segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O primeiro grande erro de Dilma

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 31/10/2011

Nomeando ministro do Esporte o deputado Aldo Rebelo, artífice da maior derrota do seu governo no Congresso, a presidente Dilma Rousseff comete seu primeiro grande erro. Ela premia a indisciplina, pois deixara clara sua discordância do projeto pró-ruralista do Código Florestal, redigido justamente por Rebelo. Mas primeiro precisamos analisar melhor como a presidente vem lidando com os problemas ministeriais.

Com a troca no ministério dos Esportes, chegam a seis os ministros que Dilma substituiu, em poucos meses. Isso não é anormal. Demora, para um governante articular seus ministros. Fiquei sabendo que a presidente, ao nomeá-los, lhes explicou que este ano, devido aos cortes orçamentários que afetaram todas as Pastas, não cobraria performance. Em 2011, só sairia "quem fizesse bobagem". Mas em 2012 ela exigiria desempenho.

Assim tem sido. As críticas estridentes dos artistas à ministra da Cultura não a derrubaram. Mas, se um ministro não responde bem à conjuntura difícil, ele sai. Dilma não deixa aumentar o desgaste. Ele pode sair por indisciplina, como Nelson Jobim, ou por não esclarecer denúncias de corrupção. Não sabemos se é culpado. Sabemos que ficou insustentável sua permanência no poder.

Nomeando Aldo, Dilma premia a indisciplina

Até aí, está certo. Mas há um dado adicional. Nenhuma substituição surpreendeu a nação por seu impacto. Entrou só um peso pesado, Celso Amorim, mas no lugar de outro peso pesado, Jobim. Nos outros casos, entraram pessoas com menor destaque que o substituído - Gleisi Hoffmann é menos conhecida do que Antonio Palocci. Isso ainda é aceitável. A discrição pode ser uma virtude. Aliás, aqui Aldo Rebelo é exceção. Seu perfil é bem superior ao de Orlando Silva. Ele é o maior nome do PCdoB.

Mas o problema começa agora: pelo menos no Turismo e nos Esportes, ficou claro que a Pasta pertence ao partido. Há ministérios que são feudos. Sai o denunciado, mas a agremiação conserva a vaga. Pior: quando o novo ministro do Turismo decidiu nomear uma pessoa competente para uma secretaria, seu próprio partido exigiu uma indicação política. Ou seja, o partido não se responsabiliza pelos erros, talvez graves, cometidos numa Pasta que ele ocupa. O Executivo arca com o ônus de fazer a máquina funcionar. O partido, só com os bônus. Pois tem a garantia de que, por pior que seja o nome indicado, só terá de substituí-lo por outro, que lhe conserve cargos e convênios.

Isso enfraquece a presidência da República. O PCdoB, partido que viceja graças ao PT, impôs a Dilma o nome de Aldo Rebelo. É um político capaz. Presidiu a CPI da CGF. Também presidiu a Câmara. Foi um bom ministro. Conseguiu, pertencendo a uma legenda outrora radical, negociar com todo o espectro político - tanto que foi cogitado, no governo Lula, para o ministério da Defesa, sem que isso incomodasse os militares. Não recearam que Aldo mandasse investigar as mortes de seus correligionários na guerrilha do Araguaia. Em suma, mostrou-se hábil, moderado e até conservador.

Tão conservador que seu partido agora ocupa a secretaria de Esporte do prefeito de S. Paulo, aliado de José Serra; tão conservador que foi Aldo Rebelo quem montou a versão pró-ruralista do Código Florestal... Conseguiu que praticamente a Câmara inteira votasse contra os ambientalistas. Quem perdeu na ocasião foram o PV, mas também o PT e a presidente Dilma. (O PSDB votou com os ruralistas, apesar de ter querido namorar Marina Silva no segundo turno presidencial, em 2010). Trazer Aldo para o governo é esquecer tudo isso, o que não condiz com a imagem exigente e severa da chefe de Estado.

Isso torna ainda mais vulnerável o ministério do Meio Ambiente, um dos menos prestigiados pelos governos petistas. Não são poucas as dificuldades que a atual ministra tem enfrentado, embora conte com o apoio dos ambientalistas. A primeira titular petista da Pasta, a senadora Marina, acabou rompendo com Lula e, em 2010, teve uma votação impressionante. Portanto, se os verdes têm pouca bala na agulha no plano institucional, se agora Marina e o PV se digladiam, se desde a eleição ela e eles foram esquecidos e quando se fala em oposição se pensa apenas na mais tradicional, o PSDB, nem por isso eles carecem de poder de fogo. Podem mobilizar a opinião, nacional e internacional. Um projeto consistente e empolgante para o futuro do Brasil passará, necessariamente, pela questão ambiental. Os ambientalistas, estejam no Meio Ambiente, na Ciência e Tecnologia, em ONGs ou na oposição, desempenharão um papel importante em nosso futuro próximo.

O que fará Aldo Rebelo, no ministério, ao se tornar colega de pessoas que enfrentou, em decidida oposição a nosso futuro? Político capaz, possivelmente será um gentleman com a colega do Meio Ambiente. Evitará confrontá-la no que disser respeito ao Código Florestal, até porque sua missão agora é outra. Mas tudo isso está longe de ser uma boa saída.

Há uma saída que poderia reduzir os danos. Ela é improvável. Mas consistiria em Aldo, por iniciativa própria ou por determinação presidencial, aproveitar o enorme cabedal de simpatias que construiu junto aos ruralistas para convencê-los a recuar, a ceder. Até o momento, quem perdeu foram os ambientalistas. Se o novo ministro agir no plano politico para desfazer parte pelo menos do que ajudou a montar, em termos de descaso com o meio ambiente, pode ser que neutralize vários aspectos negativos que apontei. Mas continuam valendo minhas outras críticas. Dilma premiou a indisciplina, garantiu a um minipartido seu feudo ministerial e não responsabiliza os parlamentares pelos erros de seus indicados. Ela devia ter sido firme. Não foi.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A liberdade de expressão

Por Renato Janine Ribeiro
Valor econômico, 24/10/2011

Não saberia discutir o caso Rafael Bastos, pela mera razão de que nunca vi o humorista. Mas o debate sobre afirmações agressivas e até desrespeitosas - refiram-se a mulheres feias, refiram-se a homossexuais -, indo do deputado Bolsonaro aos humoristas, é de grande importância política. Porque está em jogo o alcance da liberdade de expressão.

Ora, o que tenho lido a respeito e constitui um quase consenso entre os jornalistas, mas não tanto fora de seu meio, se resume assim: é inaceitável qualquer censura. É preferível que, no mais livre debate, se possa expressar o que há de mais odioso, porque poderá ser contestado, do que coibir sua veiculação. Primeiro, porque se alguém tiver o poder de definir o que é decente e indecente, o que é "do bem" ou "do mal", esse alguém terá um poder ilimitado, que inevitavelmente empregará para proteger e promover o seu lado e reprimir seus opositores. Segundo, porque estamos lidando com adultos. Eles não podem ter restringido seu direito de acesso a toda forma de opinião até porque, só pelo acesso, pelo debate, pela exposição de ideias opostas, poderão superar o preconceito.

Creio que meu resumo é bastante fiel. Aliás, concordo com tudo isso. Só acho que esse discurso deixa de lado dois problemas sérios. O primeiro é que nenhuma liberdade é absoluta, nem mesmo a de expressão. Na Alemanha, por razões óbvias, a apologia do nazismo é proibida. Na França, negar a realidade histórica do Holocausto constitui crime. Os dois países entendem que a expressão de ideias fascistas não deve ser tolerada, pelos males que já causaram. Considera-se que os indivíduos não dispõem necessariamente de antivírus contra esses perigos.

Todo abuso de uma liberdade constitui crime inaceitável

Deixam a Alemanha e a França de ser países democráticos, porque proíbem a pregação do ódio? No Brasil, a Constituição que veda a censura manda respeitar o nome, a reputação e a família. Qual o equilíbrio entre o direito de se expressar livremente e a obrigação de respeitar o outro? Esse ponto tem de ser definido. Não havendo lei de imprensa, ficam indefinidas as fronteiras entre o direito de se expressar e o de se proteger da calúnia. Esse limbo deixa tudo ao arbítrio do juiz.

Mas há um segundo problema - e esse me entristece. Trinta anos atrás, vivíamos sob a ditadura mais longa de nossa história. Defender a liberdade de expressão significava, então, lutar para que riquezas enormes viessem à tona. Pudera: de 1964 até 1985, passamos por três fases de suspensão até das garantias constitucionais mínimas - seis meses do Ato Institucional, em 1964, ano e meio do AI-2, entre 1965 e 1967, mais de dez anos do AI-5, começando em 1968. Na outra metade da ditadura, mesmo sem atos institucionais, as leis vigentes limitavam muito a liberdade. A esperança era então que a liberdade nos trouxesse ar, vida, sensibilidade, inteligência. Quando um livro, filme ou peça era proibido, víamos nisso um selo de qualidade. E quase sempre tínhamos razão.

Então por que hoje, quando se fala em liberdade de expressão, é para defender o direito a dizer e fazer o pior, não para o melhor? Repito: não me julgo capacitado a dizer o que é bom ou mau, nem quero para mim o poder legal de distingui-los. Mas, nos tempos que evoco, a liberdade era vista como criativa, produtiva de melhores relações humanas. Hoje, porém, quando ela é invocada pelos jornalistas a que aludi, é para autorizar a expressão do que há de pior no ser humano. Mais grave que Bolsonaro, aliás, foi o deputado paulista que acusou os negros de descenderem do filho maldito de Noé. Aqui, saímos dos limites democráticos e entramos no âmbito do que uma sociedade decente pode e deve castigar. Não defendo a censura. Censurar e punir são coisas bem diferentes. A censura se faz antes. Já a punição se aplica depois. A censura impede que se cometa um ato julgado errado. Curiosamente, ela torna o censurado inocente e impune, porque não pôde fazer a coisa errada (supondo que fosse mesmo errada). Mais adequada é a punição, que não impede ninguém de dizer o que quiser, mas castiga com o rigor da lei, após processo justo, quem agiu criminosamente de qualquer forma, inclusive com a palavra.

Mas hoje a liberdade de expressão deixou de ser selo de qualidade para se tornar sinal de desesperança. A maior parte dos que defenderam Rafael Bastos e outros humoristas que avançaram o sinal, pelo menos, do bom gosto alega que qualquer limite à liberdade de expressão pode levar ao controle dos adultos por um governo que imporá cada vez mais controles e censuras. Eu concordo, contra a censura. Contudo, não é um triste sinal dos tempos que hoje, quando se elogia a liberdade de expressão, seja para tolerar o discurso vulgar, preconceituoso, que rebaixa o nível do convívio social - e não mais para criticar o que existe de errado, apresentar utopias, fazer a razão sonhar?

Nos tempos em que a América Latina padecia sob as ditaduras de direita e a Europa Oriental sob as de esquerda, dizia-se que nas gavetas havia inúmeras obras de qualidade, proibidas pela censura - e que, caindo o regime autoritário, cem flores floresceriam. Mas isso não sucedeu. Havia menos obras-primas proibidas do que se imaginava. Parece que, em geral, uma obra-prima precisa de liberdade, não só para ser publicada, mas até mesmo para ser escrita. Mas o que me entristece é ver que hoje se valoriza cada vez mais o vulgar, o reles. Anos atrás, esperávamos que a liberdade gerasse o bom e o ótimo. Agora, parece que o reles é a essência da liberdade, seu produto mais constante, talvez mais importante. Só posso dizer que lastimo esse estado de coisas.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Política sem pressa

Por Renato Janine Ribeiro

Um amigo foi a Manaus, este ano, para a temporada operística. No intervalo de "Tristão e Isolda", magnífica mas, como tudo em Wagner, longuíssima, comentou aos vizinhos de plateia, já cansados: "Wagner era um homem sem pressa..." Creio que o comentário se aplica muito bem ao nosso sistema eleitoral e parte do sistema político.

Um traço essencial do regime parlamentarista é que o Parlamento pode ser dissolvido. Como ele mesmo pode destituir o governo, a forma de garantir que aja responsavelmente é fazendo pairar, sobre sua cabeça, a possibilidade de ser dissolvido - pelo presidente da República ou, às vezes, pelo primeiro-ministro. Muito bem. Isso significa que, entre o dia em que sai o decreto de dissolução e as eleições, não transcorrem mais que 30 ou 60 dias.

Aqui no Brasil, talvez o único país do mundo que conta com um ramo inteiro do Judiciário especializado em eleições, dotado por sua vez de cartórios e funcionários que trabalham o tempo todo para promover pleitos que somente se realizam a cada dois anos, cada vez que se fala em promover uma consulta - como certos plebiscitos - responde-se que a Justiça Eleitoral demorará um ano ou dois para organizá-la. É incrível o abismo entre a rapidez dos países parlamentaristas e a lentidão do nosso órgão incumbido de reger as eleições. Nada justifica essa demora.

Eleição e posse são rápidas nos países avançados

Neles, as eleições se realizam sem maiores transtornos urbanos. Nos Estados Unidos, dão-se na "primeira terça-feira após a primeira quarta-feira de novembro" - num dia útil, em que todos trabalham. Mesmo assim, votam. Não há congestionamentos de trânsito perto das seções eleitorais. Não há carros parados em lugar proibido, ante a indiferença dos guardas de trânsito, que sabem que se multarem - como deveriam - farão o motorista irritado votar na oposição ao prefeito. Tudo é normal.

Há mais. Realiza-se a eleição parlamentar, e o partido no governo perde a maioria. O líder da oposição assumirá o governo. Na manhã da segunda-feira (eleições europeias são com frequência no domingo), um caminhão de mudança estaciona diante da residência oficial do agora ex-premier, e antes do meio-dia ele desocupa a casa. Isso, aliás, sempre me espantou - como consegue isso? Em segredo a mulher e os empregados já tinham encaixotado tudo? Ou, como é provável, depois voltam para retirar o principal?

Mas estas minhas dúvidas são detalhes. O fato é que, menos de 24 horas depois da eleição, já há um novo governante em função. E também um novo governo: 20 ou 30 ministérios (ou secretarias de Estado) mudam de mãos em questão de horas. No Brasil, é normal o governante eleito começar, só aí, a fechar a sua equipe. Demora meses negociando e escolhendo, ou escolhendo e negociando. Na França, Alemanha, Reino Unido, Espanha, tudo isso se faz em menos de um dia.

Estaremos acostumados a desperdiçar o tempo da política? É essa a questão. Verdade que também isso acontece nos Estados Unidos. Da eleição à posse, lá se passam dois meses e meio, em que também há um governo desautorizado e outro, aguardando para ligar as turbinas. Os norte-americanos até dispõem de uma expressão para designar o presidente e o Congresso em fim de mandato, depois de eleitos seus sucessores: "lame duck", literalmente, pato machucado, cujas asas estão feridas e já não lhe permitem voar. Eles aceitam 75 dias de inatividade. Nós toleramos 60, em caso de segundo turno, e 90, se a eleição for definida no primeiro.

Sempre foi assim, aqui. Antes de serem informatizadas as eleições, a apuração tardava dias. Na França dos anos 1970, acompanhei alguns pleitos. Fechavam-se as urnas ao escurecer, e os mesários apuravam os votos. Pelas 22 horas, já havia os resultados de cada seção eleitoral e, o mais tardar à meia-noite, sabia-se quem ganhara e quem perdera as eleições. Por isso, de manhã o primeiro-ministro deixava a casa que ocupara durante alguns anos. No Brasil, uma rapidez comparável somente se tornou possível com a informatização. Não precisávamos ter esperado tanto.

Porque, repito: será que acreditamos que o tempo da política não vale? Que pode ser jogado fora? Que não há urgências? Que podemos demorar à vontade para ter o resultado proclamado, o ministério constituído, o governo funcionando? Nada disso faz o menor sentido. Até porque, quando o governo toma posse, esperamos ainda que no seu primeiro ano de mandato esteja acertando os ponteiros. Isso vale inclusive quando a sucessão se dá no mesmo partido - veja-se como tratamos Dilma Rousseff: não faz nem um ano que assumiu, ainda tem de trocar ministros, fazer tudo andar direito... Esta condescendência com a lentidão na coisa pública não é, seguramente, um bom sinal.

Sei das dificuldades que há na política. Nos Estados Unidos e nas democracias com voto distrital, são poucos os partidos. No Brasil, o presidente eleito tem de negociar à exaustão com os vários partidos representados no Congresso. Mas, nos Estados e municípios, é bem mais fácil. E isso não explica a lentidão dos governadores e prefeitos, ou da Justiça Eleitoral - que, por exemplo, no quadriênio passado tardou dois anos para julgar as eleições do Maranhão e da Paraíba, ainda por cima, dando seus governos aos candidatos derrotados, em vez de convocar novo pleito. Acredito que, lá onde isso é viável, e em quase todas as esferas da política o é, faria bem nossa política ter um pouco mais de pressa.

Em tempo, até porque de tempo falamos: recomendo a temporada de óperas em Manaus. Wagner é ótimo, e há também os compositores mais velozes - Mozart, os italianos...

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Experimentar o voto facultativo

Por Renato Janine Ribeiro
Valor econômico, 10/10/2011

Reforma política é um assunto de que se fala com frequência, mas nunca se sabe bem de que se trata. Na verdade, porém, temos no Brasil apenas duas ou três reformas políticas, se tanto, que realmente estão no horizonte. Uma é a dos partidos e analistas políticos: como eleger os deputados federais, pergunta-se. Mudar sua forma de escolha acarretaria, espera-se, melhor representação e, sobretudo, menos corrupção. Daí que esse tema esteja ligado à questão do financiamento eleitoral. O PSDB defende o voto distrital, o PT a manutenção do voto proporcional, só que em lista fechada. A reforma política que provém dos partidos resume-se nisso. Voltaremos a ela, numa próxima coluna.

Porque há outra "reforma política", nunca formalizada, de poucas chances, mas que vem de baixo para cima - ou, pelo menos, aparece em cartas de leitores e em conversas de bar. Não é assumida pelos partidos. Aliás, não é apenas uma, são duas reformas políticas. A primeira já está valendo. É a fidelidade partidária. Não por acaso, o Congresso nunca a regulamentou, apesar de constar da Constituição. Foi regulada pelo STF. Falta, claro, aplicá-la; por ora, não passa de palavras.

A outra é o voto facultativo.

Votar deve ser obrigação ética, não punitiva

Não quer dizer que as mesmas pessoas defendam a fidelidade partidária e o voto facultativo. Creio que, em nome da ética, a grande maioria dos eleitores é a favor de que o eleito não saia do partido pelo qual foi escolhido. Por sinal, essa é a única reforma política que é ética de ponta a ponta. Com raras exceções, não há como defender que uma pessoa se eleja pela oposição e passe para o governo.

Já no caso do voto facultativo, não sei qual a sua popularidade. É o preferido dos leitores que escrevem aos jornais, o que é um indicador interessante. Mas muitos desses eleitores, provavelmente de classe média, parecem mais empenhados, não em ter o direito de não votar, mas em que os pobres não votem. Já li cartas afirmando que, se o voto fosse facultativo, quem "não tem consciência política" não votaria. Obviamente, quem "não tem consciência política" é simplesmente quem discorda de nós... Esse é um discurso velho, conservador, que lembra o século XIX, quando se temia que uma maioria de pobres mexesse nas leis tributárias, no orçamento, em suma, na desigualdade.

Uns meses atrás, discutindo com 200 alunos do cursinho vestibular Pré-Federal, em Belo Horizonte, vi que a maioria deles era pelo voto obrigatório - não uma enorme maioria, mas uma maioria clara. É um dado interessante.

Mesmo assim, creio que poderíamos tentar uma experiência com o voto facultativo. Nosso país não é o único a ter o voto obrigatório. Austrália, Bélgica, Costa Rica, Itália também o têm. Mas, em sua maior parte, eles não punem os que deixam de votar. Já o Brasil os castiga com um penduricalho de restrições mesquinhas, como por exemplo a dificuldade para tirar passaporte. Penso que, de duas uma: ou o voto é tão importante, para que todos construam a coisa pública, a "res publica", que deveríamos punir seriamente quem não vota - por exemplo, impondo uma semana de trabalho numa ONG - ou então o melhor é largar os penduricalhos e investir no caráter fortemente ético da obrigação cívica. Não há democracia sem cidadãos. Portanto, devemos ensinar a todos, desde cedo, que defender a república é uma obrigação - ética - de todos.

Poderíamos fazer um teste. Manteríamos o voto obrigatório na Constituição. Ela não prevê punições, que estão em leis, as quais foram somando as pequenas restrições a que aludi (e uma multa irrisória). Mas suspenderíamos as leis punitivas por um ciclo eleitoral, isto é, por um ano de eleições municipais e outro de eleições gerais. E veríamos no que dá.

Será que realmente despenca a participação eleitoral, com o voto facultativo? Não sei. É consenso que votamos com mais ânimo para o Executivo do que para o Legislativo - mas, como se trata da mesma eleição, a abstenção sempre será a mesma. Mas o importante é pôr os partidos para trabalhar. Como disse em coluna anterior, hoje eles têm a reserva de mercado de nosso voto. Temos que votar; portanto, em quem votamos? Já se os partidos tiverem de se empenhar para mostrar aos eleitores que o voto é importante e traz resultados, a mudança terá valido a pena.

É claro que teria de haver punições severas, para quem tentasse impedir alguém de votar - inclusive de forma indireta, por exemplo, induzindo ou instigando o eleitor a trabalhar o dia inteiro das eleições. Mas, se conseguirmos manter um índice elevado de participação eleitoral, o resultado será precioso: enfatizaremos o caráter ético e não punitivo da obrigação eleitoral, promoveremos uma grande pedagogia cívica e, finalmente, teremos certeza de que as pessoas votam por convicção. Acredito, aliás, que será baixo o número de abstenções. Justamente devido à obrigatoriedade, temos longa tradição de voto. Creio que a obrigação legal de votar completou seu papel, e pode, hoje, se tornar um dever puramente ético.

Insisto: seria bom tratar-se de uma experiência. A lei suspenderia as punições por duas eleições sucessivas. Depois, as sanções voltariam a vigorar - salvo o caso de nova lei, que as suprima em definitivo. Assim, os defensores do voto obrigatório nada teriam a temer. O ônus de aprovar o fim definitivo das punições será de quem quiser extingui-las. Se não houver uma lei nova após quatro anos, retorna-se ao statu quo da obrigatoriedade. E poderemos testar todos os riscos dessa mudança - que, com certeza, será mais comentada nas cartas de leitores do que tem sido o debate entre o voto distrital e a lista fechada.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

Três níveis de corrupção


Por Renato Janine Ribeiro
Valor econômico, 26/9/2011

Denúncias contra a corrupção são cada vez mais frequentes em nossa vida política. Isso não é coisa nova. O fim do regime democrático, em 1964, foi marcado por uma festa de denúncias contra "corruptos" e "subversivos". A ditadura que se seguiu cassou os segundos mas poupou os primeiros - aliás, aumentou seu número e atuação. Mas é inegável que há corrupção no Brasil, como, infelizmente, em muitos países, talvez todos.

Não há indicadores confiáveis de corrupção, no mundo ou aqui. Existe um índice de percepção da corrupção, o IPC, anualmente publicado pela Transparência Internacional. Recomendo aos interessados que acessem seu site,www.transparency.org. Trata da percepção da corrupção sobretudo pelos empresários de fora do país em questão. É um indicador importante, mas não mede a realidade da corrupção e sim sua percepção por atores econômicos. Daí que uma pequena subida ou descida no IPC não signifique muito. Para comparar, se um país melhora o índice de Gini (que mede a desigualdade social), o IDH (indicador de desenvolvimento humano) ou o desempenho no PISA (que mede a competência dos estudantes em matérias básicas), o significado é imediato. Subir um degrau ou melhorar 3% em cada um destes indicadores merece festejo. No IPC, sempre estamos na margem de erro - exceto se a subida ou queda for brutal.

A corrupção faz mal. Mais à sociedade que à economia

O que proponho é uma rápida tipologia dos níveis de corrupção. Dividirei os países em três escalões. No mais baixo, a corrupção é tão alta que inibe o funcionamento do Estado no que lhe compete. Dou como exemplo o Camboja, descrito no recente "Cambodia's curse", de Joel Brinkley. Não recomendo a obra; é repetitiva, e esquiva a responsabilidade dos Estados Unidos na extensão ao Camboja da guerra do Vietnã, que destruiria o tecido social do reino, abrindo lugar para a tomada do poder pelo Khmer Rouge e pelo corrupto regime atual. Mas basta dizer que, segundo o autor, quase nada dos impostos reverte em favor da sociedade. O mesmo vale para outros países em que o dinheiro dos impostos é sonegado ou desviado. Recente reportagem da "Vanity Fair" situa a Grécia nesse rol, que incluiria muitos países da África e uns da Ásia.

Um amplo nível intermediário é povoado pelos países em que a corrupção causa grandes danos, tanto ao desviar dinheiro público dos hospitais, escolas e geração de empregos, quanto ao desmoralizar a vida pública. Localizo aqui o Brasil. Contudo, nesses países a corrupção, se causa danos, não impede o Estado de atuar. O Brasil é um exemplo. Meus leitores, embora paguem impostos, provavelmente não usam a educação, saúde ou transporte públicos. Quando na minha casa caiu uma árvore, chamei a prefeitura para cortá-la e, sobretudo, retirar uma colmeia. Demorou um mês e, quando veio o serviço, me avisaram que nada teria de pagar. Pensei: o que uso, da prefeitura? O asfalto? Para comparar nosso nível de vida com o europeu: mesmo os países hoje em crise na Eurozona garantem que seus cidadãos não necessitem colocar os filhos em escolas particulares, usar plano de saúde ou comprar um carro para ir ao trabalho. Tudo isso faz parte do papel do Estado. Será nosso Estado tão deficiente nisso devido à corrupção? Não sei. Mas acredito razoável supor que haja Estados em que a corrupção é significativa e danosa, ainda que não chegue a impedir por completo seu funcionamento em alguns dos seus ofícios principais.

Finalmente, teríamos os países em que há corrupção, mas esta não impede a ação do poder público no que lhe cabe. Até um tempo atrás, diríamos que nesses países a corrupção é bem pequena. Hoje, após as aventuras de Bush e Cheney no Iraque e os processos contra Chirac na França, eu teria dificuldade em afirmar que esses países não têm corrupção. Mas posso constatar que, neles, o Estado funciona melhor que no Brasil: que a corrupção não os impede de proporcionar um nível de vida bem superior ao nosso.

Por que essa tipologia? Porque, se fizermos como muitos leitores de jornais ou facebookers dizem - se acusarmos tudo e todos de corrupção -, se não percebermos que nosso lugar, embora não seja o do melhor escalão, tampouco está no pior, nada faremos de sério contra a corrupção. Lembro quando, no governo Itamar Franco, se dizia que tínhamos 32 milhões de crianças de rua. Uma pesquisa então mostrou que, na cidade de São Paulo, havia só mil crianças na rua. Foi acusada de subestimar o fenômeno. Tolice: o que dados reais permitem é lidar com a realidade. Para a demagogia, superestimar a fome, o abandono de crianças ou a corrupção é uma festa. Mas, se forem enormes, só nos restará emigrar.

É só constatando que o Estado brasileiro funciona, ainda que mal e porcamente, mas melhor que os países totalmente tomados pela corrupção, que alcançamos condições de localizá-la e enfrentá-la.

Só que isso exige um esclarecimento final. Como mostra Robert Harris em seu interessante "Political corruption" (2003), "a China é um Estado de alta corrupção - no qual a corrupção infiltrou os órgãos de governo a ponto de fazer da corrupção a norma, e da honestidade por vezes a perigosa exceção". Então, como ficam as coisas? A China, tão corrupta, é justamente o país de desenvolvimento mais exemplar. Seria correto dizer que se desenvolveu economicamente, como o Brasil da ditadura, mas não socialmente? Nossa tipologia seria útil, não para distinguir os países que mais crescem, mas sim os que mais cuidam de seus cidadãos? Diferencio com ela os países pelo modo como o Estado responde à sociedade? Tomara! Espero que não terminemos por dizer que o crime compensa.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras