segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O orgulho de nossos Estados

Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 30/1/2012

Há um traço curioso na sociedade brasileira: a maior parte das pessoas se orgulha de seus Estados. Num passado recente, passamos por um período de sérias crises econômicas e políticas, no qual se alternavam o orgulho e a vergonha de ser brasileiro. Ele findou graças em parte ao fim da inflação (governo FHC) e em parte ao avanço da inclusão social (governo Lula). Orgulhávamo-nos do país no futebol e nos envergonhávamos da inflação e muitas outras mazelas, a começar pela corrupção que, aliás, disputa com a miséria o título de maior vergonha nacional. Mas esse movimento ciclotímico, como era chamado, reduziu-se. Com a estabilidade monetária e os avanços sociais, ficamos mais estáveis em nossa nacionalidade, que hoje vivemos melhor do que na fase de inflação recrudescida, digamos, os quinze anos de 1979 a 1994. Tivemos um forte pessimismo em relação ao Brasil. Mas o curioso é que mesmo nos períodos máximos de instabilidade em escala nacional, no plano que os militares denominavam “psicossocial” (palavra que felizmente sumiu do vocabulário!) não foi ameaçado esse orgulho de que falei acima – um orgulho estadual. O Brasil podia gerar otimismo ou, em maior dose, pessimismo, a partir de suas realizações ou fracassos, mas os Estados passavam – e passam – incólumes por seu sucesso ou insucesso. Gostamos deles como são.
Isso é ainda mais curioso porque os Estados significam pouco, do ponto de vista do poder, num país cada vez menos federalista e mais unitário. Na verdade, a tradição que a colônia nos legou foi a da autonomia dos municípios, não das – então – capitanias. Pouco após a independência, foram criadas assembleias legislativas nas províncias, mas o poder executivo, nelas, era exercido por nomeação do governo sediado na Corte. Só com a República tivemos autonomia dos Estados – e, por razões difíceis de entender, talvez por importação de costumes norte-americanos, talvez para se contrapor ao centralismo imperial, ela foi exagerada. Basta ler o que Erico Veríssimo escreve sobre as guerras civis gaúchas da República Velha: enquanto tropas de um lado e outro se matam, as guarnições federais permanecem neutras. Hoje, é impossível imaginar que haja uma rebelião contra um governador e o Exército apenas assista, impassível, aos combates.
Desde 1930, vemos um gradual mas constante fortalecimento do poder federal às custas dos Estados. Nos períodos ditatoriais, com Getúlio Vargas ou sob o regime militar, obviamente foram afastados os governantes estaduais que divergissem do poder central. Mas mesmo nos períodos democráticos, como o que vivemos ininterruptamente desde 1985, as competências dos Estados diminuem. Enquanto o controle central se exercia, nas ditaduras, pela força, hoje ele passa pelo papel predominante da política econômica. Esta é competência da União, e determina quase tudo o que se pode fazer na Federação. Daí que a situação dos Estados se torne paradoxal. Por um lado, ser governador ou senador é importante. Aliás, uns e outros, escolhidos em eleições majoritárias, costumam trocar de posições. O Senado é uma casa de ex- ou futuros governadores – ou, pelo menos, eles assim se veem. Não é fortuito que o Senado seja tão mais importante que a Câmara. Lá, os Estados ou seus imaginários futuros ou passados governantes falam alto.
Mas, por outro lado, no poder legislativo brasileiro, haverá órgão menos importante do que as assembleias estaduais, justamente as únicas que portam “legislativo” no nome mas, estranhamente, têm menos assuntos para regular sob forma de lei? O Congresso legisla sobre praticamente todos os assuntos. As Câmaras Municipais decidem o plano diretor e podem regular qualquer tema que afete a vida cotidiana, o que é muita coisa. Aos deputados estaduais, pouco resta. Algumas assembleias fazem esforços enormes de imaginação para ocupar um espaço político. É digno de nota que a assembleia do Rio de Janeiro seja, das 28 que há no Brasil, a que maior presença tem; realiza eventos e até dispõe de uma sigla conhecida de todos os fluminenses, Alerj. Nos demais Estados, a sigla é só para iniciados; no Rio, todos sabem o que é. É curioso que a popularidade da Alerj – onde foram, em junho de 2011, se manifestar os bombeiros revoltados contra o governo local – subsista embora o governador, como mostrou o “Valor”, tenha reduzido a oposição a menos de 15% das cadeiras. A Câmara Distrital de Brasília é outra exceção, pois soma às competências estaduais as municipais e por isso conta com muitos assuntos para legislar. É só. Um vereador de capital perde em importância ao se tornar deputado estadual, a não ser que mostre, como os verdes Carlos Minc e Aspásia Camargo (não por acaso, ambos verdes, ambos do Rio), muita criatividade.
Então, por que o orgulho? Um Estado como o Rio Grande do Sul, que há anos enfrenta uma crise econômica e fiscal, é um dos mais altivos quanto a seu modo de ser. E eu, que já estive em praticamente todas as Unidades da Federação, senti em todas elas o orgulho de sua comida, de seu falar, de sua alegria – ou de sua seriedade. Evidentemente, há quem não compartilhe esse orgulho, mas falo de um sentimento majoritário. O curioso é que esse nativismo tardio mal tenha tradução política. É um fenômeno social forte, mas que não resulta em união pelo Estado, em posição única ante os problemas que enfrente, em nada disso – salvo em casos extremos, como o dos royalties que alguns Estados recebem pelo petróleo no mar. Por que será? Será justamente porque, do Estado, não esperamos política econômica e então podemos ser, gostosamente, bairristas?

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A falta que o PT nos faz

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 23/1/2012

O PT está fazendo muita falta ao Brasil: na oposição... Dizendo isso, não estou criticando - aliás, nem elogiando - seu governo; só constato que desde 2003, quando ele ganhou as eleições para a Presidência da República, não tivemos mais oposição digna desse nome. Mas, na verdade, pode ser que em quase dois séculos de história independente tenhamos tido apenas dois ou três partidos que realizassem uma significativa oposição democrática. Dois: o MDB (depois, PMDB), no período de 1965 a 1985, e o PT, de sua fundação até 2002. Talvez três, se incluirmos o pequeno Partido Democrático, no final da República Velha e com atuação restrita a São Paulo.

Tivemos outras oposições, mas não foram significativas e, quando o foram, não foram democráticas. Em nosso primeiro século de vida independente, as eleições foram manipuladas (no Império) ou fraudadas (na República Velha). Na Primeira República, dominada pelas oligarquias, só dava para enfrentá-las de armas na mão - daí, a interminável guerra civil do Rio Grande do Sul, a mais breve no Ceará e a rebelião de Princesa, em 1930, na Paraíba. Nosso primeiro período democrático, de 1945 a 1964, teve um partido significativo de oposição, a UDN, mas desde o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, ela tendeu ao golpismo, largando suas iniciais intenções democráticas. Só em 1965 surge nosso primeiro grande partido democrático, o Movimento Democrático Brasileiro, que reunirá as oposições à ditadura, mas tardará 20 anos a pôr-lhe fim.

A oposição tem de suar, para conquistar o povo

O MDB (desde 1980, PMDB) marca uma mudança na história do Brasil. Enfrentou a ditadura, mas com métodos e ideais da democracia. Adotou uma política de alianças, reunindo de tudo, inclusive gente pouco digna, mas sob a liderança de nomes notáveis, como Ulysses Guimarães. Praticou, assim, o diálogo. Sua moderação, embora incomodasse a vários, assegurou aos radicais um guarda-chuva protetor. Teve sucesso, pois seu trabalho de formiga concorreu seriamente para o fim da ditadura; e não o teve, já que após 1985 se converteu, rápido demais, em partido fisiológico. Mas sua história merece respeito.

Nosso segundo partido democrático também demorou duas décadas para chegar à Presidência. O PT conseguiu uma façanha admirável: uniu os descontentes de esquerda, somando ideais até divergentes num propósito comum, e o fez com muito trabalho (este é meu ponto, aqui: não se faz oposição sem suar). Esses dois partidos verteram muitíssimo suor, um tanto de sangue e provavelmente muitas lágrimas. No caso do PT basta pensar, primeiro, nos mortos do partido ou próximos a ele, em lutas de sem-terra e outros perseguidos. Eldorado do Carajás marcou um corte nítido entre os petistas e os tucanos, pois era do PSDB o governador do Pará, quando sua polícia massacrou os sem-terra, em 1996. Pensemos, segundo, nas ações petistas que exigiram disciplina e trabalho, como a Caravana da Cidadania. Tudo isso rendeu frutos, desde 2002.

O que falta à oposição atual, para se tornar significativa e ao mesmo tempo agir nos quadros da democracia? Antes de mais nada, a disposição a dar o sangue (em sentido figurado) ou, em sentido literal, a suar de tanto trabalho. Infelizmente, isso mal se vê. Uma dirigente da Associação Nacional de Jornais disse há dois anos que, na falta de uma oposição consequente, a grande imprensa assumiu o papel de opositora. A frase é infeliz, porque o compromisso da imprensa não é fazer oposição, mas dizer a verdade - ideal nada fácil, mas que não se pode abandonar - porém expressa uma triste realidade: o PSDB terceirizou o papel de se opor. Ele o delegou a alguns jornais e revistas que, por preguiça, preferiram o caminho fácil dos escândalos ao mais difícil de um monitoramento sério das ações de governo (e da oposição).

Será também uma certa preguiça a principal razão para a inércia da assim chamada oposição? Suas duas vertentes, o PSDB e em menor medida os verdes, parecem acreditar que basta ter razão para atingir o poder. Mas na política o fundamental não é ter razão, é convencer. Apostar tudo na ideia de que temos razão nos faz acreditar que quem pensa de outro jeito é patife ou, na melhor das hipóteses, ignorante - o que é um desrespeito ao soberano na democracia, o povo. Vejam, nas redes sociais, o desdém de alguns simpatizantes da oposição pela maioria de pobres. Mas não dá para fazer oposição preguiçosa. Pensemos na história dos tucanos. O PSDB, desde que nasceu, em 1988, esteve perto do poder. Alguns de seus grandes nomes foram ministros de Collor, e o próprio partido por pouco não o apoiou. Em 1994, a escolha pessoal de Itamar Franco, quase no estilo do PRI mexicano, levou Fernando Henrique à Presidência - mas qualquer nome, no bojo do Plano Real, ganharia as eleições daquele ano.

FHC é alguém especial. Ele soube converter a fortuna em virtù, para usar os termos de Maquiavel, isto é: converteu a sorte em capacidade própria. Mas perdura o fato de que o PSDB não parece disposto a suar na oposição. Isso é pena. Se ele não fizer suas caravanas da cidadania, se seus militantes não se esfalfarem, se seus líderes continuarem esperando que o poder lhes caia nas mãos, nunca serão oposição de verdade. Ora, numa democracia, para um partido se tornar governo, é preciso primeiro fazer oposição. Não sendo assim, só com sorte. É como se o partido esperasse que a imprensa de oposição faça por ele, nas próximas eleições, o que Itamar fez em seu tempo: dar-lhe o poder de presente. Mas, para nossa maturidade democrática, precisamos de uma oposição que trabalhe, lute, em suma, repetindo-me mais uma vez: que dê seu suor pela política.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Crédito: governo ou consumo?

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 16/1/2012
As análises mostram que a popularidade presidencial depende pouco ou nada das denúncias de corrupção. Isso se vê desde, pelo menos, o governo FHC. As denúncias da "Folha" sobre a privatização das teles na sua gestão, ou as do mensalão no governo Lula não afetaram seriamente a popularidade de nenhum dos dois presidentes. Estudos recentes indicam que ela está ligada, sobretudo, ao crédito disponível para compra. É o que demonstra recente post no blog de José R. Toledo, no site de "O Estado de S. Paulo".

Podemos aprofundar este ponto - lembrando que o crédito ao consumidor e a confiança no (ou na) presidente são a mesma palavra... Crédito, confiança, fé, o latim "fides" e o inglês "trust" querem dizer uma única coisa: acreditar em outro. A crença tem algo de peculiar: ela não é provada, mais que isso, não é passível de prova. Há coisas que sei, porque as presenciei ou porque a ciência me diz que são verdadeiras. Mas há coisas em que acredito: na fidelidade de meu cônjuge, na lealdade de meus amigos, na honestidade do governante, na existência de Deus (ou no contrário de cada uma dessas "coisas"). Nada disso, ou pouco, pode ser provado, em alguns casos porque afeta o futuro, e este não nos pertence.

Ter linha branca é direito humano; o consumismo, não

Vemos, na análise de Toledo, que a popularidade de Lula e, hoje, de Dilma Rousseff está ligada à irrigação de crédito na praça. Isso quer dizer que muitas pessoas, da classe média bastante baixa à quase alta, podem desfrutar de bens de consumo duráveis, como a linha branca e os automóveis, ou de serviços apetitosos, como viagens, pagando a prazo. Essa antecipação do gozo no tempo torna os governantes mais populares, até porque resulta de várias decisões políticas deles - desde as que mexem no sistema financeiro até as que tratam da distribuição de renda, do incentivo ao turismo ou à importação de bens baratos.

Assim, quando o eleitor premia com o voto o governante que aumenta seu poder de consumo, ele mostra sua confiança (sua fé) em alguém que ampliou o crédito (ou fé) do qual ele se beneficia. Uma fé retribui outra fé. Quem pode antecipar o desfrute de um bem, pagando-o a prazo, também concede um prazo adicional ao governo para que continue pela mesma via. O crédito ao consumidor se converte assim em confiança no governo.

Há um aspecto positivo - e um negativo - nessa troca de crenças. O lado bom é que os cidadãos, enquanto consumidores, estão decidindo seu voto a partir de vantagens ou desvantagens que eles realmente percebem. Parece ter passado o tempo em que a manipulação ideológica presidia a decisão do voto, sobretudo arrastando os eleitores menos instruídos (os mais numerosos) a votar contra seus próprios interesses. Um dos ganhos do governo Lula é que, quando o eleitor vota levando em conta o Bolsa Família (e um leque de outros programas, não assistenciais, como o Luz para Todos) e não a distribuição de cestas básicas, ele reduz sua dependência do "coronel" local. Leva mais em conta o seu interesse próprio. Aliás, a economia e a política capitalista nascem, justamente, exortando as pessoas a considerar mais seus interesses reais do que suas ilusões.

Mas há um aspecto negativo nesse fenômeno. Uma forte tendência de nosso tempo é reduzir a cidadania ao consumo. Deste assunto trataram vários cientistas sociais, entre eles, Albert Hirschman. Há uma perda, quando questões de interesse público são reduzidas a ganhos e perdas pessoais imediatos ou quase; quando discussões que interessam o futuro de todos, a começar pela família de cada um, são reduzidas ao prazer das pessoas no presente; quando a construção de projetos, que sempre depende de uma poupança, de um adiamento no desfrute, para que seja possível realizar algo grandioso, é subordinada não apenas ao ganho imediato, mas ao consumo, supressão, destruição.

Isso é visível quando pensamos no globo e em seu futuro. Como diz Sylvia Earle em seu "The world is blue - How our fate and the ocean's are one", o verde depende do azul: a natureza e a própria vida dependem da vida da água, em especial a do oceano - que, nas últimas poucas décadas, sofreu uma destruição maior do que nos milhões de anos anteriores.

Em francês, o verbo "user" significa, não "usar", mas desgastar: o consumo desgasta. Assim, se traz popularidade ao governante, também hipoteca o futuro. Lembrei que crédito e confiança são palavras próximas, e que aumentar o consumo é a chave - na verdade desde o "iogurtinho" que, notava FHC, os pobres começavam a consumir - para ampliar a confiança no governo. Confiar e crer são palavras que remetem ao futuro. Mas o futuro do consumo é de pouco prazo, é imediato. O que é consistente depende de um futuro mais longo - o da construção, que por sua vez exige adiamento do gozo, poupança, educação. O problema, quando a popularidade do governante depende do crédito ao consumo, é que o longo prazo é sacrificado ao curto, a educação ao entretenimento.

Mas, para concluir, pensemos em dois pontos contraditórios: primeiro, isso acontece no mundo todo. Não é um irônico privilégio dos subdesenvolvidos e atrasados. Segundo, e paradoxalmente, podemos ter a esperança de que este seja um momento de passagem. Quem nunca comeu melado quando come se lambuza. Mas depois para de se lambuzar.

Faltava, a milhões, a linha branca. Ela praticamente se tornou um direito humano. Ter a primeira geladeira não quer dizer que a pessoa se viciará no consumo. O importante é que sejamos capazes, vencida essa etapa pela qual se dá uma promoção social pelo acesso a bens importantes de consumo, de evitar o consumismo e apostar num futuro sustentável.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Só democracias são legítimas?

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 9/12/2012
Desde que as potências do Eixo - Alemanha, Itália e Japão - começaram a perder a guerra, por volta de 1943, foi ficando claro que não dava mais para falar mal da democracia. Porque até então era plausível condená-la; quem viu o belíssimo filme "Vestígios do Dia" pode verificar como, nos anos 1930, muitos zombavam dela. Assim, um regime que nasceu na Grécia há 25 séculos, e renasceu na Europa e América do Norte há cerca de 3, somente se libertou do desprezo há menos de 70 anos.

Mas, desde então, é quase impossível falar mal da democracia. Até as ditaduras se dizem democráticas. Para o general Ernesto Geisel, o regime militar brasileiro era uma "democracia relativa". Os Estados comunistas se definiam como "democracias populares". A democracia se tornou valor universal. É certo que muitos que se dizem democratas não o são, mas lembrem o ditado segundo o qual "a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude". Quem é democrata da boca para fora reconhece que esse regime, que não é o seu, é o melhor que existe. Por isso, várias ditaduras desabaram quando os dissidentes exigiram que cumprissem o que existia nas palavras, ainda que não de fato. O que, enfim, mostra que as palavras são poderosas. Podem vencer os fuzis. Basta lembrar a rápida queda dos regimes comunistas europeus, em 1989.

Ninguém se obriga a cumprir o que não prometeu

Dessa universalização da democracia, no discurso e nas ações, podemos sugerir uma consequência: somente os regimes democráticos seriam legítimos. Qualquer poder imposto ao povo, sem que ele desfrute das liberdades de expressão, de organização e de voto, será ilegítimo. Isso parece óbvio? A mim, parece. Mas daí derivam algumas conclusões bem menos óbvias.

Se governos que não passaram por eleições livres carecem de legitimidade, então parte razoável dos países do mundo hoje é governada de forma ilegítima. O que significa que ordens dadas por esses governantes não valem. São obedecidas apenas enquanto eles dispõem da força bruta. Empréstimos e negócios firmados por eles também não são válidos. Tais atos comprometem cidadãos que não puderam examiná-los, discuti-los, concordar com eles. Esse princípio é claro na vida privada. Se eu assinar um contrato sem ter conhecimento dele, não vale. Na França, a lei exige que, antes de assinar um contrato, a pessoa escreva com a própria mão "Li e aprovei". A exigência da grafia manuscrita certifica que o indivíduo saiba de que se trata.

Ora, se para indivíduos livres numa sociedade livre vale o princípio de que só estão obrigados pelas ações que livremente consentiram, por que essa regra não valeria para os países? Mas aqui, embora isso me pareça óbvio, entramos em terreno minado. Acho ótimo que metade da população mundial hoje esteja em regimes com liberdade de expressão, organização e voto. Nunca foram tantas as pessoas que vivem em democracias. Contudo, isso significa que a outra metade está em sociedades despóticas, autoritárias ou totalitárias. Portanto, metade do mundo não estaria obrigada pelas decisões de seus governos. Ora, esse princípio introduziria uma insegurança bastante grande nos negócios e tratativas com esses poderes. Assim, se Mianmar, Cuba ou Belarus não forem democráticos, seus cidadãos não estarão obrigados a responder pelos atos de seus governantes - e então quem há de negociar com estes? Se o governo do Afeganistão foi escolhido em eleições fraudadas, como disseram os observadores internacionais, que segurança teremos, se tratarmos com ele?

O que estou apontando não é absurdo. No tempo da ditadura no Brasil, diziam alguns que nossos governantes pagavam no mercado internacional juros mais altos do que as democracias desenvolvidas, justamente porque a segurança de que o país pagasse as obrigações assumidas era menor do que se fosse uma democracia. Portanto, no custo do dinheiro, estaria embutido um "risco ditadura". Caso o Brasil, uma vez democratizado, deixasse de pagar algum empréstimo recebido, isso já estaria previsto nas contas dos bancos. Aliás, um dispositivo da Constituição de 1988 mandava auditar a dívida externa, justamente para que o povo, novamente soberano, não respondesse por eventuais atos de corrupção praticados pela ditadura. Essa auditoria jamais ocorreu, mas teria a legitimidade que aponto.

Agora, se um país não tiver governo legítimo, quer isso dizer que outros podem intervir nele? As intervenções ditas humanitárias se baseiam nisso - mas não só. Geralmente exigem uma condição adicional, que é o governo, além de ilegítimo, estar fazendo guerra a seu povo. Foi o que se invocou no Kosovo e na Líbia. Mas o campo continua minado. Quem decide qual governante pode intervir onde? Podia Bush invadir o Iraque para promover um "regime change", que na ausência das inexistentes armas de destruição maciça acabou-se tornando a justificação da guerra de 2003? Não, mas por quê? Essa é uma questão aberta. Usualmente vinculamos o direito de intervir a uma autorização supranacional, de preferência a da ONU, mas eticamente isso não é óbvio. As Nações Unidas contam com muitas ditaduras que votam em sua assembleia geral. Por isso, aqui entramos numa espécie de limbo. O que eu diria, antes de concluir, é: estamos caminhando para uma concepção do mundo em que as ditaduras serão ilegítimas. O que faremos, a partir dessa convicção, ainda não está claro. Mas esta será uma das discussões politicas mais importantes dos próximos anos. Termino com uma pergunta: Bush filho, ao tomar posse em 2001 em decorrência de eleições duvidosas, era legítimo para governar os Estados Unidos? Boa semana para todos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A presidência no feminino

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 2/1/2012

Estamos completando um ano com uma mulher na Presidência da República, a primeira em nossa história. A data pede reflexão. Três importantes países da América Latina elegeram nos últimos anos mulheres para governá-los: na ordem cronológica, Michelle Bachelet, no Chile, Cristina Kirschner, na Argentina, e Dilma Rousseff. Todas tiveram ótima avaliação. Bachelet, que não fez seu sucessor, saiu do governo altamente popular. Cristina foi reeleita com ampla votação. As pesquisas de opinião são bem favoráveis a Dilma. Mas mal temos mulheres nos demais escalões do poder. São poucas as governadoras, prefeitas, deputadas, senadoras e vereadoras. Sentimos dificuldade até com a palavra para designar quem está na chefia de Estado. Embora Dilma Rousseff se diga "presidenta", quase toda a imprensa a chama de "presidente". O dicionário valida ambas as formas, mas já li no Facebook, depois que usei o "presidenta", que isso provaria meu suposto petismo... Uma dedução, obviamente, mal feita.

Porém, tudo isso é sintoma de uma grande dificuldade, não apenas dos brasileiros mas dos homens em geral - e aqui uso "homem" no sentido de varão e no de membro do gênero humano -, para assimilar a novidade que é ter mulheres no poder. Só no século XX elas adquiriram o direito de voto. No Brasil, votaram pela primeira vez em 1933. Antes disso, algumas mulheres exerceram o poder como rainhas, por direito próprio - isto é, não como meras esposas de homens que fossem reis. Mesmo isso não foi fácil. Ironicamente, a maior estadista inglesa, Elizabeth I, que reinou de 1558 a 1603, só nasceu devido à ansiedade do pai, Henrique VIII, por ter um filho varão. Como o primeiro casamento do rei lhe deu apenas uma filha, ele receava que uma sucessão feminina fosse contestada. Daí, a famosa série de divórcios de Henrique e sua ruptura com a Igreja Católica - para, afinal, ter como definitiva sucessora logo uma mulher... Mas, embora Elizabeth tivesse enorme poder em suas mãos, seus auxiliares a pressionavam para se casar. Ela deveria ceder o poder a um homem. No fim das contas, ela só governou porque decidiu conservar-se solteira. Contudo, a estabilidade de seu longo governo teve um preço: com ela, terminou sua dinastia. O trono inglês passou aos reis da Escócia.


A despeito de tudo, avançamos muito. Lembro que, em 1989, a antropóloga Mariza Corrêa foi a primeira diretora de uma faculdade na Unicamp. Já a USP demorou mais - o que é espantoso, levando-se em conta que tem unidades, como a enfermagem e a educação, predominantemente femininas - mas já teve uma reitora. A primeira senadora do Brasil foi Eunice Michilles, em 1979; ela era, porém, apenas uma suplente, que assumiu o cargo com a morte do titular. Só em 1990 tivemos mulheres eleitas para o Senado. Hoje, isso já não é exceção, mas está longe de ser a regra. Uns anos atrás, ouvi uma vereadora paranaense contar que - toda vez que falava na Câmara - os colegas homens riam dela. Isso tornou sua vida insuportável até que, participando em Curitiba de um encontro de mulheres detentoras de mandatos, percebeu que podia ter o apoio, mesmo a distância, de outras mulheres, e enfrentou a situação.

Ainda é difícil, porém, aceitar uma mulher chefiando o governo. Não falo do mundo islâmico; curiosamente, países muçulmanos - embora não árabes - já tiveram mulheres no poder, como Benazir Bhutto, no Paquistão (mas será que o fato de ser mulher contribuiu para ela ser assassinada?). Penso em nosso próprio país. Porque o preconceito é tenaz. Mesmo quando não é agressivo contra as mulheres, um resíduo importante dele aparece na quase-impossibilidade de conciliar o que se espera da mulher e o que se espera do governante.

De quem governa, esperamos que mande. Da mulher, esperamos que seja doce. É possível mandar docemente? Milhares de anos nos acostumaram a uma experiência em que o ato de mandar é duro, agressivo, viril. Também nos acostumaram à ideia de que a mulher é boa, compreensiva, receptiva. Daí que, quando uma mulher manda, entremos em curto-circuito. Talvez tenha sido isso o que levou à queda de Nelson Jobim, político hábil e capaz: quem sabe não aceitasse que uma mulher mandasse nele, que por sua vez dava ordens à cúpula das Forças Armadas. A sucessão de declarações aparentemente desastradas de Jobim, praticamente forçando Dilma a exonerá-lo, permite considerar essa explicação tão boa quanto qualquer outra.

A situação tampouco é fácil para as mulheres. Hillary Clinton, quando o marido concorreu à Presidência dos Estados Unidos, teve que reduzir seu perfil de profissional competente e se apresentar como dona de casa que fazia "cookies". Depois voltou a seu perfil mais verdadeiro, mas parece que nunca presidirá seu país.

Creio, porém, que é justamente esse problema que traz, no seu bojo, a solução. As mulheres assumirem o poder não significa elas se tornarem másculas - imagem que se insinua, às vezes, sobre a própria Dilma. Significa um novo estilo de poder. Não é fortuito que estes anos se fale tanto em "soft power". Aproveitando a palavra, mas dando-lhe novo sentido, o poder precisa se feminizar. Ele não pode, numa democracia, estar na dureza, na repressão, na ordem. Aliás, depois do hiper-masculino Collor, nossos três últimos presidentes foram mais de persuadir que de ordenar. Sua retórica era mais importante que suas ordens. Essa é uma das tarefas que teremos de cumprir, nós e o mundo, nos próximos anos ou décadas: compreender, definir, construir um poder com mais traços femininos. Isso pode demorar bem mais que o mandato de Dilma Rousseff, mas vai acontecer.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras