segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O direito de errar

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 26/12/2011

Estudantes invadem a reitoria da universidade. A imprensa liberal pede que sejam desalojados. O governo afirma que só agirá a pedido do reitor. E este diz que prefere dialogar a chamar a polícia.

Sonho de estudantes brasileiros? Não. Pesadelo na Tunísia. Os estudantes, homens e barbudos, exigem a segregação das classes por sexo. Isso mesmo: salas separadas para alunos e alunas. O que permite dizer que Sartre errou quando, no rescaldo de maio de 1968, disse que "sempre há razão em se revoltar". Há revoltas indefensáveis.

Estive na Tunísia este mês, para um encontro da Academia da Latinidade, criada por Candido Mendes, que tratou precisamente das primaveras árabes. Os islamistas foram participantes minoritários nas revoltas mas, como disse um expositor, estão vencendo o outono, quando se realizam as eleições. Fui para lá com algumas convicções. Primeira, que não adianta dialogar com os islamistas; são fanáticos e sempre lhe responderão com um versículo do livro sagrado. Segunda, que eles devem ter plena liberdade de expressão e de concorrer às eleições. O maior erro no mundo árabe, nas últimas décadas, foi os militares argelinos, com o apoio da França, impedirem o partido islamista de assumir o poder conquistado nas eleições - as primeiras livres que houve no país - de 1991. Daí resultou uma guerra civil que matou umas 150 mil pessoas.

Os islamistas conseguem falar melhor aos pobres

Ao impasse argelino, contrapõe-se a saída turca. Desde 2002 a Turquia, país muçulmano mas secular, em que a separação entre Igreja e Estado foi um dos dogmas do fundador da república, Kemal Ataturk ("pai dos turcos"), é governada por um partido islamista. Houve choques entre ele e a cúpula militar mas, ao fim e ao cabo, as mulheres não foram obrigadas a trajar vestes que ocultem seu corpo, rosto ou cabelos. O que se fez foi, não proibir, mas permitir: islamistas foram autorizadas a ser apresentadoras de televisão com os cabelos cobertos. Ou seja, dois ganhos: um partido que poderia ameaçar o Estado de direito foi domesticado, e também o foram os militares, que antes disso deram vários golpes sangrentos de Estado.

Continuo convicto de que os islamistas não devem ser proibidos de disputar eleições. Mas adquiri uma percepção nova do que está acontecendo, pelo menos na Tunísia. Se é verdade que a maior bancada na Constituinte é islamista, também é certo que tem só um terço das cadeiras. Um dispositivo absurdo da lei eleitoral tunisiana dá, ao maior partido, isoladamente considerado, o direito de indicar o primeiro-ministro. Mas ele tem, claro, de obter o apoio da maioria do Parlamento. Portanto, o Ennahda (é o nome do partido) fez o chefe do governo, mas precisou compor com dois partidos de centro-esquerda e laicos para ter maioria e formar o gabinete. Resulta assim difícil os islamistas imporem a poligamia, a amputação de mãos para ladrões ou o apedrejamento de adúlteros. Além disso, a economia tunisiana não vai bem, a Constituinte tem mandato de apenas um ano e haverá eleições no fim de 2012. Tudo isso, disse-me o advogado Khaled Beji, submeterá a liderança islamista a um desgaste que poderá levá-la à derrota nas urnas, daqui a um ano.

Porém, é fato que os cinco países árabes da África do Norte terão, no ano que vem, islamistas no governo. Já há ministros deles na Argélia, como parceiros menores numa coligação. No Egito, a Irmandade Muçulmana, perseguida por Nasser e seus sucessores, encontrou gente mais fanática que ela - os salafistas. Somados, fizeram dois terços dos votos no primeiro turno para a Constituinte. No Marrocos, uma lei igual à tunisiana garante que o primeiro-ministro será islamista. Na Líbia, deposto Khadafi, é provável que a religião apareça na política mais do que em seu tempo.

Esse não é o melhor dos mundos para quem acredita em valores leigos, mas precisamos saber lidar com ele. O que fazer, senão dialogar? Há dados curiosos. Na Tunísia, a lei eleitoral mandava as listas de candidatos à Constituinte, fechadas e não abertas (isto é, estabelecidas de antemão pelos partidos e não, como no Brasil, pelo voto dos eleitores), alternarem homens e mulheres. Como vários partidos elegeram número ímpar de parlamentares, e homens encabeçavam as listas, o resultado foi cerca de 30% de mulheres - menos que a metade, mas bem mais do que nos parlamentos britânico, francês, alemão, norte-americano e brasileiro. O irônico é que a maior bancada feminina é logo a do Ennahda, que tomou posse com dezenas de deputadas que pareciam clones, todas cobertas de preto da cabeça aos pés.

Mas o diplomata francês Yves de la Messuzière, que foi embaixador da França na Tunísia na década passada, me alertou para não me fiar nas aparências. Contou que esteve em encontros do Hamas: as mulheres - embora hipervestidas - disputavam cargos de liderança com os homens. Querer a "modéstia" na vestimenta não significa, necessariamente nem sempre, querer a sujeição da mulher ao homem. Afinal, há mulheres para quem a exposição do corpo constitui uma submissão da mulher ao desejo masculino, assim como há outras para quem exibir o próprio corpo é um direito. O importante é não impor ao outro os seus valores. Mas, talvez, o mais preocupante seja que para muitos dos mais pobres o islamismo radical apareça como seu porta-voz. É o que sucede nas eleições egípcias. Cabe aos partidos leigos conquistar os pobres. Mesmo assim, a tragédia argelina deveria levar-nos a considerar que, enquanto houver urnas, há esperança. As sociedades, como as pessoas, podem aprender com o erro. Já quando não lhes é dada a chance de errar, não terão jamais como acertar.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Apurar até depois do fim

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 19/12/2011
Depois da queda de sete ministros em 11 meses, agora estão sob ataque os titulares das Cidades e do Desenvolvimento. Isso permite duas suposições fortes, embora conflitantes. A primeira é que haja um plano para derrubar um a um os ministros, acusando-os de corrupção. Basta ver que, a cada vez, o fogo se concentra num ministro, sem se dispersar; mas, tão logo ele cai, outro é visado. Tática de artilharia. Mas, ao dizer isso, não desculpo o governo - e este é meu segundo ponto. Os ministros não teriam caído se convencessem a opinião pública de sua inocência. Eu poderia enfatizar um lado ou outro da questão, puxando para o lado tucano ou petista, mas os dois me parecem importantes.

As acusações ao ministro Fernando Pimentel mostram que o ataque muda de patamar. Até agora foram expostos ministros pouco importantes ou, no caso de Palocci, mais próximos de Lula que de Dilma. Já Pimentel talvez seja o ministro mais chegado a ela. O roteiro Dilma - exigir do auxiliar que se explique, demitindo-o se não se defender bem - fica difícil agora. Se ele sair, a presidente terá entregue um auxiliar próximo. E, a continuarmos nesse ritmo, na hora das eleições já terão caído, se usarmos uma elementar regra de rês, 15 ministros ou mais: quase metade do gabinete. O custo será devastador para Dilma.

A política pode ser mais exigente que a própria ética

Daí que o lógico, mesmo que surjam provas contra Pimentel (por ora, são apenas suspeitas), será o governo defendê-lo. Essa parece ser a batalha decisiva. O ministro lembra que, quando prestou consultoria à Fiemg, não exercia cargo público. Mas na política não vale o princípio de que todos somos inocentes até prova em contrário. Quando uma acusação emplaca, o suspeito é culpado até provar sua inocência. Isso porque a política - e a mídia - seguem regras distintas das da lei penal. Imprensa e política lidam com aparências. FHC e Lula foram chamados de "teflon" porque nenhuma acusação grudava neles. A imagem que construíram era tão boa que vencia qualquer suspeita. Não é o caso dos ministros.

Acreditamos que a ética seja mais exigente que a política. Não é certo. Os ministros demitidos podem ser inocentes não só na lei penal, que exige provas robustas, mas também no plano ético. Podem ser gente direita. Só que a política é implacável. Uma imagem negativa é difícil de limpar.

Uma grande pergunta: qual o tamanho da corrupção? Nos últimos oito anos a Advocacia Geral da União, órgão do Poder Executivo, ajuizou ações para reaver R$ 67 bilhões, que estima desviados pela corrupção. Os processos se referem a atos do governo Lula, mas também dos anteriores - inclusive o de FHC. A soma é alta. Se juntarmos tudo o de que são acusados os ministros demitidos, talvez não chegue a um milésimo desses R$ 67 bilhões. Há muito mais a apurar. É possível que a grande corrupção vá por outros dutos, não pelos que foram denunciados.

Apurar, eu disse. Jamais afirmaria que este governo, o anterior ou qualquer um é o mais corrupto de nossa história. Simplesmente porque não há estudos medindo a corrupção. Só posso acreditar, com muita convicção, que na ditadura, que tinha dinheiro para investimentos e se valia da falta de transparência dos negócios públicos, a corrupção deve ter sido alta. Receio que, no governo tucano, as privatizações possam ter levado a desvios. Mas, se tenho esta convicção e este receio, é porque quase nada foi apurado. As denúncias que surgiram não chegaram a termo. Não se teve condenação nem absolvição, o que deixa forte odor de suspeita. Isso vale ainda para os governos petistas. A Controladoria Geral da União, também do Poder Executivo, demitiu milhares de funcionários desonestos - mas nenhum ministro.

O que fazer? Sentimos o descaso dos poderes constituídos por investigar, mas também a irresponsabilidade da mídia que denuncia. O mínimo a fazer, quando o ministro cai, é continuar a apuração. Se o Ministério Público e a polícia não o fazem, a mídia deveria manter a chama acesa. Mas não. Sai o ministro e ele some do noticiário. É pena. Se for culpado, o país tem de vê-lo punido. Mas, se for inocente, isso tem de ser reconhecido. Não devemos esquecer dois nomes que a política e a imprensa escondem, os grandes injustiçados dos anos 90: Alceni Guerra, ministro de Collor, execrado por um ato de corrupção que, depois se soube, ele não cometeu; Ibsen Pinheiro, que presidiu a votação do impeachment de Collor, cassado por um malfeito que, mais tarde se soube, ele não praticou. Guerra poderia ter sido governador do Paraná; Ibsen, presidente do Brasil. Suas carreiras foram truncadas. Ninguém pagou por isso.

Está na hora de cobrar. Se um ministro não tem mais o respeito da sociedade para continuar no cargo, a mídia que o derrubou deve exigir a apuração completa dos fatos e se empenhar nisso. Ele deve terminar condenado - ou ser reabilitado com todas as honras. Não cabe meio termo. Na Polônia do século XVIII, os negócios públicos estavam paralisados devido ao "liberum veto" - o direito de qualquer membro do Parlamento a vetar, mesmo sozinho, uma deliberação da Casa inteira. Para resolver esses impasses (que acabaram destruindo a Polônia, retalhada por seus poderosos vizinhos), Rousseau sugeriu que quem usasse o veto fosse julgado seis meses depois. Se provasse que tinha razão, seria exaltado; se não, executado. É claro que não defendo a pena de morte. Mas cada um dos ministros deveria ter seu caso apurado até o fim. Então seria proclamada sua inocência ou culpa. Igual rigor deve se aplicar a quem denuncia. Está na hora de parar de brincar com o sentimento de honestidade de nosso povo.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

São Paulo precisa mudar

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 12/12/2011

A menos de um ano das eleições municipais, a situação em nossa maior cidade parece se definir. Ninguém mais pode mudar de partido para concorrer. O PT irá com Fernando Haddad, como um novo valor que se prepara para voos mais altos. O PMDB investe em Gabriel Chalita, uma das pessoas mais simpáticas que existem. Sei, por experiência, que é capaz de retribuir críticas com educação e cooperação - o que é um trunfo que, se aproveitado no tempo de televisão de seu partido, lhe renderá votos. Já o PSDB tem uma dura opção. Ou escolhe um nome novo, com pouca chance de recompor a aliança tucana que há tempos governa a cidade e o Estado, ou convence José Serra a desistir da Presidência da República, que provavelmente ele almeja em 2014, e a encerrar sua carreira como prefeito - o que certamente não almeja. Mas é a grande chance tucana.

Mas nada disso tem muita importância. Poderia continuar o artigo como o iniciei, mas quero inverter a argumentação: em vez de perguntar que candidatos têm chance, indagar do que a cidade precisa. É mais difícil. Se focarmos os nomes e os partidos, sabemos que algo sairá: alguém será eleito. Teremos prefeito... Porém, se perguntarmos do que São Paulo precisa, é possível que o futuro prefeito não esteja à altura. Só que, na democracia, devemos ir de baixo para cima: do povo, dos cidadãos, para os políticos. Estes podem mandar, decidir, fazer muita coisa errada e alguma boa, mas o metro para avaliá-los são os eleitores, os anônimos.

O custo São Paulo é o trânsito parar a cidade

Do que São Paulo precisa, então? Vou me concentrar em poucos pontos. O primeiro é o transporte. É uma cidade em colapso. Quando o rodízio municipal de veículos foi introduzido, há uma década e meia, gerou um trânsito bom. Mas em poucos anos o enorme crescimento vegetativo da frota eliminou esse ganho. Nenhuma iniciativa audaz corrigiu a gradual conversão dos automóveis em imóveis. Um amigo diz que os carros vão parar de pagar IPVA e começar a recolher IPTU. Estamos perto disso. Os pobres gastam duas ou três horas para ir ao trabalho. A classe média facilmente leva, de carro, uma hora nesse trajeto.

Isso tem dois custos. Um é econômico. Todo serviço que dependa de locomoção, inclusive a entrega de mercadorias, tornou-se muito caro. Dificilmente um técnico de televisão visitará mais que duas casas num período do dia. Com um trânsito melhor, faria o dobro. Daí vem um "custo São Paulo", que merece ser destacado em comparação com o tão citado "custo Brasil". Este último é o peso tributário e burocrático sobre os negócios, somado a uma malha de transportes insuficiente para escoar a produção, sobretudo, agrícola. O custo São Paulo é o tempo perdido. Um prefeito inteligente de uma cidade pequena pode competir com a capital paulista. Introduzirá wi-fi por toda a parte e combinará com o Senac e o Sesi a formação de mão de obra para serviços não presenciais. Algo parecido sucede na Índia, onde vivem muitos atendentes das linhas telefônicas de vendas que servem os Estados Unidos. Para comprar uma geladeira, você liga um 1-800 e fala com alguém em... Nova Delhi. Nem percebe, porque o indiano treinou o sotaque americano. E há trabalhos a distância melhores. Em suma, qualquer lugar periférico pode competir com metrópoles estressadas, em tudo o que exija mais raciocínio que presença.

Outro custo do nosso transporte público ruim e do trânsito caótico é humano. O desgaste das pessoas é espantoso. Quem pode aguentar horas, por dia, guiando um carro? Hoje há até uma rádio, da qual eu pessoalmente gosto, consagrada ao trânsito. Ela tem fãs que, quando falam na emissora, usam as expressões e termos dos repórteres: surgiu até um dialeto da rádio Trânsito, neste ponto a mais bem sucedida de nossas emissoras. E o sofrimento humano de que falei pode ser quantificado. Ele aumenta doenças, onera relacionamentos pessoais, amplia a violência. Mas basta dizer que é um custo humano alto. Gente submetida a um tal desgaste emocional sofre.

Falei do transporte. "Dá para resolver", como dizia a "Folha de S. Paulo" em boxes no interior de suas páginas, anos atrás; mas ela abandonou a expressão, não sei se porque terá perdido a esperança. Há um problema, porém, que pode vir justamente do êxito. São Paulo é a cidade mais rica do país e oferece oportunidades de trabalho e de renda boas. Isso faz dela um polo de atração para pessoas, de todas as qualificações, de outros lugares. Chegamos à dura situação de que, se a cidade resolver seus problemas, com isso criará novos, porque atrairá mais pessoas. A única saída para isso é surgirem outros polos de atração.

Na verdade, a única saída consistente para São Paulo é o restante do Brasil se desenvolver bastante. Muitas soluções paulistanas são, na verdade, brasileiras. Nossos destinos estão indissoluvelmente entrelaçados. Para o transporte funcionar, o Brasil tem de parar de investir tanto no carro. Um dos maiores erros de Lula foi em 2008, a fim de enfrentar a crise, incentivar a compra de automóveis. Já para São Paulo ter uma dimensão humana - o que, no limite, exigiria reverter a migração, reduzindo seu número de habitantes - o Brasil tem de ser mais igual. É bom o fato de estar avançando neste rumo.

Os candidatos estão à altura desses desafios? Não sei. Mas a cidade e o Brasil ganharão se nós, eleitores ou comentadores, pensarmos menos em quem vai ganhar - ou perder - o governo, e mais em quem ganhará - ou perderá - com o governo. Um começo seria uma campanha, pelas redes sociais, por uma consciência de que não adianta facilitar o uso do carro, porque ele cria adictos; o negócio é melhorar o transporte público.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Democracias fazem guerra a democracias?

Por Renato Janine Ribeiro

Valor econômico, 5 de dezembro de 2011

Em fevereiro de 1979, a China, comunista, invadiu o Vietnã, também comunista. Quatro anos antes, o Vietnã tinha vencido os Estados Unidos após um conflito de duas décadas - a única derrota deste último país em sua história. O mundo se surpreendeu com o fato de dois Estados marxistas entrarem em guerra. Muitos disseram: em compensação, democracias não fazem guerra a democracias. Essa seria uma de suas grandes qualidades.

Mas será verdade? Na Grécia, onde começou o governo pela maioria do povo, Atenas guerreou várias outras cidades que eram igualmente democráticas. É possível que sua derrota na longa guerra do Peloponeso (431-404 antes de Cristo) - que coincidentemente é seguida pela execução de Sócrates, o modelo dos filósofos, e pela decadência da cidade-Estado - se deva em larga parte ao que hoje chamamos de "dupla moral": para os nossos tudo, para os outros, nada. O caso de Roma é ainda mais flagrante. Foi durante séculos uma república poderosa, em que o povo tinha voz, ainda que limitada, perante os aristocratas. Mas jamais soube - ou quis - reconhecer aos povos que conquistou fora da Itália os mesmos direitos que tinham os cidadãos romanos. Daí que fosse, como explicou Hobbes, uma democracia para uso interno, e uma monarquia (diríamos hoje: uma ditadura) na relação com os países colonizados.

A grande questão da democracia é crescer e incluir

Modernamente, é verdade que nenhum país democrático invadiu outro que também o fosse. Mas a questão ateniense e romana continua presente: várias democracias adotam um padrão para uso interno e outro, bem diferente, para uso externo. Todo o colonialismo e, por que não dizer, imperialismo modernos assim se explicam. No século XIX, a Grã Bretanha, a França e os Estados Unidos já eram Estados democráticos - menos do que hoje, mas bastante. No entanto, negavam a outros países os direitos de seus cidadãos. Há coisa pior, porém.

Refiro-me às intervenções de alguns desses países para eliminar movimentos democráticos em nações subdesenvolvidas. O caso talvez mais grave, até porque o feitiço se virou contra o feiticeiro, é o do Irã. Em 1953, o primeiro-ministro Mossadegh, favorável a uma democracia em estilo ocidental, é deposto por um golpe promovido pela CIA. O episódio é bem estudado por Stephen Kinzer, em seu excelente "All the Shah's Men". O xá volta ao poder, reprime ferozmente os rebeldes, prende Mossadegh (não ousa executá-lo) e - um quarto de século depois - é deposto por uma oposição religiosa que sequer existiria, caso a oposição leiga dos anos 50 tivesse podido se expressar. O que se segue - a teocracia islâmica - é pura culpa dessa agressão de um país democrático a um que tentava tornar-se democrático.

Ou pensemos no apoio dos Estados Unidos ao golpe contra João Goulart, presidente do Brasil, ou Salvador Allende, do Chile. Nos dois casos, tratava-se de países democráticos, com governos escolhidos segundo a Constituição em eleições limpas. Ora, subverter um regime, apoiar a deposição de um governo não são formas de fazer guerra? Então um regime democrático, o americano, guerreou outros, o brasileiro e o chileno, para não falar em muitos mais. Portanto, democracias fazem sim, na Antiguidade ou na era moderna, guerras umas a outras.

Que consequências podemos tirar desse fato? Primeira, se isto é um consolo, que entre si as democracias não fazem guerras explícitas, declaradas, como invasões. Se é verdade que "a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude", porque o desonesto se envergonha de sua desonestidade, então - pelo menos - os governantes democraticamente eleitos sabem que é feio atacar um regime democrático ou que se está democratizando. Faz alguma diferença, mas talvez seja pouca, porque a hipocrisia não impede o delito.

A segunda consequência é mais complicada. Digamos que a democracia é contagiosa, no melhor sentido do termo. Ela atrai. Então, quando uma democracia se fecha sobre si e nega direitos - seja a negros, a árabes, a mulheres, a quem for - ela se torna vulnerável e, pior, começa a sabotar a si mesma. Parece que uma democracia tende a ser aberta, integral, em expansão: não só amplia os direitos de quem a integra como, também, alarga o número dos que reconhece como pessoas, titulares de direitos. Aqui entra em cena o cosmopolitismo: a ideia, que vem do filósofo grego Diógenes, o Cínico, de que existe algo como um "cidadão do mundo", um "kosmopolites". Uma polis confinada em si mesma não faz sentido. Indo mais longe: é ou deveria ser da natureza das polis, dos Estados democráticos, serem amigos.

Não vivemos num mundo de conto de fadas, onde todas as democracias são gentis entre si. Mas a história mostra que os regimes populares do mundo antigo - a democracia ateniense e a república romana - sucumbiram por não saber integrar o dentro e o fora, os direitos reconhecidos a seus membros e o desprezo e exploração votados ao estrangeiro. Se a democracia é atraente e por isso tende a se hiperpovoar, isso não se resolve fechando-se suas portas ou, pior, reprimindo-se outros povos para que não a ameacem. Até porque novas democracias podem ser diferentes das que já existem. A democracia brasileira, sustento há tempos, coloca a necessidade de um afeto político democrático que rompa com uma tradição nossa do afeto autoritário, que até poucos anos prevalecia em nosso país. As democracias árabes, que poderão existir ou não, formulam novas perguntas. Não temos ainda as respostas mas - com toda a certeza - ela não virá negando-se o que conseguiram de democracia, porém somente o aumentando. Mesmo que isso implique riscos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A crise na USP

O conflito na Universidade de São Paulo é um assunto político relevante. É uma crise “na” USP, não é a crise “da” USP, porque ela continua sendo a melhor universidade brasileira. Não é a PM que está em jogo. Ela é, se tanto, pretexto, sintoma ou álibi. Podemos resumir a questão em duas frases: é nossa melhor universidade, e a única universidade pública brasileira que não tem eleição direta para seu reitor. Há relação entre esses dois fatos? É a melhor porque não elege seu reitor, ou apesar disso? Cada lado responde de um jeito. A universidade mais próxima da USP, a respeitada Unicamp, elege seu reitor. O mesmo fazem a UFMG, a UNESP e a UFRJ. Então? Temos na USP um conflito áspero entre quem quer uma universidade “democrática” – entendendo por isso a eleição de seus dirigentes pelos professores, alunos e funcionários, mas não pelo povo (demos em grego, lembremos) – e os que têm como principal questão a qualidade da pesquisa. Quem quer qualidade se incomoda com a retórica da eleição direta, demasiado politizada. Mas o esquema uspiano de escolha do reitor é um fracasso histórico. Graças a ele o titular do cargo faz o sucessor, o que acontece desde 1989, com duas exceções, a mais recente datando de 2009, quando o governador José Serra nomeou o segundo da lista tríplice. Esse esquema faz que a comunidade não sinta o reitor como um líder que ela apoia.

O sistema de escolha na USP é único no Brasil. No primeiro turno, votam membros das Congregações e Conselhos Centrais, quase 2 mil pessoas, na maioria professores. Isso não é ruim. Ruim é que seu voto vale pouco. Cada um pode sufragar até três professores titulares (qualquer deles, pois não há candidaturas formais). Os oito mais votados vão a um segundo turno, perante um colégio de 360 membros, composto pelos Conselhos Centrais, sobre os quais a reitoria tem forte influência. Esse colégio envia uma lista tríplice ao governador, que costuma nomear o mais votado. Mas, quando Serra escolheu o segundo, a universidade nem chiou – sinal de que nem ela leva muito a sério sua própria votação. A idéia original do sistema era que nomes surgissem espontaneamente, de modo que, sem fazer campanha, algum valor notável despontasse dentre os oito, depois entre os três, e acabasse escolhido pelo governador. Mas nunca foi assim. Sempre a disputa se polarizou, desde o início, entre dois ou três nomes.

O que fazer? O mais simples é eliminar o segundo turno e passar a decisão para o colégio amplo. Ou, mais radicalmente, seguindo o que a lei federal faculta, instituir uma eleição direta na qual os votos dos professores pesem 70%, ficando funcionários e alunos (e talvez ex-alunos) com 30%. Mas a representação sindical e a dos alunos querem bem mais que isso, o que apavora os bons pesquisadores, receosos de que a universidade seja tomada por micropartidos políticos. Daria para chegar a um acordo que, pelo menos, reduzisse o poder da reitoria na escolha do sucessor. Mas não há conversa. Relatei o assunto no Conselho Universitário, este ano, e metade dos que falaram defendeu uma “estatuinte”: o curioso é que vários oradores nem mencionaram o assunto em pauta, que era a eleição do reitor...

Posso atestar, por minha experiência na Capes, convivendo com reitores do Brasil todo, que a eleição direta, apesar de trazer o risco da escolha de um reitor demagogo e sem compromisso com a qualidade, tem levado a bons reitores ou, pelo menos, razoáveis. Isso não quer dizer que o sistema seja perfeito. Desde Tarso Genro, é política do MEC nomear o mais votado – mas sei que, quando ele levou ao presidente da República sua proposta de reforma universitária, depois sepultada, Lula foi taxativo: não tiraria da lei a lista tríplice. Na prática, o ministro nomeia o preferido da comunidade; mas as universidades federais não têm a autonomia das paulistas. A USP, Unesp e Unicamp não precisam ir a cada mês pedir dinheiro ao governo. As universidades federais, sim. Daí, também, que no período democrático nunca um reitor paulista tenha declarado apoio a um candidato a governador ou presidente. Já a grande maioria dos reitores federais é induzida a apoiar o candidato do PT, como se viu em 2006 e 2010. Em suma, nada disso é simples. Os reitores federais, eleitos, têm apoio da comunidade, mas pouca autonomia em face do governo federal.

Não estamos na situação em que um lado é inteiramente certo e o outro, totalmente errado. Mas talvez o maior problema esteja em confundir poder e autoridade. A reitoria tem poder. Os defensores da eleição direta querem democratizar esse poder. Mas, numa boa universidade, o poder é menos que a autoridade: o respeito que alguém conquista por sua qualidade ética ou, no caso, científica. Não há nomeação ou eleição que confira autoridade. Disputar o poder é perder o que é próprio de uma boa universidade.

Mesmo assim, é preciso negociar. Um lado tem o poder, sabe que é impossível – salvo uma improvável revolução que tivesse por meta principal mudar a escolha do reitor da USP – alterar o Estatuto sem o Conselho Universitário, e conclui que basta aguentar duas invasões da reitoria por ano. O atual reitor tinha prometido mudar as regras de escolha no seu primeiro ano de mandato; está para vencer o segundo e não o conseguiu. Já o outro lado é mobilizado, procura tornar o reitor antipático, provavelmente não é majoritário na USP e não parece querer negociar uma solução intermediária. Daí, um impasse desnecessário e que mancha a imagem externa da USP – na qual, enquanto isso, ótimos pesquisadores, da Medicina à FFLCH, continuam seu trabalho.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A democracia e a economia

Por Renato Janine Ribeiro

Valor Econômico, 21/11/2011

Em nosso tempo, nada rivaliza com a economia, em termos de poder. Menos de dois séculos atrás, Karl Marx chocava o mundo ao dizer que a política (estou simplificando) seguia a economia. Faz cinquenta anos, a direita usava argumentos religiosos, espirituais, morais para enfrentar o "materialismo ateu", que reduzia a riqueza do ser humano, criado à imagem de Deus, à vulgaridade econômica. Mas como bem disse, embora grosseiramente, James Carville, o marqueteiro de Bill Clinton que foi decisivo para elegê-lo presidente dos Estados Unidos: "O que conta é a economia, seu estúpido".

Esse fato tem vários desdobramentos. O primeiro fortalece a democracia. Acabou, quase por completo, pelo menos nos países em que há comunicação de massas, a ideia de que os pobres acatariam sua condição porque Deus assim o quis. Uma notável peça de Pedro Calderón de la Barca, "O grande teatro do mundo", sustentava, na década de 1630, que cada um deveria contentar-se com sua condição social, do miserável até o monarca, e cumprir o seu papel (daí, a referência ao teatro) adequadamente. Hoje, nem pensar. Em nossa sociedade, todos querem viver melhor. Mesmo quem está no topo da escala social e poderia nada almejar a mais, continua desejando subir. Quanto aos mais pobres, nenhum argumento religioso os convencerá de que devem suportar sua situação, digamos, cristãmente. Um arcebispo de Diamantina, líder da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, disse certa vez que precisa haver pobres, e mesmo muito pobres - porque, se não houver, como os ricos conseguirão ir para o céu, não podendo exercer a virtude da caridade? Admirável essa preocupação de salvar os ricos no Além, ainda que às custas dos pobres aqui e agora. Mas acabou. Ninguém mais diria essa tolice, hoje.

Vencer a pobreza só é possível com a economia

Portanto, os pobres querem, dos governos, que os ajudem a melhorar de vida e a deixar a pobreza. A classe média quer subir na vida e os ricos, pouco numerosos mas com bala na agulha, também. Isso faz que, em países como o nosso, a grande maioria de pobres tenha bem claro o que deseja da democracia: que ela seja social, isto é, que não fique só na política, mas mexa também na estratificação da sociedade, tornando-a mais justa. Esse fator, fortemente democrático, está ligado ao primado da economia em nossos tempos.

Mas há outro lado, que é pouco democrático. Porque quem entende da economia? Bem poucos. O sufrágio universal se impôs. Os eleitores têm cada vez mais consciência do que desejam e querem. Mas o instrumento para realizar essa prosperidade crescente, ou pelo menos para acabar com a miséria, reduzir a pobreza e baixar a desigualdade, é arcano - isto é, de difícil compreensão. Em outras palavras: está numa ciência (ainda que não exata), cujo domínio exige especialização e conhecimento profundo. Daí que as eleições tenham alcance limitado. Isso porque, entre o dia da eleição, que é quando se manifesta a democracia, isto é, a soberania popular, e os quatro anos de gestão dos negócios públicos, onde a economia prevalece, há uma distância - e mesmo um abismo.

Tudo isso, tanto o aspecto democrático que consiste num povo que não aceita mais a pobreza como natural ou santa, quanto o lado pouco democrático de uma gestão das coisas cuja compreensão escapa à esmagadora maioria, traz consequências para as democracias. Primeira e óbvia: nunca se promete uma recessão, um empobrecimento. O que se oferece é o contrário. Vejam a Califórnia, tema de reportagem de novembro na "Vanity Fair", acessível na Internet: o Estado quebrou, vários municípios ricos quebraram, sobretudo porque uma emenda constitucional de perfil conservador exige dois terços do Legislativo para aumentar qualquer imposto. Kaputt. É um caso extremo, mas que mostra que políticos, quando concorrem a uma eleição, têm de omitir o que vão fazer, ou mesmo mentir. De onde José Serra tiraria os aumentos que prometeu, no mês final antes da eleição de 2010, para o salário mínimo e a bolsa-família? Não o acuso; apenas digo que nenhum político pode agir de outro modo. Vão prometer. Então, a emancipação do povo, que consiste em ele não acatar mais a pobreza, vem junto com sua infantilização: ao povo, não se conta a verdade.

Daí, outra consequência: o primeiro ano de governo é de cortes e talvez de recessão. Já o ano da eleição tem que ser próspero, custe o que custar. Os economistas ficam de cabelos em pé ao verem isso, claro. Mas, por outro lado, suas receitas só eles entendem. Pouca gente mais. Alguém acredita que FHC entenda profundamente de economia? Ele conhece finamente a sociedade, seus processos e sua política. Emprestou sua competência para viabilizar o Plano Real, e com ele ganhou dois mandatos presidenciais. Mas a economia tem segredos. Por isso, quem entende dela - ou quem convence os outros que entende dela - tem acesso direto aos governantes.

E aqui vem nosso último problema. Quase todo o receituário dos economistas, salvo os keynesianos e os (poucos) marxistas, é conservador. Propõe corte de gastos públicos, redução de direitos sociais, até mini-recessões. Não há como defender isso junto ao povo, seja este grego, italiano ou brasileiro. Há alternativas? Claro que sim. A Argentina renasceu sem esse receituário. O Brasil superou 2008 sem essas receitas. A Islândia se recusou a cumpri-las. Claro que, em outros casos, o caminho será outro. Mas geralmente só se diz a receita quase única, aquela que nunca passaria numa eleição. Daí que, se a democracia exige uma economia em crescente prosperidade, a atuação dos economistas nem sempre seja muito democrática.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Ministérios de primeira e de segunda

Por Renato Janine Ribeiro

Valor econômico, 14/11/2011

Por que o governo não dá a merecida importância a ministérios como Esportes, Turismo - que foram moeda de troca na composição da aliança no poder e talvez por isso tiveram seus ex-titulares acusados de malfeitos - e Cultura, cuja ministra é criticada, pelos artistas, por um desempenho que não lhes agrada? São três Pastas pequenas e secundárias na Esplanada, mas portadoras de um enorme futuro. Tudo indica que, em poucos anos, o aumento do lazer, inclusive criativo, a preocupação com a saúde e a difusão do hábito de cuidar do corpo vão gerar um grande boom, econômico e social, na cultura, nos esportes e no turismo. Por que, então, figuram eles no final da hierarquia dos ministérios? Por que essa miopia dos governantes - e aí incluo os estaduais e municipais?

Esportes e Turismo estão entre os ministérios cujos primeiros titulares no governo Dilma foram acusados de corrupção. A ministra da Cultura foi chamada de inepta. Tenham ou não razão os seus críticos, essas Pastas sempre ficaram em segundo plano. Cultura teve alguns grandes ministros, a começar por Celso Furtado, mas nunca muito dinheiro. Mas será nesses ministérios, e alguns outros, que muita coisa boa poderá nascer no futuro próximo. Então, ou o governo passa a priorizá-los - ou vamos perder grandes oportunidades.

Esses setores têm potencial de riqueza econômica. Nos esportes estão hoje dois eventos de alcance mundial, a Copa e os Jogos Olímpicos. Mas, para além das efemérides, o fato é que, quanto mais as classes médias e a sociedade em geral queiram ter maior prazer com seu corpo, maior "wellness", palavra ainda sem tradução mas que designa um bem-estar intensificado, mais crescerá a área de Esportes. Isso abre perspectivas inéditas para os ministérios e secretarias, estaduais e municipais, da área.

Governo despreza as Pastas de maior futuro

Turismo é outra Pasta que às vezes serve, como Esportes, para fazer alianças a baixo custo com partidos ou líderes a quem você não teria coragem de dar a Fazenda, a Justiça ou a Casa Civil. No segundo governo Lula, foi o prêmio de consolação a Marta Suplicy por não receber a Educação - e ela fez uma boa gestão. Contudo, politicamente é um ministério fraco, até porque notícias a respeito saem no caderno de Viagens e não no de Política... Mas cada vez mais o prazer de viajar estará na ordem do dia. Não por acaso, quando Mares Guia ocupava a Pasta, no primeiro governo Lula, seu amigo Claudio de Moura Castro propôs medidas em favor do ecoturismo, do turismo radical e de outras formas de prazer, digamos, "de ponta".

Ao contrário de Esportes e Turismo, a Cultura não serve de moeda de troca partidária - ou porque se tem mais respeito por ela (improvável), ou porque se vê menor chance de negócios. Mas costumo cotejá-la com Ciência e Tecnologia. São dois ministérios refinados, que lidam com assuntos de qualidade. Contudo, embora haja bem mais artistas do que cientistas no Brasil, o MCT é mais rico que o MinC. Por quê? Porque os cientistas são organizados. Unem-se. Pressionam. Embora biólogos e físicos praticamente controlem a politica científica, também as outras áreas conseguem seu quinhão. Já na Cultura, é difícil. A criação é muito dispersa. A verba acaba pequena.

Temos aqui grandes oportunidades desperdiçadas. É provável que, em poucos anos, as áreas de maior interesse das pessoas sejam os esportes e a cultura - com uma brecha para as viagens, claro. "Mens sana in corpore sano", dá vontade de dizer, mas com uma diferença: o ideal da primeira metade do século XX - ginástica sueca e alta cultura - cede lugar a exercícios alternativos, variados, e a uma cultura cheia de diversidade, criativa, espontânea. Acredito que aí surgirão negócios economicamente poderosos. Ouso dizer que quem apostar em menos carros e mais academias e centros culturais (ou em cultura sem centros) não só fará um bem para a humanidade como, além disso, poderá ganhar um bom dinheiro.

Por que, então, os governos deixam esses ministérios num segundo plano? É verdade que o único ministro de FHC maior que seu cargo foi o dos Esportes - Edson Arantes do Nascimento - e que o único ministro de Lula maior que o seu posto era o da Cultura - Gilberto Passos Gil Moreira. No entanto, Pelé foi um ministro apagado e Gil várias vezes esteve ameaçado de ficar sem orçamento. Pelo menos uma vez, eu soube que esteve a ponto de pedir demissão, pois iam cortar 57% de suas verbas. Imaginem só, perder Gilberto Gil: falta audácia a nossos governos.

Sei que algumas Pastas são decisivas. Uma comanda a economia, da qual hoje tudo depende. Ora é a Fazenda, ora o Planejamento. Outra dirige a política, as leis - é a Justiça. A terceira é a Casa Civil, que articula o governo - tanto que nos Estados se chama secretaria de Governo. Um grupo de Pastas que já foi decisivo, os militares, hoje se reduziu à sua real significância, no ministério da Defesa. Muito bem.

Temos os grandes ministérios "sociais", como Saúde, Educação e Desenvolvimento Social. Eles investem no futuro, pois quando funcionam bem reduzem doenças, melhoram a qualidade de vida, qualificam as pessoas no trabalho e no lazer. Merecem seus orçamentos altos.

Mas o que não dá para entender é que, ainda hoje, Pastas que têm carimbado no seu DNA as palavras "futuro", "prazer" e mesmo "felicidade" fiquem relegadas a um segundo plano, com verbas pequenas e, sobretudo, pouca antevisão, pouca projeção do novo, servindo de moeda partidária e se exigindo pouca performance delas. Um mundo novo está surgindo, e falta arrojo aos governos para perceber tudo o que pode nos trazer - e, mais que isso, tomar as medidas nesta direção.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

De cargo em cargo

Por Renato Janine Ribeiro

Valor econômico, 7/11/2011

Uma coisa que me surpreendeu, quando trabalhei em Brasília num cargo de confiança bastante técnico e nada partidário (como diretor de avaliação, na Capes, incumbido de avaliar os milhares de doutorados e mestrados brasileiros), foi ver como é difícil a situação de quem assume tais cargos. Esse assunto costuma ser tratado politicamente, sob a forma de críticas ao número de cargos de confiança. Mas nunca o vi ser tratado humanamente, vendo a dificuldade que acarreta para quem se muda para a capital por um período, em princípio, provisório. Esse lado "humano", obviamente, tem consequências políticas.

Explicando os cargos de confiança: eles incluem, além dos ministros e secretários executivos, uma hierarquia de DAS, que vão de 1, o mais baixo, até 6, diretamente subordinado ao ministro. Cada nível de DAS tem remuneração e prerrogativas próprias. Por exemplo, só os DAS 4 e superiores têm direito a auxílio-residência, necessário para quem vem de fora da cidade em que vai trabalhar. Isso vale para Brasília, onde está a maioria dos dirigentes federais, mas também para outras cidades. Por exemplo, o diretor da Biblioteca Nacional, que fica no Rio de Janeiro, tem seu DAS (ou, como se diz, "é um DAS") e, se vier de fora do Rio, receberá auxílio para a moradia. Este valia 2100 reais por mês em 2008 e é apenas suficiente para pagar as despesas de residência, até porque é prudente o DAS evitar um compromisso de longo prazo (o aluguel de um apartamento por tempo fixo), dado que pode ser demitido ou demitir-se a qualquer momento.

Outra prerrogativa: os DAS 5 e 6 têm direito a usar carro oficial (a serviço, obviamente), enquanto os outros DAS só podem utilizá-los acompanhando os primeiros. Uma curiosidade é que o DAS-5 usa carro oficial branco, com logotipo enorme do órgão em que trabalha, enquanto o DAS-6 utiliza carro oficial preto, com discreto logotipo genérico anunciando tratar-se de serviço público federal. Há um curioso dégradé que vai do lógico (o pagamento diferenciado, certos direitos hierarquizados) ao risível (a cor do carro e, pior, as formas de tratamento que o dirigente tem de usar). Certa vez, tive de responder ao mais importante dos senadores. Era uma formalidade qualquer, mas disse à minha secretária que subscreveria "atenciosamente" sem nenhum problema mas me recusava a dar, àquele prócer, a fórmula "respeitosamente". Veio então uma funcionária categorizada com um manual, que mandava autoridades de meu nível usar o "respeitosamente" com os membros do Senado Federal. Lembrei um livro que escrevi sobre a etiqueta nas cortes do Antigo Regime...

Um depoimento de cinco anos na ponte aérea

Voltando ao que é sério, bastante sério: numa Federação, é preciso que um número razoável de DAS-4 a 6 venham de fora da capital. Compreende-se que os DAS-1 até 3, que não têm auxílio para morar, sejam sobretudo de carreira e/ou já morem em Brasília. Contudo, quem sai de seu Estado para viver no Distrito Federal enfrenta escolhas difíceis. Precisa decidir se muda mesmo, ou se mantém casa e família no Estado de origem. Se voltar para casa toda semana, a passagem sai do seu bolso. Este é um ônus financeiro alto. Há também o ônus afetivo de estar longe dos entes queridos. A alternativa é mudarem todos para a capital. Isso implica conseguir um emprego para o cônjuge e transferir os filhos de escola, com as rupturas de vínculos que isso requer. Evidentemente, em especial ante os riscos de apagão aéreo, humanamente falando a solução menos ruim é a segunda, mas notem os custos. Evita-se o desgaste do alto funcionário, porém seu cônjuge precisará de um emprego, geralmente no governo, mas em outro ministério, recendendo um tanto a favor, e os filhos mudarão toda a sua rede de relações, numa fase delicada da vida. Mudam amigos, sotaque, hábitos.

Dá para entender que quem se transfere mesmo para Brasília dificilmente queira sair de lá? Delfim Neto disse certa vez que camadas geológicas vão se depositando no DF, cada uma legada por um governo. Porque quem pagou tanto para se mudar dificilmente vai querer, desde que se adapte, voltar para seu Estado. Daí que muitos procurem se manter lá, seja no governo, seja em entidades não governamentais mas que com frequência têm contatos com o poder público.

Daí, também, outra consequência. Se é natural supor que, ao fim de quatro ou oito anos, isto é, de um mandato presidencial, mudem os detentores dos cargos - o que em tese permitiria prever o retorno, não fosse o enorme custo afetivo, de que falei - também sucede muita demissão e nomeação ao longo do mandato. Chefes e subordinados se indispõem. Vi ministros realocarem DAS que eles mesmos haviam demitido. Porque há o lado humano. Imaginem que em maio, na metade do ano escolar, alguém deixe o cargo e, com ele, Brasília; como ficam o cônjuge e os filhos? Em dinheiro, o custo de voltarem todos para seu Estado já é alto. Em termos humanos, o preço sobe exponencialmente. Daí que não se queira largar o cargo. Por isso, ou as pessoas se apegam a eles e fazem de tudo para os manter, ou procuram ir de cargo em cargo, governo após governo. Daí, finalmente, as camadas geológicas...

O que fazer para melhorar essa situação? Não sei. A solução que eu e vários adotamos foi a de pagar passagens para nossos Estados, onde continuamos vivendo, mesmo trabalhando a semana toda em Brasília. Não aconselho, porém; você fica sem raiz. Passei quase cinco anos sem saber onde vivia. Deve haver uma solução para isso, mas ignoro. Creio que deveria, pelo menos, levantar um problema que afeta muitos quadros graúdos do país, mas passa sem comentários na discussão politica.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O primeiro grande erro de Dilma

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 31/10/2011

Nomeando ministro do Esporte o deputado Aldo Rebelo, artífice da maior derrota do seu governo no Congresso, a presidente Dilma Rousseff comete seu primeiro grande erro. Ela premia a indisciplina, pois deixara clara sua discordância do projeto pró-ruralista do Código Florestal, redigido justamente por Rebelo. Mas primeiro precisamos analisar melhor como a presidente vem lidando com os problemas ministeriais.

Com a troca no ministério dos Esportes, chegam a seis os ministros que Dilma substituiu, em poucos meses. Isso não é anormal. Demora, para um governante articular seus ministros. Fiquei sabendo que a presidente, ao nomeá-los, lhes explicou que este ano, devido aos cortes orçamentários que afetaram todas as Pastas, não cobraria performance. Em 2011, só sairia "quem fizesse bobagem". Mas em 2012 ela exigiria desempenho.

Assim tem sido. As críticas estridentes dos artistas à ministra da Cultura não a derrubaram. Mas, se um ministro não responde bem à conjuntura difícil, ele sai. Dilma não deixa aumentar o desgaste. Ele pode sair por indisciplina, como Nelson Jobim, ou por não esclarecer denúncias de corrupção. Não sabemos se é culpado. Sabemos que ficou insustentável sua permanência no poder.

Nomeando Aldo, Dilma premia a indisciplina

Até aí, está certo. Mas há um dado adicional. Nenhuma substituição surpreendeu a nação por seu impacto. Entrou só um peso pesado, Celso Amorim, mas no lugar de outro peso pesado, Jobim. Nos outros casos, entraram pessoas com menor destaque que o substituído - Gleisi Hoffmann é menos conhecida do que Antonio Palocci. Isso ainda é aceitável. A discrição pode ser uma virtude. Aliás, aqui Aldo Rebelo é exceção. Seu perfil é bem superior ao de Orlando Silva. Ele é o maior nome do PCdoB.

Mas o problema começa agora: pelo menos no Turismo e nos Esportes, ficou claro que a Pasta pertence ao partido. Há ministérios que são feudos. Sai o denunciado, mas a agremiação conserva a vaga. Pior: quando o novo ministro do Turismo decidiu nomear uma pessoa competente para uma secretaria, seu próprio partido exigiu uma indicação política. Ou seja, o partido não se responsabiliza pelos erros, talvez graves, cometidos numa Pasta que ele ocupa. O Executivo arca com o ônus de fazer a máquina funcionar. O partido, só com os bônus. Pois tem a garantia de que, por pior que seja o nome indicado, só terá de substituí-lo por outro, que lhe conserve cargos e convênios.

Isso enfraquece a presidência da República. O PCdoB, partido que viceja graças ao PT, impôs a Dilma o nome de Aldo Rebelo. É um político capaz. Presidiu a CPI da CGF. Também presidiu a Câmara. Foi um bom ministro. Conseguiu, pertencendo a uma legenda outrora radical, negociar com todo o espectro político - tanto que foi cogitado, no governo Lula, para o ministério da Defesa, sem que isso incomodasse os militares. Não recearam que Aldo mandasse investigar as mortes de seus correligionários na guerrilha do Araguaia. Em suma, mostrou-se hábil, moderado e até conservador.

Tão conservador que seu partido agora ocupa a secretaria de Esporte do prefeito de S. Paulo, aliado de José Serra; tão conservador que foi Aldo Rebelo quem montou a versão pró-ruralista do Código Florestal... Conseguiu que praticamente a Câmara inteira votasse contra os ambientalistas. Quem perdeu na ocasião foram o PV, mas também o PT e a presidente Dilma. (O PSDB votou com os ruralistas, apesar de ter querido namorar Marina Silva no segundo turno presidencial, em 2010). Trazer Aldo para o governo é esquecer tudo isso, o que não condiz com a imagem exigente e severa da chefe de Estado.

Isso torna ainda mais vulnerável o ministério do Meio Ambiente, um dos menos prestigiados pelos governos petistas. Não são poucas as dificuldades que a atual ministra tem enfrentado, embora conte com o apoio dos ambientalistas. A primeira titular petista da Pasta, a senadora Marina, acabou rompendo com Lula e, em 2010, teve uma votação impressionante. Portanto, se os verdes têm pouca bala na agulha no plano institucional, se agora Marina e o PV se digladiam, se desde a eleição ela e eles foram esquecidos e quando se fala em oposição se pensa apenas na mais tradicional, o PSDB, nem por isso eles carecem de poder de fogo. Podem mobilizar a opinião, nacional e internacional. Um projeto consistente e empolgante para o futuro do Brasil passará, necessariamente, pela questão ambiental. Os ambientalistas, estejam no Meio Ambiente, na Ciência e Tecnologia, em ONGs ou na oposição, desempenharão um papel importante em nosso futuro próximo.

O que fará Aldo Rebelo, no ministério, ao se tornar colega de pessoas que enfrentou, em decidida oposição a nosso futuro? Político capaz, possivelmente será um gentleman com a colega do Meio Ambiente. Evitará confrontá-la no que disser respeito ao Código Florestal, até porque sua missão agora é outra. Mas tudo isso está longe de ser uma boa saída.

Há uma saída que poderia reduzir os danos. Ela é improvável. Mas consistiria em Aldo, por iniciativa própria ou por determinação presidencial, aproveitar o enorme cabedal de simpatias que construiu junto aos ruralistas para convencê-los a recuar, a ceder. Até o momento, quem perdeu foram os ambientalistas. Se o novo ministro agir no plano politico para desfazer parte pelo menos do que ajudou a montar, em termos de descaso com o meio ambiente, pode ser que neutralize vários aspectos negativos que apontei. Mas continuam valendo minhas outras críticas. Dilma premiou a indisciplina, garantiu a um minipartido seu feudo ministerial e não responsabiliza os parlamentares pelos erros de seus indicados. Ela devia ter sido firme. Não foi.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A liberdade de expressão

Por Renato Janine Ribeiro
Valor econômico, 24/10/2011

Não saberia discutir o caso Rafael Bastos, pela mera razão de que nunca vi o humorista. Mas o debate sobre afirmações agressivas e até desrespeitosas - refiram-se a mulheres feias, refiram-se a homossexuais -, indo do deputado Bolsonaro aos humoristas, é de grande importância política. Porque está em jogo o alcance da liberdade de expressão.

Ora, o que tenho lido a respeito e constitui um quase consenso entre os jornalistas, mas não tanto fora de seu meio, se resume assim: é inaceitável qualquer censura. É preferível que, no mais livre debate, se possa expressar o que há de mais odioso, porque poderá ser contestado, do que coibir sua veiculação. Primeiro, porque se alguém tiver o poder de definir o que é decente e indecente, o que é "do bem" ou "do mal", esse alguém terá um poder ilimitado, que inevitavelmente empregará para proteger e promover o seu lado e reprimir seus opositores. Segundo, porque estamos lidando com adultos. Eles não podem ter restringido seu direito de acesso a toda forma de opinião até porque, só pelo acesso, pelo debate, pela exposição de ideias opostas, poderão superar o preconceito.

Creio que meu resumo é bastante fiel. Aliás, concordo com tudo isso. Só acho que esse discurso deixa de lado dois problemas sérios. O primeiro é que nenhuma liberdade é absoluta, nem mesmo a de expressão. Na Alemanha, por razões óbvias, a apologia do nazismo é proibida. Na França, negar a realidade histórica do Holocausto constitui crime. Os dois países entendem que a expressão de ideias fascistas não deve ser tolerada, pelos males que já causaram. Considera-se que os indivíduos não dispõem necessariamente de antivírus contra esses perigos.

Todo abuso de uma liberdade constitui crime inaceitável

Deixam a Alemanha e a França de ser países democráticos, porque proíbem a pregação do ódio? No Brasil, a Constituição que veda a censura manda respeitar o nome, a reputação e a família. Qual o equilíbrio entre o direito de se expressar livremente e a obrigação de respeitar o outro? Esse ponto tem de ser definido. Não havendo lei de imprensa, ficam indefinidas as fronteiras entre o direito de se expressar e o de se proteger da calúnia. Esse limbo deixa tudo ao arbítrio do juiz.

Mas há um segundo problema - e esse me entristece. Trinta anos atrás, vivíamos sob a ditadura mais longa de nossa história. Defender a liberdade de expressão significava, então, lutar para que riquezas enormes viessem à tona. Pudera: de 1964 até 1985, passamos por três fases de suspensão até das garantias constitucionais mínimas - seis meses do Ato Institucional, em 1964, ano e meio do AI-2, entre 1965 e 1967, mais de dez anos do AI-5, começando em 1968. Na outra metade da ditadura, mesmo sem atos institucionais, as leis vigentes limitavam muito a liberdade. A esperança era então que a liberdade nos trouxesse ar, vida, sensibilidade, inteligência. Quando um livro, filme ou peça era proibido, víamos nisso um selo de qualidade. E quase sempre tínhamos razão.

Então por que hoje, quando se fala em liberdade de expressão, é para defender o direito a dizer e fazer o pior, não para o melhor? Repito: não me julgo capacitado a dizer o que é bom ou mau, nem quero para mim o poder legal de distingui-los. Mas, nos tempos que evoco, a liberdade era vista como criativa, produtiva de melhores relações humanas. Hoje, porém, quando ela é invocada pelos jornalistas a que aludi, é para autorizar a expressão do que há de pior no ser humano. Mais grave que Bolsonaro, aliás, foi o deputado paulista que acusou os negros de descenderem do filho maldito de Noé. Aqui, saímos dos limites democráticos e entramos no âmbito do que uma sociedade decente pode e deve castigar. Não defendo a censura. Censurar e punir são coisas bem diferentes. A censura se faz antes. Já a punição se aplica depois. A censura impede que se cometa um ato julgado errado. Curiosamente, ela torna o censurado inocente e impune, porque não pôde fazer a coisa errada (supondo que fosse mesmo errada). Mais adequada é a punição, que não impede ninguém de dizer o que quiser, mas castiga com o rigor da lei, após processo justo, quem agiu criminosamente de qualquer forma, inclusive com a palavra.

Mas hoje a liberdade de expressão deixou de ser selo de qualidade para se tornar sinal de desesperança. A maior parte dos que defenderam Rafael Bastos e outros humoristas que avançaram o sinal, pelo menos, do bom gosto alega que qualquer limite à liberdade de expressão pode levar ao controle dos adultos por um governo que imporá cada vez mais controles e censuras. Eu concordo, contra a censura. Contudo, não é um triste sinal dos tempos que hoje, quando se elogia a liberdade de expressão, seja para tolerar o discurso vulgar, preconceituoso, que rebaixa o nível do convívio social - e não mais para criticar o que existe de errado, apresentar utopias, fazer a razão sonhar?

Nos tempos em que a América Latina padecia sob as ditaduras de direita e a Europa Oriental sob as de esquerda, dizia-se que nas gavetas havia inúmeras obras de qualidade, proibidas pela censura - e que, caindo o regime autoritário, cem flores floresceriam. Mas isso não sucedeu. Havia menos obras-primas proibidas do que se imaginava. Parece que, em geral, uma obra-prima precisa de liberdade, não só para ser publicada, mas até mesmo para ser escrita. Mas o que me entristece é ver que hoje se valoriza cada vez mais o vulgar, o reles. Anos atrás, esperávamos que a liberdade gerasse o bom e o ótimo. Agora, parece que o reles é a essência da liberdade, seu produto mais constante, talvez mais importante. Só posso dizer que lastimo esse estado de coisas.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Política sem pressa

Por Renato Janine Ribeiro

Um amigo foi a Manaus, este ano, para a temporada operística. No intervalo de "Tristão e Isolda", magnífica mas, como tudo em Wagner, longuíssima, comentou aos vizinhos de plateia, já cansados: "Wagner era um homem sem pressa..." Creio que o comentário se aplica muito bem ao nosso sistema eleitoral e parte do sistema político.

Um traço essencial do regime parlamentarista é que o Parlamento pode ser dissolvido. Como ele mesmo pode destituir o governo, a forma de garantir que aja responsavelmente é fazendo pairar, sobre sua cabeça, a possibilidade de ser dissolvido - pelo presidente da República ou, às vezes, pelo primeiro-ministro. Muito bem. Isso significa que, entre o dia em que sai o decreto de dissolução e as eleições, não transcorrem mais que 30 ou 60 dias.

Aqui no Brasil, talvez o único país do mundo que conta com um ramo inteiro do Judiciário especializado em eleições, dotado por sua vez de cartórios e funcionários que trabalham o tempo todo para promover pleitos que somente se realizam a cada dois anos, cada vez que se fala em promover uma consulta - como certos plebiscitos - responde-se que a Justiça Eleitoral demorará um ano ou dois para organizá-la. É incrível o abismo entre a rapidez dos países parlamentaristas e a lentidão do nosso órgão incumbido de reger as eleições. Nada justifica essa demora.

Eleição e posse são rápidas nos países avançados

Neles, as eleições se realizam sem maiores transtornos urbanos. Nos Estados Unidos, dão-se na "primeira terça-feira após a primeira quarta-feira de novembro" - num dia útil, em que todos trabalham. Mesmo assim, votam. Não há congestionamentos de trânsito perto das seções eleitorais. Não há carros parados em lugar proibido, ante a indiferença dos guardas de trânsito, que sabem que se multarem - como deveriam - farão o motorista irritado votar na oposição ao prefeito. Tudo é normal.

Há mais. Realiza-se a eleição parlamentar, e o partido no governo perde a maioria. O líder da oposição assumirá o governo. Na manhã da segunda-feira (eleições europeias são com frequência no domingo), um caminhão de mudança estaciona diante da residência oficial do agora ex-premier, e antes do meio-dia ele desocupa a casa. Isso, aliás, sempre me espantou - como consegue isso? Em segredo a mulher e os empregados já tinham encaixotado tudo? Ou, como é provável, depois voltam para retirar o principal?

Mas estas minhas dúvidas são detalhes. O fato é que, menos de 24 horas depois da eleição, já há um novo governante em função. E também um novo governo: 20 ou 30 ministérios (ou secretarias de Estado) mudam de mãos em questão de horas. No Brasil, é normal o governante eleito começar, só aí, a fechar a sua equipe. Demora meses negociando e escolhendo, ou escolhendo e negociando. Na França, Alemanha, Reino Unido, Espanha, tudo isso se faz em menos de um dia.

Estaremos acostumados a desperdiçar o tempo da política? É essa a questão. Verdade que também isso acontece nos Estados Unidos. Da eleição à posse, lá se passam dois meses e meio, em que também há um governo desautorizado e outro, aguardando para ligar as turbinas. Os norte-americanos até dispõem de uma expressão para designar o presidente e o Congresso em fim de mandato, depois de eleitos seus sucessores: "lame duck", literalmente, pato machucado, cujas asas estão feridas e já não lhe permitem voar. Eles aceitam 75 dias de inatividade. Nós toleramos 60, em caso de segundo turno, e 90, se a eleição for definida no primeiro.

Sempre foi assim, aqui. Antes de serem informatizadas as eleições, a apuração tardava dias. Na França dos anos 1970, acompanhei alguns pleitos. Fechavam-se as urnas ao escurecer, e os mesários apuravam os votos. Pelas 22 horas, já havia os resultados de cada seção eleitoral e, o mais tardar à meia-noite, sabia-se quem ganhara e quem perdera as eleições. Por isso, de manhã o primeiro-ministro deixava a casa que ocupara durante alguns anos. No Brasil, uma rapidez comparável somente se tornou possível com a informatização. Não precisávamos ter esperado tanto.

Porque, repito: será que acreditamos que o tempo da política não vale? Que pode ser jogado fora? Que não há urgências? Que podemos demorar à vontade para ter o resultado proclamado, o ministério constituído, o governo funcionando? Nada disso faz o menor sentido. Até porque, quando o governo toma posse, esperamos ainda que no seu primeiro ano de mandato esteja acertando os ponteiros. Isso vale inclusive quando a sucessão se dá no mesmo partido - veja-se como tratamos Dilma Rousseff: não faz nem um ano que assumiu, ainda tem de trocar ministros, fazer tudo andar direito... Esta condescendência com a lentidão na coisa pública não é, seguramente, um bom sinal.

Sei das dificuldades que há na política. Nos Estados Unidos e nas democracias com voto distrital, são poucos os partidos. No Brasil, o presidente eleito tem de negociar à exaustão com os vários partidos representados no Congresso. Mas, nos Estados e municípios, é bem mais fácil. E isso não explica a lentidão dos governadores e prefeitos, ou da Justiça Eleitoral - que, por exemplo, no quadriênio passado tardou dois anos para julgar as eleições do Maranhão e da Paraíba, ainda por cima, dando seus governos aos candidatos derrotados, em vez de convocar novo pleito. Acredito que, lá onde isso é viável, e em quase todas as esferas da política o é, faria bem nossa política ter um pouco mais de pressa.

Em tempo, até porque de tempo falamos: recomendo a temporada de óperas em Manaus. Wagner é ótimo, e há também os compositores mais velozes - Mozart, os italianos...

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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