reservados ao Valor Econômico S.A. . Verifique nossos Termos de Uso em http://www.valor.com.br/termos-de-uso. Este material não pode ser publicado, reescrito, redistribuído ou transmitido por broadcast sem autorização do Valor Econômico. Leia mais em: http://www.valor.com.br/politica/2678714/verdade#ixzz1woCQxpNL

Popularidade e eleições

Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 21/5/2012 Faltam cinco meses para as eleições, e o quadro é o seguinte. A presidente da República tem forte popularidade. Mas seu partido, o PT, parece ter poucas chances na competição pelas principais capitais. Está fora de cena no Rio e talvez Belo Horizonte. Já em Porto Alegre e São Paulo, pela primeira vez desde que existe o segundo turno (1988), até corre o risco de ficar fora da final. Como conciliar dados assim antagônicos, um favorável e outro contrário ao PT? Comecemos notando que esse cenário desmente os comentários que ouvimos de adversários figadais: tucanos, que acusam o governo federal de mexicanizar o país, querendo abolir toda oposição; petistas, que se regozijam de ver a oposição minguando e já anunciam sua extinção. Nenhum deles tem razão. É verdade que muitos, inclusive eu, pensamos que a principal oposição, a que o PSDB comanda, com apoio do DEM e PPS, está sem muito projeto ou rumo. Mas ela tem votos. Pode ser que, se voltar ao poder, não saiba bem o que fazer. Só que uma parte razoável dos eleitores está disposta a votar nela. Ou seja, nem a oposição morreu, nem o Brasil vai ter um partido só. Como sempre, o exagero não é bom conselheiro. Mas, com todos os riscos que implica uma previsão a quase meio ano das eleições, o que o quadro atual indica para nossa política? Primeiro, que a popularidade presidencial não se traduz automática ou integralmente em votos. Lula foi o presidente mais popular de nossa história, pelo menos desde que esse dado importa - isto é, desde que o povo passou a ser ator em nossa política, o que não aconteceu no Império, na República Velha ou na ditadura militar. Mas, de cada cem cidadãos que o aplaudiam no final de mandato, quarenta não votaram em sua candidata, no primeiro turno, e quase trinta escolheram o rival dela na decisão das eleições. De lá para cá, Dilma superou a frieza com que o povão a recebeu de início e ainda lhe somou o respeito da classe média e rica, granjeando um nível elevado de respeito. Parabéns. Mas isso se traduz em votos? Não é óbvio. Em que prefeituras o PT estará apostando em 2010? Continua havendo uma estranha política em nosso país. Por um lado, o PT governa, na escala federal - mas a partir de um único cargo, o maior da estrutura política brasileira, porém ainda assim solitário: a Presidência da República. Com um vice que não é confiável, isso significa depender demais de uma só pessoa, Dilma Rousseff. O PT é tudo e pode tornar-se quase nada. Por outro lado, as forças políticas minoritárias, que não conseguem afrontar a presidência, mostram os músculos nos Estados e municípios. Mais nos Estados do que nas cidades. Aliás, muitos municípios de tamanho médio passaram para o PT estes anos. Graças à Presidência da República ele as conquistou, à medida que políticas as mais variadas - sociais, econômicas, universitárias - beneficiavam cidades que, antes, se sentiam abandonadas. Mas o PT avançou pouco no plano dos Estados. Hoje ele, que é fraco nos três maiores PIBs, governa o quarto e o sexto, Rio Grande do Sul e Bahia. Mas em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, nem chega ao segundo turno. Uma razão para o semi-isolamento do PT é sua característica de partido que, sem ser extremista, está num dos polos da política brasileira. Ele foi para o centro desde que ganhou a Presidência, em 2002 - mas ninguém com algum peso está à sua esquerda. Por isso, ele não pode jogar um lado contra o outro. O PSDB pode aliar-se com o PMDB ou o DEM. Só não namora o PT. Já este não pode se aliar com o PSDB ou o DEM. Só lhe resta, dos partidos grandes, o PMDB, a agremiação menos definida do país. O próprio PSD, ao dizer seu fundador que não é de direita, de centro nem de esquerda, se mostra um PMDB mais explícito que o original em sua vagueza. Daí que o PT só ganhe eleições quando a polarização das coisas o coloca como finalista, e o êxito de suas políticas no âmbito respectivo cai bem junto aos eleitores. Por isso, ele perdeu governos que conquistara - Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. Por isso, conservou o governo federal e a Bahia. Um esgotamento de material o levou à derrota em Porto Alegre, até então sua vitrina, e dificulta sua volta ao poder naquela cidade. Felizmente, estamos longe do partido único. Mas o caminho do PT é curioso. Até 2002, muitos esperavam uma ascensão gradual do PT: prefeituras, Estados e, finalmente, a Presidência. Lula conseguiu inverter a ordem. Contudo, nas eleições para os Estados ocorridas desde então - 2002, 2006 e 2010 - o PT avançou pouco. Mas prospera nos municípios pequenos e médios (nem tanto nas capitais). No fundo, é aquela mesma estratégia com uma modificação. A mudança foi ter começado pela presidência, que governa a economia e é decisiva para programas sociais. Economia e sociedade afetam diretamente os municípios. Dizia Ulysses Guimarães: as pessoas não moram nos Estados ou na União, mas nos municípios. É neles que a ação do PT mais dá retornos. Na verdade, no Brasil, não sabemos bem o que são os Estados. Não são os componentes originais da Federação. Não foram eles que a criaram; foi ela que lhes deu autonomia. Desde a colônia, a força no Brasil é municipal. As competências legislativas das Câmaras, municipal e federal, são notórias. Já as assembleias estaduais têm menos a fazer. Talvez por isso, conquistar municípios seja uma boa estratégia de longo prazo. Consolida a presidência, dá apoio nas bases, prepara - um dia - a eleição de mais governadores, que são personagens importantes na política nacional, líderes em seus Estados mas, no fundo, afetam menos a vida das pessoas que um bom (ou mau) prefeito. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras