segunda-feira, 27 de junho de 2011

Lula não deveria concorrer em 2014


Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico 27/06/2011

Nestes momentos difíceis em que a presidente Dilma Rousseff mais ou menos joga o seu futuro, não faltam vozes para lembrar que o PT dispõe, para as eleições de 2014, se tudo o mais der errado, de uma bomba atômica: a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, como há poucos dias lembravam Raymundo Costa e Rosângela Bittar, em suas colunas. E sem dúvida esse é seu direito, como o de todo brasileiro maior de 35 anos que tenha o nome lançado em convenção partidária. Lula foi, nos últimos meses de seu governo, o presidente mais popular do Brasil, desde que esse quesito começou a ser avaliado, há coisa de meio século. Fernando Henrique Cardoso, seu antecessor, completou a obra a que se propôs: estabilizou a moeda, privatizou bom número de empresas estatais e assegurou uma transição calma ao primeiro presidente brasileiro de centro-esquerda. Mas obra completada quer dizer obra terminada - tanto assim que em 2006 o candidato de seu partido, Geraldo Alckmin, se comprometeu a não privatizar mais nenhuma joia da coroa estatal, como os Correios, a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa.

O PT mostraria que não consegue criar novos líderes

Lula, por sua vez, teve êxito em mudar a agenda política do país. Lembro que em 2002, após sua eleição, foi entrevistado no "Jornal Nacional". O casal de apresentadores interrogou-o demoradamente sobre como lidaria com a moeda e as finanças. Ao terminarem, Lula lhes perguntou: e a fome, a miséria, a pobreza? disso não se vai falar? Pois é. Esses temas entraram na pauta da política brasileira de maneira decisiva. Mesmo os críticos mais acerbos da Bolsa Família tiveram de ver o candidato que apoiavam, José Serra, prometendo na reta final da eleição de 2010 que aumentaria a bolsa e acrescentaria a ela uma 13ª mensalidade: as políticas acusadas de populistas vieram para ficar. Não há como um candidato se opor a elas, pelo menos no discurso. Soubemos recentemente que a pirâmide social tinha cedido a vez a um losango. Ou seja: tínhamos uma pirâmide, em que as classes A e B somavam, juntas, menos pessoas que a classe C, e esta tinha menos brasileiros que os pobres e miseráveis, pertencentes às classes D e E, que formavam a base da pirâmide. Já no losango, que representaria a nova estratificação social no Brasil, a classe C sozinha tem mais membros do que as duas classes mais ricas - e também que as duas classes mais pobres. Pelo menos 50 milhões teriam passado da pobreza para a classe média baixa. É certo que há críticas a essa representação, até porque leva em conta sobretudo o dinheiro ao dispor das pessoas e seu consumo, mais que a educação; mas um passo enorme foi dado.

O problema é que essa obra - que converge com a proposta da presidente Dilma, no sentido de constituir um "país de classe média" - demora a ser efetivada. Lula não a concluiu, nem poderia tê-lo feito. Daí que seu retorno ao poder seja viável. Ele ainda tem o que propor à sociedade brasileira. Some-se a isso a capacidade que demonstrou de comunicar e liderar, em especial na relação com os menos cultos, e temos um homem político que pode concorrer à Presidência e vencer, em 2014, quando terá 69 anos.

Mas, se Lula pode concorrer, essa opção traz muitos problemas, para ele e o PT.

O primeiro é que sua candidatura seria uma saída para o caso de Dilma não dar certo. Ora, se o governo dela for um insucesso, Lula não sairá ileso das críticas dirigidas à atual presidente, de quem foi fiador. Sua popularidade atual pode sofrer, até 2014. Três anos de problemas na política nacional poderão comprometer o PT como um todo, e não apenas a atual mandatária.

O segundo problema diz respeito à biografia do próprio Lula. Ele deixou a Presidência muito bem avaliado. Só a história fará o balanço, mas hoje seria difícil tirar dele o galardão de ter sido um de nossos melhores governantes, porque soube equilibrar as finanças, a economia e a inclusão social. Num país marcado por tanta injustiça e desigualdade social (FHC: "O Brasil não é um país pobre, é um país injusto"), ele se empenhou seriamente em reduzir esses problemas. Ora, o que seriam um terceiro e quarto mandato seus? Não estaria seguro de que, em novas circunstâncias, seu desempenho e popularidade se manteriam. Lula poderia perder seu encontro marcado com a história. Isso pode parecer pouco, a quem pensa segundo a realpolitik, mas não é. Em suma, Lula teria pouco a ganhar e muito a perder.

Finalmente, por paradoxal que seja, um retorno de Lula à Presidência pode significar o fim do Partido dos Trabalhadores. Se o PT, fundado em 1980, se aproximar dos 40 anos sem conseguir se emancipar da sombra de Lula, mostrando-se incapaz de gerar outros líderes que possam disputar a Presidência da República, o partido poderá cerrar as portas. Lembremos que, bem no começo da campanha de 2010, Lula afirmou que ainda estaria presente na eleição: "Meu nome agora é Dilma", disse. Essa redução de uma pessoa diferente, a primeira mulher a presidir o país, a um pseudônimo de Lula foi decisiva para impeli-la à vitória - mas será um desastre se não der lugar a uma personalidade autônoma, ainda que leal aos ideais dele. Além disso, com a liquidação de todo um grupo de líderes petistas no episódio do "mensalão", e com os principais líderes remanescentes se aproximando nos próximos anos de uma idade que pode torná-los pouco competitivos para a Presidência, o PT precisa garantir a capacidade política da presidente que elegeu e de novos nomes para que, em 2018 ou já em 2014, concorram a sua sucessão. E o melhor, mesmo, é que ela supere a atual crise e consolide sua imagem na Presidência.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O quarteto e a fortuna


Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 20/06/2011

Em breve completará quinhentos anos o livro mais famoso do florentino Nicolau Maquiavel, 'O Príncipe'. De toda a história da filosofia política, é um dos livros mais fáceis de ler. Qualquer um entende tudo o que ele diz. Mas a discussão é áspera sobre o que ele quis dizer, tanto que ainda hoje muitos lhe atribuem uma frase que não é sua, a famosa "os fins justificam os meios". Mas, para nos aproximarmos de seu pensamento, lembremos: Maquiavel diz que vai tratar no Príncipe dos governos novos (não dos já existentes), conquistados com o apoio de "armas alheias". Em suma, trata de governantes que acabam de chegar ao poder, não pela força própria, mas graças a armas de outros. Tiveram sorte, foram bafejados pela fortuna - mas, se quiserem consolidar o poder, terão de se mostrar capazes de mandar eles mesmos. Essa capacidade Maquiavel chama de "virtude", a palavra que vem do latim "vir", varão. Não é uma virtude moral ou religiosa, mas a capacidade de governar a vida política.

Atualizando, podemos dizer que numa época democrática, em que todos os políticos são novos porque o poder não é mais herdado, a distinção de Maquiavel é útil de uma forma nova. Eles batalharam pelo poder? Virtùù. Receberam o cargo da vontade alheia? Fortuna. Essa diferença não se confunde com a questão de serem eleitos ou nomeados. Há eleitos graças ao apoio alheio. Há nomeados que lutaram pelo cargo. Mas a diferença ajuda a ver quem tem força própria para continuar o voo sem padrinho, mesmo tendo decolado graças a ele.

Quatro políticos brasileiros à luz de Maquiavel

Dá para dividir o quarteto de políticos mais importantes de nosso país, nos últimos anos, segundo as categorias de Maquiavel? É instrutivo. Dois presidentes chegaram ao cargo por armas alheias. É o caso de Fernando Henrique, "accidental president of Brazil", como ele mesmo se diz. Em condições normais, seria difícil um intelectual de seu porte, nosso chefe de governo mais estudado desde José Bonifácio, vencer no voto popular. Sustento que foi eleito num estado de exceção econômica, quando a inflação - e o plano que lhe pôs fim - neutralizavam tudo o mais. Mas ele, de quem Conceição Tavares dizia que seria tutelado por Antonio Carlos Magalhães, firmou-se como um presidente divisor de águas, ademais o primeiro a ser reeleito em nossa história. Mostrou virtude, no sentido de Maquiavel. Com o segundo mandato, que criou um abismo entre ele e os demais líderes de seu partido (um dos quais teria sido seu sucessor em 1998, não fosse a reeleição), terminou de superar a dependência das armas alheias.

Também Dilma Rousseff chegou ao poder, não por virtù própria, mas pelo apoio que recebeu, no caso, de Lula. Daí que se coloque, para ela, a mesma questão de FHC. Este é talvez o momento decisivo de seu governo, em que provavelmente se definirão os próximos anos e seu papel na Presidência e mesmo na história. Voltaremos a ela.

Em compensação, dificilmente teríamos exemplos melhores de virtù que Lula - e Serra. O líder petista também era um presidente improvável - que, na frase de Delfim Neto, perderia no voto para qualquer poste. Mas o que fez entre 2000 e 2002 é digno dos melhores políticos: Lula aliou-se a um grande empresário, exigiu de seu partido que não o atrapalhasse, prometeu respeitar os contratos e recorreu a um habilíssimo marqueteiro. Daí, seu êxito. No governo, soube usar a maestria forjada nas derrotas para continuar vencendo. José Serra é outro líder de grande virtù, que se prepara há muito para os mais altos cargos. Sua trajetória é diferente dos outros três, que tiveram parca experiência de gestão (só FHC e Dilma, ministros) ou eleição (apenas FHC e Lula, para poucos cargos) antes da Presidência. Serra percorreu todas as etapas e se destacou em quase todas, de militante a ministro e governador. Preparou-se técnica e politicamente. O fato de não ter sido eleito presidente não depõe contra sua virtù. Nem sempre ela é premiada com o sucesso. Serra deu talvez o máximo de si, e seu jogo ainda não terminou.

Mas a questão agora é: será Dilma capaz, como FHC, que chegou ao poder levado pelos outros, de mostrar que sabe mandar e liderar? Não é fácil dar esse salto. Não sei se ajudou FHC o fato, como cientista político, de conhecer bem o autor que citei, Maquiavel. A prática política é mais arte que ciência - e a própria raridade de cientistas da política na chefia de governos (quem, além do próprio FHC?) mostra como a prática requer arte, enquanto a ciência serve para explicar depois, não para planejar ou prever. Terá Dilma voo pessoal? Mostrará virtù? A questão se torna curiosa porque para Maquiavel a virtù era viril, enquanto "a fortuna é mulher", acrescentava ele, e por isso "gosta dos que a espancam" (sic). O que é então uma presidente mulher, ou presidenta, como ela prefere, ter virtù? Muito já se falou da dureza de Dilma, que estaria dividida entre sua natureza feminina e uma cultura, um desempenho que seriam mais impositivos, "masculinos". Mas esse pode ser um problema mais nosso do que dela, porque o mesmo já se falou de Thatcher e Hillary Clinton, assim como se fala das ministras Ideli e Gleisi: ainda não nos acostumamos com o que é uma mulher no poder. Queremos que demonstrem rigor másculo e sensibilidade femininas - e nos queixamos quando são demasiado viris, como Thatcher, ou apelam demais ao feminino. É interessante, no debate que ora trata da presidenta e suas ministras, ver como a referência a seu sexo vem junto com a pergunta sobre o poder que têm e a truculência, ou não, delas - questões que não receberiam a mesma ênfase, tratasse-se de homens. Acompanhemos os próximos capítulos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras


segunda-feira, 13 de junho de 2011

De praça em praça, novos valores

Renato Janine Ribeiro

13/06/2011

Temos tendência, nós que analisamos a política, a dar importância demais a ela: ficamos falando de Palocci, Temer, Gleisi, por exemplo. Recentemente, escrevi um livro em diálogo com Mario Sergio Cortella ("Política: para não ser idiota"), no qual eu e sobretudo ele lembramos que quem não participa das decisões - por exemplo, no condomínio - deixa os outros decidirem por ele. Contudo, se a maior parte das pessoas dá pouca atenção à política, elas têm razões para isso. Não é fortuito que, cada poucos anos, muitos tomem ruas e praças para fazer que elas sejam, mais que logradouros, lugares públicos. Assim, depois de aqui ter comentado a Plaça de Catalunya e o clamor por uma democracia mais real do que a existente, passo a uma lista de propostas formulada por cidadãos reunidos na Plaza del Sol, em Madri, que conheci graças à artista Ângela Lago. Podem ser lidas na internet, sob a chamada "Las propuestas aprobadas en la asamblea de la protesta de Sol".

Começo pela ideia mesma de praça. Os atenienses a chamavam de ágora, o lugar em que decidiam as questões de interesse comum, quase toda semana. Nosso poeta abolicionista e romântico, Castro Alves, cantava que "a praça é do povo, como o céu é do condor". Há poucas décadas, as pessoas se reuniam nas praças, para bater papo e fazer o footing, prelúdio ao flerte e ao casamento. Isso sumiu. Por isso, quando na Espanha as praças são ocupadas - por jovens mas também gente madura e mesmo idosa, o que muitos não percebem, quando pensam que é uma rebelião da juventude -, esse é um voto de esperança numa vida coletiva melhor. Mas é um avanço que exige romper com a política tradicional.

Ética na política parece ser um apelo mundial

Vamos às propostas. Começam pela política: reduzir mordomias, baixar os proventos dos parlamentares ao salário médio do cidadão espanhol, em suma, moralizar. Há também medidas tão inovadoras que espantam, mas merecem debate: por exemplo, reduzir as horas de trabalho para diminuir o desemprego, até ele cair a 5% (a Espanha já passou até dos 20%). Há ao menos uma proposta que não entendi, mas acho fascinante: que também os votos nulos e em branco estejam representados nos legislativos. Não sei como isso se faria e, para quem se interessa por um sistema governável, com maiorias estáveis, trata-se de um absurdo. Mas muitas vezes chamamos de absurdo ou impossível o que é, simplesmente, (ainda) impensável. E depois, alguns desses absurdos se realizam, como a abolição da escravatura ou a igualdade dos sexos, a ponto de se inverter o que era e o que é insensato.

Mas a grande questão que vejo nas propostas, além de mais uma vez a imaginação tentar ganhar o poder (como em 1968), é a exigência de moral na política. Absurdo não é o que pedem: é o que existe. Faz sentido haver muitas casas vazias e muitos sem-casa, problemas fiscais e creditícios enquanto bancos espanhóis investem em paraísos fiscais etc? Aqui, é bom lembramos por que chegamos a isso.

A modernidade ou o capitalismo, que são quase sinônimos, têm como chave de seu sucesso - neste meio milênio - a construção de um sistema em que, para termos bons resultados sociais ("benefícios públicos"), não precisamos ser indivíduos decentes e morais. É possível até mesmo o contrário: que sejam mais produtivos os "vícios privados", que Mandeville estuda já em 1714. Construímos uma sociedade próspera, a mais rica da história, a que tem a maior expectativa de vida (hoje, o dobro de 1900), a mais livre (nunca tantas pessoas puderam divergir entre si e do governo), partindo daí: renunciamos a que todos sejam bons e apelamos às paixões, afetos, desejos e mesmo vícios de cada pessoa. Os exemplos de Mandeville, que o professor Ari Tank Brito, da UFMT, e eu estudamos, são até engraçados: as prostitutas de Amsterdã, que o governo puritano tolerava para evitar que os marinheiros atacassem as mulheres "decentes", e o ladrão que roubava um monge, fazendo um ouro entesourado e inútil circular e produzir. Mandeville tem enorme simpatia pelo papel social das prostitutas e ladrões.

Antes disso, vigorava a convicção de que, para um país ir bem, seu rei devia ser bom, isto é, ser um bom cristão, maometano ou, ainda, de outra religião. Já, se apelarmos às paixões (Hobbes, Espinosa) ou mesmo aos vícios, fica mais barato produzir a vida social e política. Ela exige menos. E não nos impõe um único modelo moral ou religioso. O problema é que isso funciona mais ou menos assim: para gerar o benefício, use o vício. Para baixar a inflação, aumente os juros. Nada disso faz sentido, à primeira vista. Os cientistas nos explicarão que faz sentido, sim - mas talvez se tenha ido longe demais nesse contraste entre os meios e os fins.

Aqui está o problema: e se tiver chegado a hora de casar melhor meios e fins, de fazer que o bem público resulte do bem privado? Para a expansão econômica e a construção da política moderna e democrática, o recurso a paixões e vícios foi eficaz. Mas, quando foi alcançado muito do que se pretendia, aumentando a prosperidade e liberdade no mundo, e entra em jogo a vida do próprio planeta, parece ser mais pertinente que cada um faça o bem. O caso por excelência, que talvez seja a chave da política em que estamos entrando, é o da ecologia. A vida em conjunto não melhora se cada um desperdiçar mais água. "Pequenas mudanças geram grandes mudanças", diz-se. A busca do interesse próprio, que resultou em produtos bons e baratos, pode estar-se tornando cara demais - porque dilapida recursos naturais, desemprega e sabe-se lá o quê. Não sugiro, aqui, soluções. Mas penso que por aí está mudando nosso modo de pensar.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O vice mais forte de nossa história


Renato Janine Ribeiro
Valor econômico, 06/06/2011

Nunca antes na história deste país, tivemos um vice-presidente poderoso quanto Michel Temer. Outros alcançaram poder depois da Vice-Presidência, como João Goulart, José Sarney e Itamar Franco, que se tornaram presidentes graças à renúncia, morte ou impeachment do titular. Mas Sarney e Itamar, como vices, foram apagados. No final da ditadura militar, Jô Soares nos divertia com um sketch em que um político se recusava terminantemente a ser vice. Indagava: "Alguém já viu uma avenida Vice-presidente Fulano? Uma praça Vice-presidente Beltrano?" Dizia-se que era uma piada com Marco Maciel, ex-governador nomeado de Pernambuco que, como presidente da Câmara dos Deputados, ajudara o ditador Geisel a redigir as emendas constitucionais baixadas com o nome de "pacote de abril", em 1977.

Assim, quando Sarney aceitou a Vice-Presidência, ele provavelmente não esperava ser sequer nome de rua. Encerrava sua carreira. A ironia é que, com a morte de Tancredo Neves, esse vice conseguiu uma sobrevida de três décadas, bem como a continuidade de seu mando no Maranhão, acrescido do Amapá, enquanto Marco Maciel veio a ser vice-presidente, sim, mas de Fernando Henrique Cardoso - um vice honrado e inexpressivo.

Na verdade, antes de Temer, o único vice importante como vice foi João Goulart. Em 1955, ele se elegeu com o presidente Juscelino, do PSD, trazendo-lhe os votos dos sindicatos e do PTB. Nesse mandato, foi influente. Mas em 1960 ele se elegeu vice de Jânio, sem ser seu parceiro de chapa. Só que, em sua segunda vez, ele foi o contrário de Michel Temer. Longe de ter poder, Goulart foi um vice esvaziado.

Temer, um grande articulador, pode ofuscar Dilma

O que temos hoje com Temer? Há fatos e há rumores. Os fatos são que ele conseguiu manter a bancada do PMDB coesa, a favor de Dilma quando se votou o salário mínimo, contra ela quando se aprovou o código do desflorestamento. Os rumores são que Dilma ameaçou demitir todos os ministros do PMDB - ameaça que, não sendo cumprida, corre o risco de desmoralizar a Presidência - e que Temer e Palocci mantiveram um bate-boca. São quatro vitórias para o vice. O que não tivemos, nos vices eleitos pelo povo em nossa história, foram personagens que, de seu cargo pouco destacado, mostrassem uma capacidade de articulação tão grande quanto a sua.

Some-se que um vice pode ser isolado, excluído, o que se quiser; mas não pode ser demitido. Ele, na pior das hipóteses, é o nada que pode virar tudo. Collor tentou reduzir Itamar a um nada. Itamar acabou presidente. Portanto, se Dilma rompesse com Temer, demitindo por exemplo todos os ministros pemedebistas, ela não poderia ficar doente, viajar nem, muito menos, ter uma moléstia grave, renunciar ou morrer. Veja-se, a título de comparação, José Alencar, nosso último vice. Sabíamos todos que ele discordava completamente da política econômica de Lula, mas jamais mexeu com ela, em suas muitas interinidades. Já Temer, se presidente, fará o governo que ele quiser.

Daí, seguem-se duas consequências. A primeira é que o PMDB pode mudar de perfil. Não é provável, mas se torna remotamente possível. A força do PMDB, desde o fim da ditadura, esteve em não ter identidade. Ele reúne gente digna e gente interesseira, políticos de direita e de esquerda. Mas Temer está conseguindo articular esses líderes tão distintos entre si. Até agora, o PMDB se mostrou poderoso na medida em que renunciou, há 20 anos, a lutar pela hegemonia que representa a Presidência da República, investindo em vez disso em bancadas numerosas no Congresso e numa vasta população de governadores e prefeitos. O que os une não tem sido nenhum ideal, mas o interesse: ele é um amplíssimo lobby. Hoje, porém, começa a ser possível, embora ainda muito improvável, uma disputa do PMDB pela hegemonia política.

A segunda é que Dilma Rousseff precisa, mais que nunca, tornar-se uma imagem de marca, imprimir seu estilo à política. Comentei, meses atrás, que ela não mostrava um estilo, ao contrário de seus dois antecessores, ambos políticos sedutores. Fernando Henrique conquistava pela fala racional - ainda, ressalva ele com humor, que fosse uma razão "no nível do senso comum". Lula chegava aos corações e mentes pelas metáforas e pela linguagem da experiência cotidiana. Talvez Dilma não precise, tanto quanto eles, de um estilo - porque eles, a despeito de suas diferenças, fizeram o trabalho que tinha de ser feito, consolidando a democracia, mudando a economia, tornando prioritárias as políticas sociais.

Dificilmente Dilma, ou qualquer outro político sensato, terá hoje a propor algo tão inovador em nossos costumes quanto seus predecessores. A grande mudança já ocorreu. Seu papel é o de dar continuidade. Mas, mesmo assim, o estilo lhe faz falta. Num comício na Bahia, ela só foi (muito) aplaudida quando mencionou Lula. Entende-se que, perto do mais carismático de nossos presidentes, Dilma empalideça. Lula ofuscaria qualquer um. Mas ela não pode se empalidecer diante de seu próprio vice, Michel Temer. Se Dilma jogar o papel da técnica competente na Presidência, ajudada no Congresso pelos operadores que temos visto, sem ter por trás algo como o apelo de FHC à opinião pública ou de Lula ao povo, ela pode perder. Temer conhece muito melhor do que ela o Parlamento. O que fortaleceu Fernando Henrique e Lula foi a capacidade que demonstraram de ir além do Executivo e do Legislativo, para falar com a sociedade. Respeitaram os poderes constituídos, mas souberam cultivar o povo soberano. Como Dilma vai fazer isso, como vai conseguir ser líder, não sei. Mas, se a liderança presidencial ficar vazia, alguém a ocupará.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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