Reforma política é um assunto de que se fala com frequência, mas nunca se sabe bem de que se trata. Na verdade, porém, temos no Brasil apenas duas ou três reformas políticas, se tanto, que realmente estão no horizonte. Uma é a dos partidos e analistas políticos: como eleger os deputados federais, pergunta-se. Mudar sua forma de escolha acarretaria, espera-se, melhor representação e, sobretudo, menos corrupção. Daí que esse tema esteja ligado à questão do financiamento eleitoral. O PSDB defende o voto distrital, o PT a manutenção do voto proporcional, só que em lista fechada. A reforma política que provém dos partidos resume-se nisso. Voltaremos a ela, numa próxima coluna.
Porque há outra "reforma política", nunca formalizada, de poucas chances, mas que vem de baixo para cima - ou, pelo menos, aparece em cartas de leitores e em conversas de bar. Não é assumida pelos partidos. Aliás, não é apenas uma, são duas reformas políticas. A primeira já está valendo. É a fidelidade partidária. Não por acaso, o Congresso nunca a regulamentou, apesar de constar da Constituição. Foi regulada pelo STF. Falta, claro, aplicá-la; por ora, não passa de palavras.
A outra é o voto facultativo.
Votar deve ser obrigação ética, não punitiva
Não quer dizer que as mesmas pessoas defendam a fidelidade partidária e o voto facultativo. Creio que, em nome da ética, a grande maioria dos eleitores é a favor de que o eleito não saia do partido pelo qual foi escolhido. Por sinal, essa é a única reforma política que é ética de ponta a ponta. Com raras exceções, não há como defender que uma pessoa se eleja pela oposição e passe para o governo.
Já no caso do voto facultativo, não sei qual a sua popularidade. É o preferido dos leitores que escrevem aos jornais, o que é um indicador interessante. Mas muitos desses eleitores, provavelmente de classe média, parecem mais empenhados, não em ter o direito de não votar, mas em que os pobres não votem. Já li cartas afirmando que, se o voto fosse facultativo, quem "não tem consciência política" não votaria. Obviamente, quem "não tem consciência política" é simplesmente quem discorda de nós... Esse é um discurso velho, conservador, que lembra o século XIX, quando se temia que uma maioria de pobres mexesse nas leis tributárias, no orçamento, em suma, na desigualdade.
Uns meses atrás, discutindo com 200 alunos do cursinho vestibular Pré-Federal, em Belo Horizonte, vi que a maioria deles era pelo voto obrigatório - não uma enorme maioria, mas uma maioria clara. É um dado interessante.
Mesmo assim, creio que poderíamos tentar uma experiência com o voto facultativo. Nosso país não é o único a ter o voto obrigatório. Austrália, Bélgica, Costa Rica, Itália também o têm. Mas, em sua maior parte, eles não punem os que deixam de votar. Já o Brasil os castiga com um penduricalho de restrições mesquinhas, como por exemplo a dificuldade para tirar passaporte. Penso que, de duas uma: ou o voto é tão importante, para que todos construam a coisa pública, a "res publica", que deveríamos punir seriamente quem não vota - por exemplo, impondo uma semana de trabalho numa ONG - ou então o melhor é largar os penduricalhos e investir no caráter fortemente ético da obrigação cívica. Não há democracia sem cidadãos. Portanto, devemos ensinar a todos, desde cedo, que defender a república é uma obrigação - ética - de todos.
Poderíamos fazer um teste. Manteríamos o voto obrigatório na Constituição. Ela não prevê punições, que estão em leis, as quais foram somando as pequenas restrições a que aludi (e uma multa irrisória). Mas suspenderíamos as leis punitivas por um ciclo eleitoral, isto é, por um ano de eleições municipais e outro de eleições gerais. E veríamos no que dá.
Será que realmente despenca a participação eleitoral, com o voto facultativo? Não sei. É consenso que votamos com mais ânimo para o Executivo do que para o Legislativo - mas, como se trata da mesma eleição, a abstenção sempre será a mesma. Mas o importante é pôr os partidos para trabalhar. Como disse em coluna anterior, hoje eles têm a reserva de mercado de nosso voto. Temos que votar; portanto, em quem votamos? Já se os partidos tiverem de se empenhar para mostrar aos eleitores que o voto é importante e traz resultados, a mudança terá valido a pena.
É claro que teria de haver punições severas, para quem tentasse impedir alguém de votar - inclusive de forma indireta, por exemplo, induzindo ou instigando o eleitor a trabalhar o dia inteiro das eleições. Mas, se conseguirmos manter um índice elevado de participação eleitoral, o resultado será precioso: enfatizaremos o caráter ético e não punitivo da obrigação eleitoral, promoveremos uma grande pedagogia cívica e, finalmente, teremos certeza de que as pessoas votam por convicção. Acredito, aliás, que será baixo o número de abstenções. Justamente devido à obrigatoriedade, temos longa tradição de voto. Creio que a obrigação legal de votar completou seu papel, e pode, hoje, se tornar um dever puramente ético.
Insisto: seria bom tratar-se de uma experiência. A lei suspenderia as punições por duas eleições sucessivas. Depois, as sanções voltariam a vigorar - salvo o caso de nova lei, que as suprima em definitivo. Assim, os defensores do voto obrigatório nada teriam a temer. O ônus de aprovar o fim definitivo das punições será de quem quiser extingui-las. Se não houver uma lei nova após quatro anos, retorna-se ao statu quo da obrigatoriedade. E poderemos testar todos os riscos dessa mudança - que, com certeza, será mais comentada nas cartas de leitores do que tem sido o debate entre o voto distrital e a lista fechada.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
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