segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O projeto verde

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 27/2/2012
Preocupo-me com uma triste curiosidade da política brasileira: temos por um lado partidos sem projeto político, como é o caso de várias agremiações médias ou pequenas, que nada almejam senão uma fatia do poder e, por outro, projetos ou agentes políticos sem partidos. Estas semanas, discorri sobre este assunto. Tratei dos empreendedores e ongueiros, que, a despeito de suas diferenças, estão desenvolvendo um know-how de qualidade para organizar a sociedade - mas não têm, e talvez jamais venham a ter, projeto político. Substituem com vantagem, a meu ver, um liberalismo que nunca deitou raízes reais em nosso país, mas nem por isso se converteram em ator político. Tratei disso há poucas semanas. Na última coluna, lembrei aqueles, economistas ou políticos, que acham insuficiente o Brasil exportar produtos agropecuários e minérios, querendo uma pauta de produção e de exportações que agregue mais valor-trabalho a nossas mercadorias. Acrescentei que esta importante discussão não tem desdobramento político; fui então agradavelmente surpreendido pelo lançamento, em breve, da Frente Parlamentar em Defesa da Indústria Nacional, comunicado a mim pelo deputado Newton Lima. Espero que dê frutos, embora eu esteja convencido de que hoje a oposição indústria-lavoura está sendo substituída pela do trabalho inteligente vs. o braçal.

Chefiar governos não é o projeto do movimento verde

Hoje há duas forças políticas capazes de disputar o poder no Brasil - o PT e o PSDB. Mas há outras ideias, outras questões, que precisam ocupar mais espaço em nossa cena pública - seja criando novos partidos que com o tempo se tornem competitivos, seja levando os dois principais a levar em conta conceitos e concepções que não constam, ainda, de suas agendas. Aliás, esse foi o caminho tomado pelos verdes, na sua história de quase meio século. Sabendo que não conseguiriam votos suficientes para chefiar um governo, eles se aliaram aos socialistas, na França e na Alemanha, a fim de implantar ao menos parte de suas políticas. Isso, que vale para os verdes nos dois países mais importantes em que exerceram algum poder, parece-me valer para todos os projetos de que tratei, mais o que verei hoje, que é o dos verdes de Marina Silva. Empreendedores podem ser mais fãs do capital (ainda que social), industrializantes podem ter tido em José Serra seu político mais proeminente e Marina foi ministra de Lula; mas não há impossibilidade, de princípio, para que uma dessas políticas seja assumida, quer pelo PT, quer pelo PSDB.

Vamos então aos verdes. Eles passaram do romantismo para a ciência e a tecnologia. No começo, era o amor às matas e a tudo o que é natural. Depois, tornou-se princípio econômico. Entre nós, o lançamento da obra organizada por Ricardo Arnt, "O que os economistas pensam sobre sustentabilidade" (2010), marcou bem essa transição do ideal à proposta ou, se quiserem, esse revestimento da ética pela ciência, essa aliança do romantismo com a economia. Temos aí um projeto de vida, mais até do que uma proposta política. Estamos acostumados à ideia de que um partido importante tem uma visão global do mundo. Aqui, não é o caso. Quem tem a visão global são os defensores do desenvolvimento sustentável, isto é, membros de um partido pequeno - ou nem membros, de partido nenhum. Isso pode até fazer deles pessoas de uma nota só, mas o relevante é que tenham propostas para cada momento do dia, para a ação cotidiana assim como para o planejamento econômico.

Aqui, o paradoxo. Por um lado, os verdes têm uma visão do mundo mais detalhada e mais consistente, quem sabe, do que nossos dois principais partidos. Mas, por outro, a experiência dessas décadas lhes dá, quando muito, a chance de serem parceiros minoritários numa coligação de governo. Assim foi no estrangeiro, mas também aqui: geralmente, o PV se coliga com administrações tucanas municipais ou estaduais. Ou seja, entre seu ideal e suas possibilidades, vai uma distância. Eles bem que gostariam de moldar o mundo à sua imagem - pois têm uma utopia, talvez a única de nossos dias -, porém dificilmente o conseguirão. Mas talvez a república que eles propõem, sua visão de "coisa pública", de "como viver juntos", seja política só em parte. Como ela diz respeito a toda uma mudança espiritual e comportamental - que inclui a reciclagem, o não desperdício, o respeito à natureza e ao outro -, pode ser que seu projeto esteja mais na ética do que na política. O que, certamente, não os exclui da disputa pelo poder, mas define um leque interessante: muita ambição nos ideais, um certo pragmatismo nas alianças de governo, pouca chance de mandar.

Quer isso dizer que a candidatura de Marina Silva, com todos os votos que obteve, não terá chances - ela ou outra - de conquistar a presidência da República, ainda que a longo prazo? Assim acredito. É verdade que poderíamos compará-la, sim, ao PT, que lentamente, durante 20 anos, construiu sua ascensão ao poder. O PT é um partido de certa forma único no mundo - uma grande agremiação de trabalhadores, tendendo à esquerda, mas sem ser comunista. Há partidos trabalhistas no mundo, há partidos grandes e há esquerda não comunista; mas essas três características, ao mesmo tempo, só o PT tem. Por isso mesmo, se o PV em outros países nunca chefiou o poder, quem sabe seremos originais também nisso. Ele pode começar pelo Brasil... Mas, por ora, o papel dos verdes - não o do partido, mas o do movimento que Marina capitaneou - parece ser o da pregação ética e científica. O que, por sinal, nos longos anos de travessia do deserto, foi uma das grandes contribuições do próprio PT para nossa política.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O partido industrial

Valor Econômico, 13/2/2012
Há no Brasil um projeto político - sem partido - composto daqueles que se inquietam com a desindustrialização do país, ou melhor, com a redução da parte da indústria em nossa produção e exportações. Em meados do século 20, quando o subdesenvolvimento e seus males despertaram reflexões de alta qualidade, entendeu-se que, para saírem da miséria, os países mais pobres deveriam ir além da agricultura, pecuária e extração de minérios. A única forma de se desenvolverem seria agregando valor-trabalho a seus produtos. As mercadorias com baixa quantidade de riqueza gerada pelo homem acabam valendo menos. Mesmo a grande exceção dentre os produtos coletados, o petróleo - que, por sinal, começou a se tornar mais caro apenas na década de 1970 -, não é uma benção para as nações que o extraem. A grande exceção são os Estados Unidos, mas justamente porque sua produção de petróleo é apenas um item numa economia complexa e rica. Em outros lugares, o petróleo desestimula a geração de riquezas pelo trabalho humano. Mas, ficando no Brasil, entendeu-se que a solução de nossos males passava pela industrialização. É o que une Volta Redonda, construída ainda na ditadura Vargas, os projetos de JK na década de 1960, o planejamento de Celso Furtado e as grandes obras da ditadura militar.

Riqueza natural não basta para fazer rico um país

Contudo, os dois últimos presidentes da República, FHC e Lula, conviveram bem com o que desde a década de 1990 alguns chamaram de desindustrialização. Voltou a crescer, em nossa pauta de exportações, o que vem da terra: seja a riqueza mineral gerada ao longo de milhões de anos e que desaparece para sempre, seja o produto do campo, ora lavoura, ora pecuária. Na análise que a Cepal fazia das causas da pobreza, trata-se de produtos honrosos, mas que não permitiriam dar o salto para o desenvolvimento. É verdade que a agropecuária e a extração de minérios hoje têm uma qualidade nunca antes vista. Ciência e tecnologia estão embutidas nelas. Por outro lado, hoje não basta ter indústrias: há as de primeiro e de segundo time. Só as melhores representam um diferencial. O trabalho agora valorizado não é qualquer um - é, sobretudo, o intelectual. Ou seja, a diferença de nossos dias não é bem entre indústria e agricultura: é entre o uso da inteligência e o uso dos braços. Mesmo assim, o fato é que nas últimas décadas - por coincidência as mais estáveis de nossa história política, as que também mais contribuíram para a redução da miséria e da pobreza - nossa economia de exportação voltou a se constituir principalmente de produtos com pouca agregação de valor. Há, aí, pelo menos um paradoxo, e talvez um risco.

Testemunhei um episódio dessa história quando jovem. Meu pai, Benedicto Ribeiro, jornalista econômico (ver José Venâncio de Resende, "Construtores do Jornalismo Econômico", 2005), trabalhava em 1967 com Horácio Coimbra, que presidia o Instituto Brasileiro do Café. Horácio, dono da Cia. Cacique de Café Solúvel, perdeu o cargo, vítima das pressões norte-americanas para que o Brasil não exportasse café solúvel, mas só em grão. Em plena vigência do Ato-5, o então deputado Helio Duque relatou esse caso em "A guerra do café solúvel" (1970). A simples transformação do café para solúvel, incluindo mais trabalho no valor do produto, já era um elemento de combate ao subdesenvolvimento.

Temos economistas e políticos preocupados com essa redução da qualidade do que exportamos. Os nomes óbvios são Luiz Carlos Bresser-Pereira, que deixou o PSDB no ano passado (como revelou ao jornal Valor), e José Serra, que em sua carreira se empenhou na defesa da indústria. Contudo, este assunto hoje não é pauta de discussão política. Não tem destaque na maior parte dos jornais, nem na televisão aberta. Apenas devo lembrar, aqui, que não se trata exatamente de defender a indústria na exportação brasileira; é antes de mais nada entender que o país não pode depender tanto da exportação, digamos, de soja para alimentar o gado estrangeiro. É ótimo exportarmos esses produtos, mas não bastam. Ou seja, o que chamei de partido industrial não é bem um defensor só da indústria, ou de qualquer indústria: o que o incomoda é a hipercommoditização do que mandamos para fora, que nos deixa econômica e politicamente vulneráveis, e o que ele quer é agregar trabalho brasileiro para o país produzir mais riquezas. Mais ainda: pretende romper com a ideia do país "rico por natureza", quando riqueza é o que fazemos, com o trabalho e, cada vez mais, a inteligência.

O problema é que esse partido da agregação do valor-trabalho não existe. Há economistas preocupados com o problema. Só que o assunto não vai à praça pública. Nem sei se Serra ainda lhe dá importância: na campanha, mal o mencionou. Pode ser tema impopular - é tão barato importar da China... Mas os pontos cruciais são dois: aparentemente, vemos aqui o calcanhar de Aquiles de nossa economia, que tem permitido uma redução drástica da pobreza; e, seguramente, é o assunto de que não se fala. Haverá políticos querendo trazer o assunto para o debate? Na verdade, o que chamei de partido industrial deveria ser conhecido como o "partido da inteligência como força produtiva". Talvez aí esteja o problema: ele se concentra demais no Ministério da Ciência, Tecnologia e, agora, Inovação. Poucos sabem dele. Mas é prioritário para nosso desenvolvimento. Não sei, a rigor, se ele tem que virar partido. Como os empreendedores de quem falei na coluna passada, talvez seja melhor que contaminem as diversas forças políticas. Mas tem que fazer-se presente no debate público.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Uma posição empreendedora

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 6/2/2012

Virou gênero literário: analistas políticos acreditam saber, mais que os partidos, o que eles devem fazer. Sei que é pretensioso, mas muita gente o faz. Vamos lá, então. Já insisti, aqui, na necessidade de uma forte oposição democrática - e na inapetência do maior partido de oposição, o PSDB, para o trabalho que isso exige. Ora, vejo ao menos três possibilidades de uma boa oposição no Brasil. A primeira em outros tempos se chamaria liberal, a segunda industrial e a terceira, sustentável. Hoje me deterei na primeira.

Uma oposição liberal deve assumir um princípio essencial do capitalismo: a liberdade que de fato importa, a do indivíduo, se realiza quando ele empreende. A iniciativa de cada um para florescer na vida é da pessoa que chamávamos de empresário, que está sendo substituída pela figura do empreendedor. Empresário é um substantivo - na linguagem corrente, o detentor do capital, que se opõe ao trabalho. Já empreendedor é um adjetivo, quase sempre elogioso. Uma "pessoa empreendedora" extrapola o mundo dos negócios e mexe com todas as dimensões de vida. É quem age com iniciativa e criatividade para modificar sua existência e seu entorno. Em números, o estoque possível de empresários é limitado, ao passo que, em tese, qualquer pessoa pode ter uma atitude empreendedora.

Uma oposição focada no empreendedorismo estimularia, claro, as pessoas a empreender. Este é um projeto econômico, mas que pode ter um foco social. Há cada vez mais empreendedores sociais, que não buscam necessariamente o ganho pessoal. Conheço alguns. Mostram preferências partidárias bem diversas. Há petistas e há quem goste de "Veja". Eis algo positivo: o empreendedorismo embaralha as categorias de direita e esquerda. Cada vez mais prioriza a geração de ativos sociais, em conjunto com os econômicos, isto é: geração de renda e crescimento humano. Uma ONG pode ter outras metas. Mas, para melhorar a vida das pessoas, elas terão que ganhar seu dinheiro. Serão educadas para melhorar de salário ou criar seus negócios. São as duas vias principais, não necessariamente incompatíveis.

A tendência é serem pessoas práticas, que arregaçam as mangas para mudar de vida. Já o lado preocupante é que raramente traduzem a militância social em linguagem política. Se há empreendedores votando à direita ou à esquerda, é porque não converteram sua ação social em consciência política. Sua escolha partidária pouco tem a ver com aquilo a que dedicam a vida. É como se houvesse um abismo entre sua dedicação a um projeto e a tradução dele em proposta para alterar a balança do poder. No dia em que traduzirem sua ação própria em linguagem política, e o fizerem de maneira coletiva, hão de se espantar com sua força.

Como, mais que repetir ideologias, eles têm experiência prática e conseguem melhorar muitas vidas, estão formando um vasto contingente de quadros para dirigir - um dia - a sociedade brasileira. Mas isso depende de almejarem o poder político, o que não está no horizonte; caso se organizem, poderão ser o embrião de uma agremiação poderosa. Enquanto isso não acontece - e talvez nunca aconteça -, exprimem os valores seguintes.

O principal é a autonomia. Cada vez mais se enfatiza que o principal é ensinar a pescar. Iniciativas assistenciais cedem lugar à afirmação dos direitos humanos, sejam eles de natureza econômica ou social: o importante é a luta pela afirmação de uma equidade. Isso é emancipar as pessoas (ou promover seu "empowerment"). Elas devem ser autônomas, para não dependerem mais de ninguém. Doar-lhes coisas é menos importante do que mudar seu modo de perceber a vida. Na esfera econômica, para fazer isto funcionar e crescer, mudanças legais são desejáveis. O Simples é o sistema tributário do empreendedor. Parece bom, barato e simplificado. Mas pode ser ampliado a outras categorias. Mesmo com o Simples, a empresa lida com alguma burocracia - que pode ser reduzida. Mais grave é que a pequena empresa responda por menos de 20% de nossa economia, quinhão bem inferior ao que atinge na Itália e Alemanha (Paulo Feldmann, "Pequena empresa não ganha eleição", Folha de S. Paulo, 20/1/2012). Entraves legais dificultam sua participação em concorrências públicas e a exportação de seus produtos. São questões específicas, de solução não tão difícil, mas que enfrentariam os interesses das grandes empresas, que hoje têm garantia de acesso ao mercado estatal e estrangeiro.

Isso permite uma conclusão curiosa. O empreendedor - ou o pequeno empresário, do qual, simplificando tudo, o aproximei - não precisa de muita coisa. Do Estado, ele quer desburocratização e acesso. Ora, se isso lembra a ética capitalista estudada por Max Weber, por outro lado essas demandas podem ser atendidas por qualquer governo. Ideologicamente, sendo detentor de capital, o empreendedor poderia ser o embrião de um autêntico partido liberal. Mas nada impediria que sua posição fosse atendida pelo próprio PT.

Aliás, a palavra "liberalismo", marcada à direita, parece ceder lugar a "empreendedorismo", mais ampla. O empreendedor está mais para ter uma posição do que ser oposição. Só que nenhum partido lhe dá muita importância. Nem ele mesmo se dá, pois não se torna ator político. Mas, caso se organize, seu caminho poderá estar entre o partido próprio - que não seria de massa como o PT, nem de líderes como o PSDB, mas de uma massa de pequenos líderes - e sua absorção ou cooptação por uma coligação inteligente, que perceba sua importância para o País e integre seus membros para melhorar a gestão do Estado e da sociedade, com ganhos sociais significativos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras