segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Danton deveria ter roubado mais?

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 25/5/2011

"Danton fez bem em roubar?", pergunta Julien Sorel a sua quase-namorada, no romance mais famoso de Stendhal, "O vermelho e o negro". Matilde perguntou-lhe o que está pensando e leva um susto ao ouvir seu raciocínio: "Os revolucionários do Piemonte, da Espanha, deveriam comprometer o povo com crimes? Dar a pessoas mesmo sem mérito todos os postos do Exército? Quem os recebesse não temeria a volta do rei? Deveriam ter saqueado o tesouro de Turim? Numa palavra, senhorita - disse, aproximando-se dela com um ar terrível -, o homem que quiser expulsar da terra a ignorância e o crime deve passar como a tempestade e espalhar o mal ao acaso?"

Não é preciso concordar com Julien Sorel, que, aliás, faz uma pergunta, não uma resposta; mas quem não meditar essas palavras duras, quem não pensar a fundo o que ele diz em 1830, não vai entender a política, mesmo atual, mesmo democrática. Quem deseja expulsar o crime e a ignorância precisa causar muitos males enquanto promove o grande bem? Os fins justificam os meios? Não é isso. Porque Julien não fala de qualquer fim, mas do fim mais nobre que há: introduzir o conhecimento e o bem. No entanto, para isso, será preciso cooptar os corruptos?

O fim nobre exige meios sórdidos? - velha pergunta

Essas questões de alta literatura me vieram à mente quando me lembrei de um líder da base governista que, indignado com medidas anti-corrupção da presidente Dilma, teria dito que "ela não sabe que está brincando com fogo". Em valor literário, a diferença entre o personagem de Stendhal e o nosso é gigantesca. Mas não estarão falando de coisas parecidas - com a ressalva de que o parlamentar se empenha em vantagens sem ética, e Julien numa ética maior?

Vivemos hoje a luta entre duas grandes ideias sobre a política. A primeira vem da experiência e diz: governar e ser honesto, a um só tempo, raia o impossível. Não quero dizer que todo governante é desonesto; apenas noto que há um fator poderoso que leva, para obter maiorias, à aliança com políticos de má catadura. Curiosamente, em cada país isso se atribui a causas diferentes. Aqui, uns dizem que acabando com o presidencialismo de coalizão, adotando o voto distrital ou a lista fechada, tudo há de melhorar. Em outros países, recomenda-se o contrário. Mas, em suma, primeira convicção: governabilidade e ética não são amigas de infância. Mesmo quem não é Maquiavel, que defendia que o príncipe mantivesse a todo custo seu Estado, e se bate por valores nobres, precisa sujar as mãos. A expressão é de Sartre. Sem sujá-las, não se faz política.

Mas há uma segunda e poderosa ideia: os valores democráticos. A palavra "democracia", que no começo significava essencialmente a escolha pelo povo, fica tão rica desde a II Guerra Mundial que anexa os direitos humanos, e também os valores éticos. Combater a corrupção, a exploração das mulheres pelos homens e até a exploração do homem pelo homem tornam-se preceitos fundamentais. O problema: como ligar este ponto com o anterior? Por um lado, temos uma forte demanda ética, que deseja espraiar-se pela política e talvez nunca tenha atingido tal dimensão em regime democrático. Talvez. Por outro, queremos dos governos que nos deem ou ao menos nos permitam prosperidade. Estamos divididos, os cidadãos, entre o conforto e a ética. Derrubamos Collor em nome da "ética na política", mas ele não teria caído caso seu governo desse bons frutos. Se caiu, foi porque tinha pouco apoio nos partidos e porque não efetuou o salto para o Primeiro Mundo, que prometera na campanha.

Resumindo, vivemos em dilemas. Do ponto de vista do cidadão, quer-se ética - nem sempre por razões éticas, mas também porque, se todos andarem pelo acostamento, a estrada trava. Mas o mesmo cidadão deseja conforto, prosperidade, uma fatia maior do PIB. Rachado entre os princípios morais e a ambição pela prosperidade, nem sempre crava a escolha na ética, que pode exigir renúncia, sacrifício e derrota. Não é à toa que uns chamam de "ético" quem, para outros, é um perdedor.

Já do ponto de vista do governante, e penso na presidente que mostra menos complacência com a corrupção desde Itamar Franco, a escolha também é difícil. Alguns analistas a condenam ora porque lhe falta jogo de cintura, ora porque demora a demitir acusados de corrupção. Mas jogo de cintura é, nove vezes em dez, complacência com os malfeitos! É esse o seu dilema e o de muitos governantes decentes. O que fazem então os governos? Exceto quando são essencialmente corruptos, procuram manter a flexibilização da ética longe do cerne do poder. Tentam preservar o centro do governo. Vejam o curiosíssimo instituto das emendas parlamentares à lei orçamentária. Duas décadas atrás, José Serra propôs que o orçamento fosse aprovado sem nenhuma emenda. Isso era tão absurdo quanto são as emendas parlamentares de hoje. A democracia surge na Inglaterra com o poder, dos eleitos do povo, de votar e rejeitar impostos e despesas. Aprovar o orçamento é o apogeu desse ritual democrático, quando a sociedade decide o que é prioritário e o que não é. Os Estados Unidos conservam isso, tanto que no governo Clinton ficaram um dia sem orçamento e o governo federal, literalmente, fechou. Mas aqui, se o Parlamento não vota o orçamento, ele é assim mesmo executado. E muitas das emendas, que Serra condenava, são penduricalhos pelos quais o parlamentar atende sua base para conseguir se reeleger - algumas delas, sem necessidade sequer para sua base.

Há saída para esses dilemas? Espero que sim. Mas notem que são dois dilemas. Um é do governo, outro dos cidadãos. Não basta cobrar do governo, se os cidadãos não cobrarem ética de si mesmos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Lula na Prefeitura de São Paulo

Por Renato Janine Ribeiro
Valor econômico, 19/9/2011

Esperei para comentar o impacto da pesquisa do Datafolha sobre as candidaturas a prefeito de São Paulo. Queria ver as reações. Os trinta por cento de Marta Suplicy e os dezoito de José Serra tornam difícil o PT negar a legenda a sua ex-prefeita, ou o ex-prefeito e governador aceitar concorrer pelo PSDB. Esperei que alguém jogasse a toalha, do lado petista - talvez os ex-aliados de Marta que ora competem com ela - e que, do lado tucano, algum nome se viabilizasse. Mas, se todos tomaram nota, como se diz em linguagem diplomática quando o resultado não é o que se deseja, ninguém piscou. Tudo continua possível. Aparentemente.

A baixa intenção de voto em Serra não surpreende. Ele teve perto de 54% dos votos válidos na cidade, no segundo turno das eleições de 2010; por isso, o fato de obter apenas um terço desse número, menos de um ano depois, soa estranho à primeira vista. Certamente ele conta com muitos eleitores que votariam nele, de novo, para presidente - mas não para prefeito. O que em nada o desmerece, porque ao que tudo indica ele não quer a prefeitura. Seus eleitores e ele pensam do mesmo modo. Seu sonho continuaria sendo a Presidência, o único cargo importante que não ocupou e para o qual se preparou por longos anos. Poderia ter sido presidente em 1994, se Itamar o tivesse escolhido em vez de FHC, ou em 1998, não houvesse a reeleição. Ainda tem chances. Agora, se concorrer à prefeitura, será difícil perdoar uma nova renúncia após um ano somente de mandato, para mais uma vez disputar o Planalto. Será a repetição da história como farsa. O problema então é encontrar um nome que mantenha unido o condomínio tucano paulista, no qual a divisão entre Alckmin e Serra levou à dissidência de Chalita, pelo lado do primeiro, e de Kassab, pelo lado do segundo. A família tucana, que governa o Estado desde 1994, e a cidade desde 2004, está em risco na capital.

Transparência maior poderia diminuir a desconfiança

Já o PT terá dificuldades em rejeitar uma candidata que, a um ano das eleições, conta com quase um terço das intenções de voto. Mais estranho ainda será descartá-la em favor de um candidato que obteve só dois por cento na pesquisa. É verdade que alguém pode começar com um ou dois por cento e vencer. Assim sucedeu com Pitta, secretário e sucessor de Maluf na prefeitura, Fleury, secretário e sucessor de Quercia no governo estadual, e Dilma, ministra e sucessora de Lula na presidência da República. Mas, em todos esses casos, em que candidatos sem prévia experiência eleitoral (como Fernando Haddad, o favorito de Lula) derrotaram opositores mais cotados, havia alguns traços especiais. Primeiro: foram apoiados pelo titular do cargo, por sinal muito bem avaliado. O problema era transferir a popularidade de um nome conhecido para um desconhecido. Segundo, e mais importante: se cada um deles partiu de meros dois por cento, enfrentava um favorito inicial que não era de seu partido - mas do concorrente. Dava para promover, simultaneamente, a construção do nome novo e a desconstrução do opositor. Agora, um eventual prélio Haddad-Marta se dará no interior do mesmo partido. Não pode ser demasiado agressivo, porque o perdedor deverá apoiar o vitorioso. Nos Estados Unidos, as palavras horríveis que Hillary Clinton disse sobre Obama não a impediram de apoiá-lo, quando ele ganhou a indicação, nem o impediram de nomeá-la para o cargo mais importante da administração. Mas, no Brasil, o eleitor dificilmente esqueceria acusações fortes entre companheiros de partido. Isso limita a capacidade de um nome alternativo para contestar, nos meses que faltam, o favoritismo de Marta no eleitorado.

No entanto, há uma racionalidade clara no apoio de Lula a seu ministro da Educação. Nas primeiras eleições que Lula disputou, ele queria marcar uma posição. Vencer ou não era secundário. Num segundo tempo, ele aceitou marcar uma posição. Ele trazia os votos, a esquerda petista fazia o programa, e ele engolia isso. Já em 1998, derrotado pela terceira vez, Lula mudou radicalmente. Decidiu só concorrer para vencer. Convenceu-se de que, num país complexo como o Brasil, um partido não ganha a Presidência sozinho. Precisa de alianças. Isso implicava aceitar que, no governo, ele não aplicaria in totum o programa do PT. Mas, entre realizar parte razoável do programa e nada realizar, Lula não teve dúvidas. Creio que esse é seu raciocínio em São Paulo. Trinta por cento dos votos, os que Marta tem, são o patrimônio usual do PT na cidade. Ela por ora consegue realizar o total desse estoque; mas qualquer candidato petista que não seja um absurdo partirá desse patamar. O problema é conseguir os vinte por cento que faltam para ganhar, provavelmente no segundo turno. Quando começarem a atacar Marta pela taxa do lixo, ou baixarem o nível na campanha, ela conseguirá expandir seu cabedal de votos? Lula provavelmente crê que um nome novo, de pouca rejeição, com a causa simpática da educação, possa crescer mais. Sua questão não é o que o partido faz, intra muros. É se o partido consegue conquistar a sociedade. A isso se soma um fato curioso: Marta na política, como por exemplo Paulo Bernardo na administração, são nomes polivalentes, que podem ocupar praticamente qualquer cargo. Já Haddad se identificou tanto com a educação que, paradoxalmente, se inviabilizou para qualquer posição que não seja a sua, atual - onde começa a sofrer uma fadiga de material que pode se acentuar -, ou a chefia de um poder executivo. Daí que ele queira a prefeitura. Daí que talvez Lula pense nele como sucessor de Dilma, em 2018. Mas o fato, hoje, é que ele tem dois por cento e Marta, trinta.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Os partidos como parasitas

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 12-9-2011

Uma convicção difundida, entre comentadores da política e cientistas políticos, é que partidos fortes são essenciais para a democracia. Já filósofos e estudiosos da comunicação não se entusiasmam tanto pelos partidos, mas reconhecem sua utilidade. Ora, um mantra da discussão política no Brasil é que os partidos são fracos, representam pouco e tendem a expressar mais os interesses dos políticos que os do eleitorado. Não espanta que nossa legislação seja uma mãe para os partidos. Deixou de regulamentar seu funcionamento interno, o que seria bom, não fosse o fato, revelado pelo Valor, de que vários deles, mesmo importantes, funcionam na base de comissões provisórias nomeadas pela direção nacional, sem democracia interna. Houve momentos, na ditadura, em que a lei fixou um máximo de partidos (dois), determinou que tivessem o "P" de partido em seu nome e até mandou suas convenções se realizarem em Brasília. Bobagem, que passou. Mas continua havendo vantagens para os partidos que, paradoxalmente, talvez expliquem por que são fracos. Não precisam ir à luta, conquistar o apoio do povo. Isso os fragiliza, isso nos fragiliza.

Por que, no Brasil, só partidos podem lançar candidatos? Não é assim na França, Estados Unidos ou Grã Bretanha, três democracias exemplares, fruto de grandes revoluções democráticas. Lá, quase todos os eleitos em nível nacional pertencem aos principais partidos, mas isso não é obrigatório. Os partidos se fortalecem sem serem donos da atividade eleitoral. São fortes porque lutam por isso, não porque a lei lhes dê o oligopólio da política. Já no Brasil só pode concorrer quem se filiou a um partido doze meses antes da eleição - o que exclui do direito de se eleger 95% ou mais da população.

Nossos partidos não militam pela causa da política

Essa oligopolização da política traz um adicional. Você se filia sem a certeza de que será candidato. Entre você e o voto popular, está a cúpula partidária. Itamar Franco se inscreveu no PMDB, em 1998, esperando concorrer à sucessão de FHC. Uma vez filiado, o PMDB aproveitou o ilustre refém para negociar com o governo tucano e liquidou sua candidatura. Mas é legítimo uma pessoa, que pode expressar a vontade popular, ser impedida de ir às urnas porque o partido lhe negou legenda?

Imaginemos que o PSDB se divida entre Serra e Aécio, em 2014. Se um deles notar que não tem chances no partido, sua única saída será mudar de legenda antes de outubro de 2013. Ora, dificilmente um deles saberia disso a tempo. Portanto, digamos que disputem a convenção. Quem perdê-la não poderá apelar ao povo. Na França, Estados Unidos ou Argentina, poderia - e poderia ganhar a eleição. Agora, à pergunta: isso enfraquece o partido? a resposta adequada é: menos que o sistema atual. Hoje, o perdedor na convenção dificilmente dará apoio entusiástico ao vitorioso. Muitos serristas acusaram Aécio de corpo mole na eleição de 2010. Mas, se ambos puderem ir ao povo, o que teremos? Certamente, outras lideranças partidárias - a começar por FHC - tratarão de curar as feridas e negociar um acordo. Para isso, não precisa haver uma lei barrando candidaturas. É melhor a lei ser aberta, e os conflitos se resolverem na prática. Mais maduro.

Em termos municipais, nem se fala. Com raras exceções, prefeitos se elegem em torno de temas locais - no mundo todo. A maior exceção costuma estar à esquerda, mais afeita a propostas sociais, que interferem na vida cotidiana. Mas, até porque em vários municípios as coligações se mostram monstruosas, aliando partidos opostos no plano federal, por que não admitir listas fora dos partidos? É um absurdo o prefeito de S. Paulo precisar criar um partido para continuar na política, com todas as consequências que vimos nas filiações ao PSD.

Em 2010, os tribunais eleitorais difundiram spots publicitários sobre a importância do voto. A intenção era ótima. A ilusão, total. Diziam que o Poder Executivo reduz as desigualdades. Ora, esse é um belo ideal, mas só isso. Mostraram um eleitor sabatinando os candidatos, como se disputassem um emprego. Na teoria, é assim. Na prática, os candidatos dos grandes partidos têm muito mais poder que os cidadãos. No fundo, os spots indicaram um problema de nossa política: que os tribunais eleitorais acabam assumindo um papel que deveria ser dos partidos.

Tomemos os Estados Unidos, onde o voto não é obrigatório - o que leva a um grave problema, que é a abstenção maior entre negros e pobres, que por isso recebem menor atenção dos políticos, o que aumenta o alheamento político de negros e pobres, levando os políticos a lhes darem menos... Mas, lá, se um partido quiser conquistar o voto de negros e pobres, terá de convencê-los de que é importante votar. Ou seja, em vez de um spot abstrato, no qual a Justiça cega e imparcial fala do voto em geral, teríamos spots concretos, em que um partido diz: se quiser combater a corrupção, vote em nós; se quiser eliminar a miséria, vote no partido tal; e assim por diante.

Isso acabaria com um aspecto que a eleição tem hoje: a reserva de mercado. Por lei, os partidos têm o monopólio das candidaturas. Por lei, os cidadãos têm de votar. Daí sucede que, no dia da eleição, muitos votantes não saibam ainda em quem votar e peçam indicações a amigos. Eu o fiz, em 2010, para deputado estadual. Ora, se você não está convencido de um candidato, por que votar nele? Por que votar? Os partidos, oligopolistas da política, têm apenas de disputar em quem você votará. Não precisam militar pela causa da política. Não precisam convencer ninguém da importância do voto. Funcionam como parasitas, não como atores da política. Isso tem de mudar.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Freio na voracidade

Por Renato Janine Ribeiro (O Estado de S. Paulo, 4 de setembro de 2011)


O capitalismo é ético? Eis uma questão muito difícil de se responder. Basicamente, hoje há duas grandes linhas a respeito. Uma enfatiza a dinâmica de um sistema, ou um estilo, que libera a produção das amarras tradicionais e assim revela capacidade inigualável de criar e talvez até distribuir riquezas. Mas o preço dessa libertação é um caráter nada ou pouco ético: o capitalista é movido por um “instinto animal”, promove uma “destruição criativa”. Na melhor das hipóteses, é neutro eticamente, o que chamamos de “amoral”. Com freqüência é até predatório, o que chamamos de “imoral”. Só por ele, não respeitaria direitos trabalhistas – tanto assim que, nas últimas décadas, vários destes foram reduzidos – nem teria reverência pela natureza e o ambiente. Isso não representa contudo, necessariamente, uma condenação do capitalismo. Apenas mostra que ele é excelente naquilo que se propõe: produzir. Precisa, porém, de controles externos. Esses podem ser exercidos pelo Estado, pela sociedade, pela opinião pública. Deste ponto de vista, o que pode introduzir ética na economia são as pessoas, enquanto não-empresários. Isto é, o próprio empresário, por valores éticos que não são seus como empresário mas como pessoa, como sujeito moral, pode orientar sua atividade produtiva numa direção melhor. Se não for ele, será a sociedade. Quando cada vez mais pessoas compram levando em conta não só o preço, mas o que as empresas fazem de bom e de mau, é isso o que acontece. Exemplo importante no Brasil foram as campanhas – movidas por pessoas, inclusive empresários da Abrinq – contra o trabalho infantil. A Zara, acusada há dias de comercializar produtos em que se usa trabalho escravo, padece em sua imagem por isso.

Esse é um primeiro modo de ver o capitalismo, digamos, o “selvagem”. Mas há outra percepção, ou concepção, do capitalismo. Essa aparece quando organizações como a ETCO se empenham em defender um ambiente limpo de corrupção para os negócios melhor florescerem. Aqui o problema é, como se vê na série sobre a cultura das transgressões que saiu pela editora Saraiva (de cujo terceiro volume participei), como evitar a primazia da transgressão, que faz as boas regras – boas segundo a lei e a ética – serem violadas em nome de uma vantagem fácil que, porém, desmoraliza a sociedade, amoraliza a economia e imoraliza a política. Essa linha de pensamento estaria mais perto dos calvinistas de Max Weber, que sentiam a “ética protestante” expressando-se no “espírito do capitalismo”. Pessoas empreendedoras, que mourejam, que fazem de tudo para a sociedade prosperar: o empresário weberiano do século XVI ou XVII nada tem a ver com o banqueiro da caricatura, fumando charutos, indolente, espertalhão, mancomunado com os poderosos, corruptor. Esse empreendedor dos começos da modernidade pode não ser simpático – nas Américas, seria senhor de escravos, na Holanda, não reconheceria direitos a seus empregados – mas ele próprio trabalhava, e muito. De certa forma, quando se fala num capitalismo que requer uma ética intensa, é nele que se pensa.

Mas em nossos dias surge um upgrade. Cada vez mais, no lugar da ética protestante e moralista, aparece uma preocupação ética que nasceu da idéia do meio ambiente e agora se desenvolve para a sustentabilidade. Não tem mais por modelo ideal o empresário calvinista que faz, da empresa, sua razão de vida. Ao contrário, cada vez mais a vida é a razão de ser de tudo o que se faça, inclusive (mas não só, nem prioritariamente) a empresa. Tudo começa com o descontentamento ante a poluição. A economia que se desenvolve desde a Revolução Industrial tem um custo altíssimo para a vida – humana, animal, vegetal. Londres passa cem anos coberta pelo fog, uma neblina que se deve à poluição das fábricas. As pessoas não se enxergam. A cidade fica invisível e os cidadãos, cegos ao seu entorno. Contudo, após a II Guerra Mundial, uma preocupação com a natureza cresce pelo mundo. Movimentos verdes lutam contra a má qualidade do ar, da água, em prol da preservação de florestas. A essa altura, por “verde” se entende o meio-ambiente natural ou assimilado. Contudo, com os anos as causas verdes anexam um elenco de outros valores. Não é só a defesa do mundo não contaminado pelo homem. É a defesa do homem, contra o que o desgasta ou desvaloriza.

Também se propõe uma reorientação da ciência. Tomemos o filósofo que é o primeiro grande referencial de toda preocupação com o meio-ambiente, Rousseau. É um amante da natureza. Começa seus Devaneios do caminhante solitário narrando um passeio pelos arredores de Paris, em que olha as plantas, identifica-as, extasia-se. Mas é também alguém que faz seu début literário com um escrito, premiado pela Academia de Dijon, sustentando que “as artes e as ciências” – isto é, o que chamamos de tecnologia e ciência – fizeram mal, mais do que bem. Desnaturaram o mundo. Degeneraram o homem. Rousseau não vê em nada moderno, seja a economia, a política ou a ciência, capacidade de reverter o processo pelo qual “o homem nasceu bom e a sociedade o corrompe”.

Mas o que notamos na ciência das últimas décadas é um forte empenho em reduzir e mesmo suprimir os danos acarretados pelo desenvolvimento. Lembremos que não faz muito tempo a ciência e a tecnologia eram em ampla medida influenciadas por encomendas militares. Isso mudou. Tenhamos em mente que muitas pesquisas são conduzidas em nome de causas destrutivas, ainda hoje. Muitos desconfiam que os cultivos transgênicos, ou têm certeza de que os veículos de transporte individuais, causam males em maior número que as vantagens. Os carros são bons a curto prazo para poucos, mas péssimos para o futuro da humanidade como um todo. Mesmo assim, porém, em casos como o da indústria do tabaco, cientistas cortaram seu elo umbilical com ela, como se vê no filme O informante. E são cientistas de renome que formam o “core” da Comissão Internacional de pesquisa sobre as Mudanças Climáticas, que talvez constitua o órgão mais prestigioso na luta por mudar o mindset que governa uma produção de custos negativos para a sociedade e a natureza.

Com uma ciência e uma tecnologia mais amigas do verde – um verde que saiu das plantas e colore tudo o que é vida e mesmo cultura, isto é, passa a propor uma qualidade de vida melhor para os humanos e seus parceiros no planeta –, com a defesa da biodiversidade e do que podemos chamar a culturo-diversidade, por que não uma economia de novo recorte? Será possível o projeto de uma empresa ter no seu cerne a sustentabilidade, isto é, a proposta de que nenhuma intervenção humana piore o que foi recebido? Essa é uma exigência alta. Para eu me alimentar, tenho de matar – animais ou, mesmo, vegetais. (O momento mais engraçado do filme Notting Hill Gate, para mim, foi quando uma moça se disse vegetariana lapsariana. Lapso significa queda. O que ela dizia é que só comia frutas e legumes que já tivessem caído da planta que as gerou. Não comeria uma maçã arrancada da macieira – porque estaria matando um ser vivo. Fica difícil, claro, viver com uma ética tão radical). Mas, se tenho de matar ou causar danos, posso reduzi-los, talvez revertê-los por completo e, quem sabe, um dia (esse é o sonho!), até melhorar as condições do que foi recebido. Aqui amplio a idéia de que recebemos insumos “da natureza” para a de que recebemos insumos também humanos – o trabalho, a saúde, a boa disposição uns dos outros. É sustentável a ação que não apenas zera o dano causado mas também promove ganhos. Suponhamos uma empresa que decida fornecer, a seus funcionários, alimentação saudável – cada três horas, como hoje se recomenda, em vez de poucas e lautas refeições. Pode melhorar a saúde deles. Ela assim terá devolvido mais do que consumiu. É claro que há tantos insumos que o cálculo não pode isolar um dos outros. Mas é um exemplo.

Porque no fundo nossa questão é: o que fará uma empresa, ou um empresário, agir eticamente, ser ético? Tudo o que afirmei não dá uma resposta definitiva. Quando uma empresa faz questão de não explorar o trabalho infantil ou de preservar a natureza, essa iniciativa é “da empresa” ou dos indivíduos que, entre outras coisas, são seus donos? A diferença é importante. Toda empresa busca o lucro. Mas o que a faz criar limites para sua voracidade? É algo que faz parte do próprio projeto empresarial – ou serão elementos externos, inclusive os valores pessoais dos proprietários? Para sair da moral e entrar no moralismo, conta-se que houve um tempo em que um vinho que tem no nome a palavra “diabo” não era distribuído aqui, porque os importadores eram cristãos fervorosos. Era um valor deles, não da empresa. E uma empresa pode ter valores? Uma empresa é diferente dos seres humanos que são seus donos, que a fazem? Questões difíceis. O que parece certo, isso sim, é que uma empresa pode ter no seu próprio projeto de negócios uma solidez sustentável; que isso será mais viável se ela tiver compromissos sociais e ambientais e, além disso, estiver na linha de ponta, no cutting edge, da ciência. O mais, resta a esclarecer – ou a fazer.

Um rumo que deve ser revisto (o mestrado profissional)

Por Renato Janine Ribeiro | Para o Valor, de São Paulo

USP ESALQ/Divulgação/USP ESALQ/DivulgaçãoAlunos da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz em pesquisa de campo: alguns pesquisadores sustentam que todo mestrado deveria ser profissional, ao menos em certas áreas

O mestrado profissional é uma bonança para as empresas, organizações do terceiro setor e instituições públicas. É um dos melhores cursos para capacitar os futuros dirigentes da economia, do Estado e da sociedade. Mas preciso explicar concisamente seu lugar na pós-graduação stricto sensu, que se distingue porque é avaliada e tem selo de qualidade conferido pela Capes, enquanto a pós-graduação lato sensu, maior em cursos e alunos, não passa por crivo análogo. Por isso se afirma que a pós-graduação stricto sensu, composta de mestrado e doutorado, é o único nível de ensino em que o Brasil pode se orgulhar de enfrentar a comparação internacional.

O mestrado se diferencia, desde 1998, em acadêmico e profissional. O mestrado acadêmico, que titulou 35 mil alunos em 2009, visa a formar um pesquisador que geralmente trabalhará no ensino superior ou num centro de pesquisa. Na verdade, espera-se que o mestre acadêmico prossiga até o doutorado, que completaria sua formação de pesquisador. Enquanto não chegar lá, ele está incompleto.

Assim, lembrando que um doutoramento demora de quatro a cinco anos, em tese o número de mestres formados no ano X deveria igualar-se ao de doutores titulados em X+5 (por exemplo, os mestres acadêmicos de 2000 deveriam estar se doutorando em 2005). Mas não é assim. Possivelmente se doutora apenas entre um terço e metade dos mestres acadêmicos. Já o mestrado profissional é um produto terminal, concluído. O mestre profissional, como o acadêmico, faz pesquisa durante os estudos - mas, ao contrário do acadêmico, pode parar aí. Sua meta é conhecer a importância da pesquisa na sua profissão, aprender onde encontrar a pesquisa futura e a aplicá-la em seu ofício: localizar a ciência e a tecnologia novas e convertê-las em inovação. Os dois mestrados têm metas distintas. O problema é que, se metade dos mestres acadêmicos não completa o doutorado, também para esses o mestrado acadêmico é um produto profissional.

O equívoco é fazer do mestrado profissionalizante e do acadêmico dois cursos diferentes, quando deveriam ser dois títulos

Alguns pesquisadores sustentam que todo mestrado deveria ser profissional, ao menos em certas áreas. José Ricardo Bergmann, vice-reitor acadêmico da PUC-Rio, defendia isso para as engenharias. Aliás, o mestrado profissional (MP) não precisa ser inferior ao acadêmico (MA). Muitos MAs se limitam à revisão da literatura ou a um resumo de textos. Já o MP deve exigir não apenas o domínio da literatura científica, mas sua aplicação a um problema específico que assim seja resolvido. É verdade que a Capes, desde a gestão Abílio Baeta Neves, tenta aumentar o MP, mas com resultados ainda insuficientes. Como diretor de avaliação da Capes (2004-8), empenhei-me nisso, começando pelo seminário Para além da Academia: a Pós-Graduação a Serviço da Sociedade e concluindo com o grupo de trabalho da professora Dora Dessen, cujas contribuições foram aproveitadas numa portaria ministerial de 2009 que estimula o MP - embora, a meu ver, com exageros.

Mas o fato é que o MP cresce bem menos do que é desejado e necessário. Em 2004 se titularam 1.903 mestres profissionais e, em 2009, 3.102: expansão significativa em termos absolutos, pequena em termos proporcionais. Falta muito para que, em sua maioria, as engenharias, tecnologias e ciências aplicadas formem MPs - podendo, depois, os que tiverem vocação de pesquisa prosseguir para um bem-vindo doutorado.

Por que essa dificuldade de avançar num rumo que a agência de avaliação e fomento da pós-graduação, a Capes, tanto deseja? Há um óbice fundamental, que nenhuma pressão da diretoria da agência ou do MEC vai resolver. O incentivo ao MP não deu os frutos almejados. De 2004 a 2009, embora aumentasse o número absoluto dos MPs, em termos proporcionais o MP passou de 7,1 a 7,9% do total de mestrados defendidos, e isso apesar de todo o empenho da presidência da Capes e sua diretoria de avaliação e, mais recentemente, de uma portaria do ministro da Educação. Por quê?

Primeiro, para se aprovar um curso de doutorado, pesa mais se ele for o desdobramento de um curso de mestrado acadêmico (e não profissional). Ora, ter um curso de doutorado permite que um centro universitário se torne universidade, o que lhe confere várias prerrogativas, inclusive a de criar cursos de graduação sem prévia permissão ministerial. Pelo menos um bom MP de administração foi assim convertido em acadêmico, para depois se aprovar o respectivo doutorado e o centro universitário virar universidade.

O segundo problema é que, se nada impede um programa de pós-graduação de ter um curso de MP e um de MA, isso duplica o trabalho burocrático na gestão dos dois - que terão alguns professores, disciplinas e produção em comum e outros, separados. Haja fichas a preencher, políticas diferentes e mesmo opostas a conduzir...

O que fazer? Avaliando as políticas que ajudei a desenvolver, entendo que houve não digo um erro, porque aprendemos com ele, mas um rumo que deve ser revisto. O equívoco é fazer de MP e MA dois cursos diferentes, quando deveriam ser dois títulos. Em vez de dois processos, dois produtos. Basta um único curso de mestrado, que formará quer mestres acadêmicos, quer profissionais. Num curso de engenharia ou administração, se tenderá a formar mais MPs; em filosofia, mais MAs. Mas isso não precisa estar engessado na estrutura do curso, nem mesmo na seleção dos alunos. A formação será mais rica se o aluno puder, ao longo da pesquisa, perceber qual trabalho será mais adequado a ele.

Obviamente, cada área fixará suas prioridades. Na minha área, a filosofia, que é muito teórica, MPs podem ser traduções comentadas de clássicos ou a redação bem fundamentada de códigos de ética para empresas ou organizações. Isso pode ser mais difícil do que estudar uma passagem de Aristóteles, porque o autor de um código de ética precisará ter passado pelo grande filósofo grego... Por isso mesmo, o MP não pode ser uma solução barata para a obtenção do título de mestre. Daí, detalhe importante, que não se justifique a pressão do governo para concluir o MP em dois anos: seu aluno tem menos tempo livre, pois geralmente já está no mercado de trabalho, ao passo que muitos dos mestrandos acadêmicos estudam em tempo integral, com bolsa.

Isso simplificaria o sistema, tornando-o também mais eficiente na formação de recursos humanos qualificados. A burocracia cairia. Hoje, certos cursos de MP nem sequer são ministrados todos os anos, por falta de alunos. Isso acabaria. Também poderia acabar o preconceito contra o MP. A definição do tipo de mestrado a defender estaria ligada ao desempenho do aluno, em vez de preceder sua seleção. A educação pós-graduada faria mais jus a seu nome, porque educação quer dizer possibilidade de crescimento, de mudança, de alteração de rumos. Sobretudo, conseguiríamos fazer que um grande número de profissionais, que, a despeito da expansão das universidades, não terão emprego em todas elas, ajudem o Brasil melhorando a qualidade do setor produtivo, da administração pública e do terceiro setor. E isso pode ser obtido simplificando-se, e não se complicando, o sistema.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo

Lula na sucessão do PT

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 5/9/2011

Já antes de 2010, o presidente Lula decidiu quem concorreria pelo PT nas principais eleições daquele ano - uma ministra de perfil técnico, ex-militante de esquerda mas que nunca disputara uma eleição. Vários nomes foram excluídos devido a escândalos - Dirceu, Palocci - mas Lula também escanteou outros que poderiam ganhar a indicação, como Jaques Wagner, Patrus Ananias, os dois Suplicy ou Tarso.

Desde o ano passado, o ex-presidente Lula defende para as principais eleições de 2012 - as da cidade de São Paulo - um ministro de perfil técnico, militante de esquerda no passado mas que nunca disputou eleição oficial. Lula assim exclui líderes petistas que poderiam até ganhar na convenção, como Marta ou Eduardo Suplicy.

O esquema se repete. Vejo quatro explicações para ele, que enumero, caso alguém queira ensaiar um rápido teste:

1) Lula tem um faro político incrível, que o faz encontrar soluções criativas para problemas difíceis;

Lula tem intuição mas pode abusar na autoconfiança

2) Lula acha que tem um faro político incrível, que o faz crer na sua intuição mais que no diálogo com os próprios correligionários;

3) Lula sabe que o PT não consegue, sozinho, ganhar o centro do poder. Por isso, monta cenários que acabam beneficiando um partido que, perdoai-o, nem sempre sabe o que faz;

4) Lula descrê dos procedimentos institucionais, que fariam um partido aprender por ensaio e erro, e usa seu carisma para impor soluções que dão certo para o PT mas o mantêm imaturo, dependente dele.

Se quiser, escolha uma ou duas respostas, antes de continuar a leitura.

Vamos ao "gabarito". Quem cravou o ímpar tem bom juízo de Lula. Acredita que, sem ele, o PT viverá dificuldades. Concorda que a sucessão do líder carismático, que dominou o partido por trinta anos, seja conduzida por ele mesmo. Já quem preferiu as respostas pares receia que Lula enfraqueça as instituições - incluindo o próprio PT, que talvez não sobreviva a ele.

Mas, com esta interpretação, não abri minha resposta. Na verdade, são todas. Lula é um gênio da política - e acredita tanto em sua intuição que não se acha igual aos outros atores. Lula é o tutor necessário, que ajudou o PT a crescer e agora busca um sucessor - e o pai onipresente que impede o filho de crescer. Chegamos aqui ao limite tanto de Lula quanto do PT. Eles cresceram juntos. Já observei que quase todos os líderes petistas nasceram entre 1945 e 1950. Em 2018 será quase impossível um deles disputar a Presidência. Seria deixar a mesma geração no comando político por três décadas, isso depois de ter ela chefiado a oposição por vinte anos. Dilma, apenas dois anos mais nova que ele, pôde suceder-lhe em 2010. Já Tarso (por exemplo), se concorresse em 2018, estaria tarde - não por causa dos 71 anos que terá, mas porque manteria a mesma faixa etária do mesmo partido dirigindo o país.

Por que o PT jamais conseguiu definir um líder que, nem de longe, se comparasse a Lula? O Partido dos Trabalhadores nasceu, em 1980, como algo radicalmente novo. Não tinha débitos com os partidos comunistas, nem com a principal tradição marxista. Era criação de sindicalistas - tanto que velhos comunistas ainda hoje não o perdoam por isso: por ter líderes trabalhadores que não se subordinavam aos apparatchik do Partido - somados a dirigentes de lutas novas, como as comunidades de base católicas, movimentos de periferia e até defensores da descriminação da maconha. No mundo, não há partido de esquerda que tenha ao mesmo tempo o impacto, a dimensão e essa natureza não ou pouco comunista do PT. Daí que ele fosse a epítome do que era moderno. Daí que, quando quem ficou no PMDB se cansou de Quércia e foi fundar o PSDB - oito anos depois do PT -, ele também quisesse ser um "partido moderno". Isso levou, nos dois casos, a tentar novas formas e conteúdos.

Aí começa o problema. O PSDB tinha muito cacique e pouco índio. Seus chefes podiam ser respeitados, mas isso não bastava para organizar o partido. Não fosse a intervenção externa de Itamar Franco, que pinçou o líder menos "povão" do partido para fazê-lo presidente, teríamos uma federação de iguais, talvez se matando uns aos outros. Como FHC foi o escolhido, e ficou oito anos na Presidência, um mandato inédito no Brasil, o partido se acertou. Só não conseguiu, até hoje, renovar-se, mas esse é outro problema.

Já o PT - a agremiação mais inovadora em termos de costumes, mais radical dentre os grandes partidos brasileiros - paradoxalmente nunca se emancipou de seu grande líder carismático. Eis o problema: o PT seria racional, mas seu chefe lidera pelo carisma, que não é razão, mas sentimento.

Daí, a encruzilhada do PT. Se Lula continuar escolhendo, é melhor para o sucesso e talvez dê para, depois, o partido encontrar sua via. Mas se, com todos os seus líderes, o PT não consegue promover de baixo para cima a sucessão nas principais escolhas de 2010 e 2012, precisando da intervenção do chefe, um risco paira. Sempre é difícil passar do carisma para a instituição - de Gaulle foi o grande exemplo disso, na França. O ideal para o PT seria seus candidatos e filiados lançarem quem queiram, ouvindo Lula, mas apenas ouvindo. O partido poderia perder alguma eleição mas, a longo prazo, se emanciparia. Deixaria de ser o partido de Lula para ser ele mesmo. Mas, na política, geralmente se prefere a vitória logo; passar do carisma à instituição sempre é difícil; e num país como o nosso, multipartidário até a medula dos ossos, talvez seja mesmo absurdo um partido prescindir do líder que deu certo. Pois o PSDB, que é a negação do carisma e a exaltação das instituições, não sente a mesma enorme dificuldade para substituir FHC?

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras