terça-feira, 30 de agosto de 2011

O que deveria ser discutido

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 22-8-2011

Uma amiga me disse, ao ver na TV o arrastão promovido por sete meninas entre dez e 14 anos de idade, e sua sequência - mães e pais ausentes, Estado omisso, gente sem futuro: "Isso devia estar sendo discutido, e não a Copa do Mundo, os aeroportos, sei lá o quê". Em atenção a ela, hoje vestirei mais a condição de professor de ética que a de filosofia política, ou melhor, enfatizarei o caráter ético na discussão sobre o poder.

Muitos sabem de que se trata. As meninas fizeram um arrastão na Vila Mariana, em São Paulo. Foram detidas. As mães de quatro delas foram buscá-las na polícia. O delegado prendeu-as por "abandono de incapaz" - porque não cumpriram o papel de mãe, cuidando das filhas. Uma repórter, chocada, contou que foi à casa de uma delas, no Jardim Maravilha, a léguas de onde as garotas roubavam. Uma mãe tinha sete filhos, o esgoto corria pelas "ruas", crianças brincavam na água poluída. A Defensoria Pública pediu que as mães fossem soltas. A Globo News mostrou a gravação, feita no banheiro, de uma mãe repreendendo a filha: "Volta no mesmo local do crime, mas é besta mesmo, né!" Um pai apareceu na delegacia, indignado porque a mulher ainda estava presa. É isso.

Antes de tudo: por que essas questões não são discutidas, nem resolvidas? Por que, enquanto isso, o Estado de São Paulo anuncia a construção de um túnel entre Santos e Guarujá, no qual gastaremos 1 bilhão e 300 milhões de reais? E por que debatemos estádios, em vez de crianças que viverão mal, morrerão cedo e talvez matem?

É sórdido uma mãe ensinar a filha a roubar

A primeira questão: algumas mães têm muitos filhos e mal cuidam, quando cuidam, deles. Tanto que foram encontrados bem longe de sua moradia. É imoral e criminoso os pais largarem suas crianças. Não concordo com quem, simplesmente, tem pena de pessoas que põem crianças no mundo, sem mostrar responsabilidade por seu futuro. Mas como lidar com isso, ainda mais numa democracia, que não pode impedir ninguém de ter os filhos que quiser? Até porque, se os pais forem presos por descaso, aí as crianças ficarão mesmo sem ninguém.

É terrível o que a gravação da TV revela. É sórdido uma mãe ensinar a filha, de quem já não cuida, a roubar. Só isso mereceria severa punição legal, pois é incitar menor ao crime. Mas volta o problema: como resolver a questão de tantas crianças que, nas inúmeras horas sem escola, são largadas na rua?

Aqui, divisões políticas imperam - mas não para resolver, e sim atrasar a solução do problema. A esquerda já combateu a ideia de controlar a natalidade dos pobres: limitar o número de filhos seria uma proposta "de direita", para não enfrentar o "verdadeiro" problema, que seria a distribuição de renda. Bobagem: uma ação não exclui a outra. A gravidez indesejada, sobretudo de adolescentes, precisa acabar. O ideal é só ter filhos quem deseje tê-los e possa mantê-los. Uma boa educação sexual pode trazer o primeiro resultado, além de reduzir os abortos. Paternidade e maternidade devem ser responsáveis. Mas este simples parágrafo já deve causar muita divergência, entre quem concorda com uma parte e não outra, ou com nenhuma. Não temos saída, porém, se não unirmos esforços nesta prioridade humana e nacional.

E a escola? Dá para admitir que crianças não tenham o que fazer a não ser vagar pela rua, com pais que as mandam se virar para terem o que comer? Leonel Brizola, trinta anos atrás, deu a solução: centros integrados em que crianças e adolescentes passariam o dia todo, estudando, fazendo esporte, comendo e até tomando banho. Mas os Cieps foram abandonados. Com o nome de CEU, ressurgiram na gestão de Marta Suplicy em São Paulo e também não tiveram sequência. São caros, mas são a saída mais barata. Dizia o Bradesco, nos envelopes em que mandava extratos de conta, décadas atrás: "Educai as crianças para não punirdes os adultos". O que queremos, escolas ou cadeias?

Temos aqui uma série de culpados ou, se quiserem, de (ir)responsáveis. Há pais e mães que não cuidam dos próprios filhos; há o Estado, que não provê educação nem saneamento básico; há nós mesmos, que discutimos se é melhor o túnel ou a ponte para o Guarujá, ou - mea culpa que vale por hoje - se é melhor um governante do que outro, um sistema ou outro.

Mas não seria esta a oportunidade de, como a sociedade tanto quer, aproximar a política do "mundo real"? Aqui, há que somar em vez de dividir. Haverá posições diferentes sobre tudo o que mencionei, mas é possível, respeitando a divergência, unir o máximo de empenhos. Tudo depende disso. Se essas e muitas outras crianças não forem salvas, boa parte irá para o crime - com prejuízo enorme para as vidas e paz geral. Isso para não falar nos talentos que tantas têm e serão desperdiçados, porque jamais terão chance de desenvolvê-los.

Uns dez anos atrás, ouvi do Padre Julio Lancelotti que o custo para cuidar de um adolescente em liberdade assistida - isto é, que delinquiu - de modo a recuperá-lo, seria de algo como seis salários mínimos por mês, se não me engano por dois anos, incluindo os profissionais que cuidariam deles e são necessários. É caro. Mas era cerca de metade do que custava cada internado na Febem, para resultados pífios.

Hoje disse que trataria de ética, mais que de política. Mas há outro modo de salvar a política? No Brasil, como no mundo desenvolvido, é enorme o descontentamento com a falta de ética na política. Há algo mais elementar na ética que cuidar da prole? Aqui, estão em jogo prioridades do Estado e de cada pessoa. Há erros do governo, erros dos pais, erros nossos. Não seria esse um bom lugar para começar a construir laços, a melhorar como vivemos juntos?

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

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