segunda-feira, 4 de junho de 2012

A verdade

Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 28/5/2012 O Brasil sempre lidou mal com sua história. Nossas rupturas não são para valer, mesmo quando deveriam ser. Mudamos tudo para manter tudo como estava, na célebre frase do romance de Lampedusa, "O Leopardo". Ou "façamos a revolução antes que o povo a faça", como disse o governador de Minas Gerais, Antonio Carlos, em 1930. Daí que nossas mudanças fiquem truncadas. Vejamos os grandes acontecimentos de nossa história. A independência foi proclamada pelo príncipe herdeiro de Portugal, a conselho do pai ("Pedro, toma essa coroa antes que um aventureiro lance mão dela"). A abolição foi assinada pela princesa regente do Império. A República foi proclamada por Deodoro, que o imperador fizera marechal. A revolução de 1930 foi liderada por Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda do presidente que ele depôs. A ditadura Vargas foi derrubada em 1945 por Gaspar Dutra, ex-ministro da Guerra do presidente que ele depôs. A segunda ditadura caiu em 1985, colocando na presidência José Sarney, que um ano antes chefiava o partido do regime. Com tudo isso, como "passar o Brasil a limpo"? Cada coisa ruim de nossa história - a colônia, a escravidão, o despotismo, a fraude eleitoral da oligarquia, o golpe militar de 1964 - sai de cena derrotada, mas na hora de mudar não se vai adiante. Não se cobra, não se conserta, não se renova. Não precisamos ter medo da verdade nem da Comissão A Comissão de Verdade é a tentativa, simbólica e mais que simbólica, de ir além disso. O Brasil demorou a criar a sua. Vários países já o tinham feito. Finalmente o fizemos. Pela primeira vez em nossa história, tratamos o passado vergonhoso de maneira consequente. Se ele é infame, por que calá-lo? Se foi repudiado nas ruas, por que não apurar o que ele efetivamente foi? Vá lá uma anistia, mas anestesia e amnésia por quê? O Supremo Tribunal decidiu não rever a anistia autoconcedida pelos mesmos que violaram leis humanas e acima do humano. Mas como perdoar, sem antes saber quem e o que está sendo perdoado? Na verdade, a lógica da Comissão é a mesma da lei do governo FHC, que manda indenizar as vítimas da ditadura. É também a lógica das ações afirmativas, que o Supremo recentemente validou por unanimidade. Em todos esses casos se reconhece que quem mandava no Brasil agiu mal - fosse o regime militar, fosse a oligarquia escravagista. Essa ação má e injusta causou vítimas e danos. Ora, numa linha de ação consistente mas inédita em nosso país, desde a iniciativa citada do presidente Fernando Henrique o Estado brasileiro explicitamente condena a ação má desses grupos e, consequência lógica também nova entre nós, busca reverter os resultados igualmente maus que produziram. Essa a razão, por exemplo, de compensar os afrodescendentes para que seu terrível ônus histórico, que os situou nas camadas subalternas da sociedade, seja temporária e instrumentalmente convertido em bônus. Isso também exige trabalhar a memória. Mentiras e silêncios precisam ser substituídos pela verdade. Uma tradição forte que nos vem da Grécia antiga celebra o bem, o belo e o verdadeiro. Essa trindade de valores deveria andar junta. A verdade sobre o passado exige expor o que nele representa o mal. Só assim produziremos algo do bem. Tratando-se de uma história construída a partir do poder, tem que ser revelado o mal exercido com e pela dominação. Quando passamos, gradualmente, à democracia, a contínua linha histórica baseada na exclusão e na opressão não deve subsistir. Mas não basta distribuir renda. É preciso abrir o pensamento, a compreensão do passado, a construção do futuro. Nada disso se fará com a mentira ou a ignorância. Pessoalmente, não defendo a revisão da anistia. Mas isso porque a verdadeira discussão é sobre a memória. Notem que já esquecemos os presidentes da ditadura. O último governante que lembramos com admiração, antes dos recentes, foi Kubitschek, que a ditadura cassou; antes dele, Getúlio, cuja herança ela quis liquidar. Contra o mal na política, a verdade é o que há de mais precioso. Só precisa ter medo dela quem tem razões para temê-la. É bom separar o joio, raro, do trigo, abundante. Dezenas de milhares de oficiais das nossas Forças Armadas, que nada têm a ver com a tortura, só podem se sentir bem ao se demarcarem da minoria que, um dia, agiu contra a honra da farda. O Brasil ganha, desenvolvendo um processo de mudança consistente, pelo qual não só reduz a pobreza medida em poder de compra mas também, e sobretudo, revisa a fundo os significados atribuídos pela sociedade ao que são liberdade e opressão, crescimento econômico e exploração do outro, florescimento da pessoa e sua escravização ou humilhação. Isso não ocorre só no Brasil. Um século atrás, três por cento da população mundial, se tanto, tinham direitos humanos em ampla escala. Hoje, mesmo não sendo otimista, essa proporção terá passado a trinta, talvez quarenta por cento no mundo. Falta muito. Mas nunca tanta gente - incluindo mulheres, povos de cor, como os chamava Sukarno, minorias comportamentais, como homossexuais - desfrutou de direitos como esses. Essa multiplicação por dez do porcentual de seres humanos respeitados, em cem anos, é um avanço que nunca antes ocorreu - e nunca mais ocorrerá, nessa dimensão. Se e quando todos os habitantes do mundo tiverem reconhecidos seus direitos humanos, o avanço a partir de hoje será uma multiplicação por dois ou três, não por dez, que foi o que conseguimos nas últimas gerações. Ora, para realizar este processo, é preciso acabar com a mentira. Saber o que foram (ou, infelizmente, ainda são) a tortura e a opressão extrema é uma condição para se construir um mundo melhor. Renato Janine Ribeiro - é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras © 2000 – 2012. Todos os direitos reservados ao Valor Econômico S.A. . Verifique nossos Termos de Uso em http://www.valor.com.br/termos-de-uso. Este material não pode ser publicado, reescrito, redistribuído ou transmitido por broadcast sem autorização do Valor Econômico. Leia mais em: http://www.valor.com.br/politica/2678714/verdade#ixzz1woCQxpNL

Popularidade e eleições

Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 21/5/2012 Faltam cinco meses para as eleições, e o quadro é o seguinte. A presidente da República tem forte popularidade. Mas seu partido, o PT, parece ter poucas chances na competição pelas principais capitais. Está fora de cena no Rio e talvez Belo Horizonte. Já em Porto Alegre e São Paulo, pela primeira vez desde que existe o segundo turno (1988), até corre o risco de ficar fora da final. Como conciliar dados assim antagônicos, um favorável e outro contrário ao PT? Comecemos notando que esse cenário desmente os comentários que ouvimos de adversários figadais: tucanos, que acusam o governo federal de mexicanizar o país, querendo abolir toda oposição; petistas, que se regozijam de ver a oposição minguando e já anunciam sua extinção. Nenhum deles tem razão. É verdade que muitos, inclusive eu, pensamos que a principal oposição, a que o PSDB comanda, com apoio do DEM e PPS, está sem muito projeto ou rumo. Mas ela tem votos. Pode ser que, se voltar ao poder, não saiba bem o que fazer. Só que uma parte razoável dos eleitores está disposta a votar nela. Ou seja, nem a oposição morreu, nem o Brasil vai ter um partido só. Como sempre, o exagero não é bom conselheiro. Mas, com todos os riscos que implica uma previsão a quase meio ano das eleições, o que o quadro atual indica para nossa política? Primeiro, que a popularidade presidencial não se traduz automática ou integralmente em votos. Lula foi o presidente mais popular de nossa história, pelo menos desde que esse dado importa - isto é, desde que o povo passou a ser ator em nossa política, o que não aconteceu no Império, na República Velha ou na ditadura militar. Mas, de cada cem cidadãos que o aplaudiam no final de mandato, quarenta não votaram em sua candidata, no primeiro turno, e quase trinta escolheram o rival dela na decisão das eleições. De lá para cá, Dilma superou a frieza com que o povão a recebeu de início e ainda lhe somou o respeito da classe média e rica, granjeando um nível elevado de respeito. Parabéns. Mas isso se traduz em votos? Não é óbvio. Em que prefeituras o PT estará apostando em 2010? Continua havendo uma estranha política em nosso país. Por um lado, o PT governa, na escala federal - mas a partir de um único cargo, o maior da estrutura política brasileira, porém ainda assim solitário: a Presidência da República. Com um vice que não é confiável, isso significa depender demais de uma só pessoa, Dilma Rousseff. O PT é tudo e pode tornar-se quase nada. Por outro lado, as forças políticas minoritárias, que não conseguem afrontar a presidência, mostram os músculos nos Estados e municípios. Mais nos Estados do que nas cidades. Aliás, muitos municípios de tamanho médio passaram para o PT estes anos. Graças à Presidência da República ele as conquistou, à medida que políticas as mais variadas - sociais, econômicas, universitárias - beneficiavam cidades que, antes, se sentiam abandonadas. Mas o PT avançou pouco no plano dos Estados. Hoje ele, que é fraco nos três maiores PIBs, governa o quarto e o sexto, Rio Grande do Sul e Bahia. Mas em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, nem chega ao segundo turno. Uma razão para o semi-isolamento do PT é sua característica de partido que, sem ser extremista, está num dos polos da política brasileira. Ele foi para o centro desde que ganhou a Presidência, em 2002 - mas ninguém com algum peso está à sua esquerda. Por isso, ele não pode jogar um lado contra o outro. O PSDB pode aliar-se com o PMDB ou o DEM. Só não namora o PT. Já este não pode se aliar com o PSDB ou o DEM. Só lhe resta, dos partidos grandes, o PMDB, a agremiação menos definida do país. O próprio PSD, ao dizer seu fundador que não é de direita, de centro nem de esquerda, se mostra um PMDB mais explícito que o original em sua vagueza. Daí que o PT só ganhe eleições quando a polarização das coisas o coloca como finalista, e o êxito de suas políticas no âmbito respectivo cai bem junto aos eleitores. Por isso, ele perdeu governos que conquistara - Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. Por isso, conservou o governo federal e a Bahia. Um esgotamento de material o levou à derrota em Porto Alegre, até então sua vitrina, e dificulta sua volta ao poder naquela cidade. Felizmente, estamos longe do partido único. Mas o caminho do PT é curioso. Até 2002, muitos esperavam uma ascensão gradual do PT: prefeituras, Estados e, finalmente, a Presidência. Lula conseguiu inverter a ordem. Contudo, nas eleições para os Estados ocorridas desde então - 2002, 2006 e 2010 - o PT avançou pouco. Mas prospera nos municípios pequenos e médios (nem tanto nas capitais). No fundo, é aquela mesma estratégia com uma modificação. A mudança foi ter começado pela presidência, que governa a economia e é decisiva para programas sociais. Economia e sociedade afetam diretamente os municípios. Dizia Ulysses Guimarães: as pessoas não moram nos Estados ou na União, mas nos municípios. É neles que a ação do PT mais dá retornos. Na verdade, no Brasil, não sabemos bem o que são os Estados. Não são os componentes originais da Federação. Não foram eles que a criaram; foi ela que lhes deu autonomia. Desde a colônia, a força no Brasil é municipal. As competências legislativas das Câmaras, municipal e federal, são notórias. Já as assembleias estaduais têm menos a fazer. Talvez por isso, conquistar municípios seja uma boa estratégia de longo prazo. Consolida a presidência, dá apoio nas bases, prepara - um dia - a eleição de mais governadores, que são personagens importantes na política nacional, líderes em seus Estados mas, no fundo, afetam menos a vida das pessoas que um bom (ou mau) prefeito. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 14 de maio de 2012

A democracia e a presidência

Autor(es): Renato Janine Ribeiro Valor Econômico - 14/05/2012 Ouvimos com frequência advogados, juristas, políticos e analistas políticos dizerem que, no Brasil, a iniciativa de legislar saiu do Poder Legislativo e foi tomada pelo Executivo. Dizem isso, e o lamentam. Concordo com o diagnóstico, mas nem tanto com o lamento. Há razões fortes, objetivas, para o protagonismo legislativo da Presidência da República. Isso porque, gostemos ou não (eu, pessoalmente, não gosto), em nosso país o Poder mais democrático é o Executivo. Quero dizer: ele é o Poder cuja eleição é mais democrática. Só na escolha do chefe de Estado todos os brasileiros são iguais, todos os nossos votos têm o mesmo peso. Esse fato fortalece a Presidência, aos olhos do povo, e enfraquece o Parlamento. Sim, há outro argumento que é dado para nossa preferência - brasileira, latina ou do continente americano - pelo presidente, em detrimento dos parlamentares. É que nós, sobretudo os latino-americanos, gostaríamos de personalizar a política. Para nós, o nome da pessoa e sua história importam mais que o partido e seu programa. Seria esse, quem sabe, um sinal de nossa imaturidade política. Mas tal explicação, mesmo que parcialmente correta, é insuficiente. Na verdade, a grande ferida de nossa vida institucional é que a forma de composição da Câmara dos Deputados reduz seu peso democrático. No regime presidencialista, que predomina nas Américas, é comum o Parlamento (na verdade, usa-se mais o nome "Congresso") contar com duas casas. Uma delas, a Câmara dos Deputados, dos Representantes ou Câmara Baixa, representa o povo e é renovada integralmente cada tantos anos. Outra, o Senado, tem mandatos longos, conta com membros mais experientes (mais velhos, também, ou, pelo menos, que tenham "senioridade") e representa os Estados, províncias ou até mesmo, em raros casos, outras organizações da sociedade. O Senado, ou Câmara Alta, é ainda chamado de "casa revisora", porque seria menos importante que os deputados. Estes, porque representam o povo, numa democracia são mais significativos. O Senado revisaria decisões dos deputados, mas teria menos atribuições que eles. Só que no Brasil o Senado é mais relevante que a Câmara. Por quê? Insisto: esse fato é estranho, se o poder vem do povo e quem representa o povo são os deputados (o Senado, em nosso sistema, representa os Estados). Acredito que a Câmara se tenha esvaziado porque não representa fielmente o povo e, em parte, imita o Senado. Há um piso e um teto para o número de deputados por unidade da federação, o que achata a representação do Estado mais populoso e exacerba o número de deputados de vários Estados com pequena população. Na Câmara, os brasileiros não são iguais. Uns valem mais que outros. Isso é correto? No Senado, sim. O princípio de nosso Senado é dar igual peso a cada unidade federada. Há um certo elemento artificial e mesmo artificioso nisso, porque, ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil não foi formado pela união de Estados soberanos. Foi a república, desde 1889, que concedeu autonomia às antigas províncias, antes governadas por presidentes nomeados pelo poder central, sediado no Rio de Janeiro. O Senado não deriva da formação histórica do país. Ele é uma criação política, já no Império, que mudou de papel ao longo de nossa história republicana. Mas assim seja: no Senado, faz sentido cada Estado ter o mesmo número de votos. Só que, quando esse princípio de representar os Estados (e não só o povo) se estende à Câmara, esta perde seu significado. Lembremos que a Constituição americana garante, a cada Estado, o "mínimo" de um deputado. A nossa assegura oito... Daí, também, que lá haja Estados com um deputado e dois senadores, isto é, mais senadores do que deputados. Aqui, o menor Estado tem três senadores e oito deputados. Uma Câmara que se senatizou se priva de parte de seu papel. Ela deveria representar o povo ou, se quiserem, o eleitorado. Quando passa a representar o povo com ressalvas, sua missão constitucional se perturba. Vejamos: São Paulo, com 21,5% da população, tem 13,6% dos deputados. Em contrapartida, chegando-se aos Estados menos populosos, a super-representação fica nítida. Acre, Amapá, Rondônia, Roraima e Tocantins, contando com entre 0,3 e 0,8% da população brasileira, têm cada um 1,6% dos deputados. Já o Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Sergipe superam 1% da população cada um, mas ainda estão afastados do 1,6% de que dispõem na Câmara. Essa desigualdade se acentuou com a mudança na Constituição efetuada pelo ditador Geisel, em 1977. Com isso, a Câmara não representa cada brasileiro; representa paulistas, acreanos, mineiros; não é o que devia ser. Imitando (mal) o Senado, ela falta à sua missão e perde a vocação de voz maior do povo brasileiro. Disso, o que decorre? Que, se quisermos ver onde a voz do povo melhor se expressa, é quando escolhe o presidente da República. Não importa quem seja ele ou ela, ou seu partido. Isso valeu para Fernando Henrique e Lula, vale para Dilma e valerá para seus sucessores, se não houver uma grande mudança institucional. Será muito difícil alguém considerar que a voz do Parlamento - ainda por cima, dividido em numerosas legendas - seja mais representativa da vontade popular do que o eleito do voto universal e, sobretudo, igual. Se quisermos que o Parlamento ganhe o poder que deve ser seu, antes de mais nada precisa ser fortalecida a Câmara e, para isso, a principal medida tem de ser fazê-la representar o povo, não os Estados - que, para isso, já têm o Senado. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A Constituição tem um programa

Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 7 de maio de 2012 O Supremo falou: as políticas de ação afirmativa são constitucionais. Elas consistem em tratar desigualmente os desiguais, por um tempo e como meio, para que se consiga um fim fundamental, que é promover a igualdade de direitos entre as pessoas. A unanimidade na decisão é um sinal de que a sociedade brasileira, pelo seu maior tribunal, opta pela inclusão social dos grupos que, ao longo da história, foram discriminados negativamente. Mas vale a pena ver algumas implicações de longo prazo da decisão do STF. Comentei na semana passada que o Supremo dá mais valor a direitos humanos do que aos políticos. Nossos juízes compreendem melhor os direitos que têm pessoas - individuais ou mesmo muitos indivíduos - como titulares do que os que têm a pólis, a sociedade inteira como sujeito: por exemplo, o direito ao que se chama "democracia", o poder do povo. Conta-se que certa vez Fernando Henrique Cardoso teria reclamado de uma sentença do Supremo, má para as finanças governamentais, dizendo que "eles não pensam no Brasil". Mudando o contexto, eu poderia sugerir que os ministros pensam mais nos brasileiros do que no Brasil. Os brasileiros são titulares dos direitos humanos. Estes têm sido tratados com esmero por nossa corte suprema. Já o Brasil é a sociedade democrática que estamos construindo. A esse respeito, o STF parece ter menos convicções. Tolerou, como observei aqui, a concessão de dois governos estaduais a candidatos derrotados nas urnas. Se a reflexão dos ministros desse à questão da democracia a atenção que tem dedicado aos direitos humanos, isso não teria acontecido. Talvez pela mesma razão, salvo erro meu, os ministros não basearam seus votos sobre a ação afirmativa no artigo 3º da Constituição, que define os "objetivos fundamentais" de nossa sociedade. O Brasil assim se propôs em 1988 a "construir uma sociedade livre, justa e solidária" e a "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". Durante os primeiros anos de vigência da Constituição, esses pontos ficaram de lado. O salário mínimo não subia sequer o mesmo que a inflação, contrariando o artigo 7º da Carta, que diz quais necessidades do trabalhador ele deve atender. Mas os "objetivos fundamentais" do país foram se implantando. Por exemplo, é meta do Brasil a integração latino-americana (artigo 4º). Disso, podemos sugerir que o Mercosul e ações análogas sejam imperativo constitucional. Se um governo quiser sair dele sem razões muitíssimo boas, o Supremo poderá impedi-lo. Ou, se tivesse pretendido participar da invasão do Iraque, a corte suprema poderia tê-lo proibido, dado o princípio constitucional da não-intervenção. Não quer dizer que o Brasil não possa travar guerra alguma, nem ter conflitos políticos com os países vizinhos; mas isso teria de ser bem justificado. Nossa Constituição manda erradicar miséria e pobreza Entendo que as ações afirmativas visam a erradicar a desigualdade acentuada. Aliás, a Constituição manda erradicar, não só a miséria, mas a pobreza. Simplificando, é pobre quem vive da mão para a boca. Poupa ou progride pouco. Tudo o que ganha vai para sua sobrevivência. Já o miserável, trabalhando ou sem emprego, corta na própria carne. Alimenta-se de suas reservas físicas. Degrada-se. Está abaixo da linha de sobrevivência. Até se entenderia que a Carta priorizasse o fim da miséria. Mas ela não quer erradicar só esse traço indecente de nossa sociedade. Ela propõe "erradicar a pobreza". A Constituição quer uma sociedade brasileira de classe média. Quando a presidente Dilma disse que esse era seu objetivo, expressava a meta dos constituintes de 1988. Eles não quiseram o fim dos ricos. Mas propuseram o fim da pobreza. Todos devem ter direito de ascender na vida e de, poupando, adquirir bens duráveis. Se o farão, é outra coisa; mas a sociedade deve dar-lhes oportunidade para isso, de modo que, se não o conseguirem, tenham que culpar somente a si mesmos. Exige-se, do governante, que aja para reduzir a desigualdade injusta. É o que fundamenta - e limita - as ações desse tipo. Quando se tornarem desnecessárias, não deverão persistir; mas não antes disso. Assim, se é lícito adotar ações que ampliem a presença social de negros, mulheres e egressos de escolas públicas, por outro lado serão inconstitucionais medidas legais que direta ou mesmo indiretamente aumentem o protagonismo de brancos, varões e formados por escolas caras. Evidentemente, ninguém colocará isso às escâncaras; mas nosso país é perito em subsidiar os ricos e a classe média em programas ditos sociais, que aumentam, em vez de diminuir, a desigualdade. Parece-me legítimo interpretar a parte programática da Constituição de modo a determinar ações dos gestores públicos, em especial, penso eu, a das prefeituras. Há dias, Laura Capriglione informou, no jornal "Folha de S. Paulo", que a Prefeitura de São Paulo gasta "per capita", no Jardim Europa, o dobro do que despende em bairros pobres e necessitados da cidade. A Constituição permite contestar essa política. É até plausível contestar políticas que, mesmo não agravando a miséria, não a minorem. Talvez as consciências ainda não estejam maduras para isso. Mas acredito que em breve, se os poderes eleitos na cidade ou no país não explicitarem políticas de redução da pobreza, sobretudo a extrema, serão cobrados para tanto, pela opinião pública, pelo voto popular e também pelo Ministério Público e o Judiciário. Desde já, deveríamos exigir que cada plano diretor diga como vai melhorar a condição de vida dos pobres. Leis ou atos que aumentem a distância entre quem mora bem e quem mora mal devem ser declarados inconstitucionais. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

O Supremo e a Constituição

Renato Janine Ribeiro Valor Econômico 30/04/2012 Ao tomar posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Ayres de Brito recomendou ler a Constituição todos os dias. Isso vale para quem opera com o Direito e, penso eu, para todos os cidadãos. Muito bem. Mas será bom que os tribunais superiores e o próprio Supremo também sigam a sugestão do novo chefe do Poder Judiciário. Porque decisões importantes do Tribunal Superior Eleitoral, endossadas ou toleradas pelo STF, vão contra o maior princípio de nossa Constituição: a democracia. Há várias teses sobre a democracia. Mas uma delas é fundamental e inconteste. Democracia é, literalmente, poder do povo. Só há democracia se o povo escolher os governantes. É ele, diretamente ou por seus representantes eleitos, quem decide leis e impostos. Ninguém governa democraticamente um país, Estado ou município se não tiver sido eleito. Nas Américas, que adotam o regime presidencialista, os chefes do Executivo são votados diretamente pelo povo. Só em casos excepcionais, como se vagar o cargo perto do fim do mandato, cabe uma eleição indireta para completá-lo. E nessa eleição votam representantes do povo, isto é, pessoas que este elegeu. No parlamentarismo, o povo não elege diretamente o chefe de governo, mas vota em deputados, que elegerão o primeiro-ministro. Também aí, só pode governar quem o povo, em última análise, escolheu. Na democracia, todo poder emana do povo e é exercido em seu nome, como disseram nossas Constituições republicanas, ou diretamente por ele, como acrescentou a Constituição de 1988. A democracia não admite governante não eleito O que não se admite, num regime democrático, é que se dê posse ao candidato derrotado pelo povo. Esse é o fim da democracia. Mas, nos últimos anos, o TSE cassou mandatos de governantes eleitos e mandou dar posse ao candidato derrotado. Em 2009, destituiu os governadores do Maranhão, Jackson Lago (PDT), e da Paraíba, Cassio Cunha Lima (PSDB), dando seus cargos a Roseana Sarney e José Maranhão. O mesmo tinha acontecido em vários municípios - como Mauá (SP), que, depois da eleição de 2004, foi governado por quatro anos pelo candidato perdedor. Debato aqui só os eleitos pelo voto majoritário - presidente, governadores, prefeitos e senadores. No voto proporcional, a cassação prejudica o candidato, mas sua cadeira permanece com seu partido (ou coligação). O voto popular é preservado. No majoritário, a cassação tem o efeito oposto. É um tapetão. Descarta o voto popular. Não sou contra cassação de governantes pela via judicial. Se cometeram crimes graves, percam o mandato. Haverá que medir a gravidade do delito. A cassação deveria valer somente para delitos sérios. Hoje ela está prevista para tantos casos que sua aplicação ou não é aleatória; não há meio termo. Mas essa é uma questão de dosagem jurídica do erro e da pena. O que discuto aqui é mais fundamental: é teórico, é constitucional, é ético. O que ofende a essência da democracia é dar posse ao candidato que o povo recusou. Nenhum tribunal tem, no regime democrático, o direito de inverter a decisão popular. Ele organiza o processo eleitoral. Pode mandar recontar os votos. Pode até anular uma eleição e convocar uma nova. Mas não pode virar pelo avesso a vontade do povo. Nem um tribunal, nem ninguém. Ainda em 2009, o governador de Tocantins também foi cassado. Mas, alegando razões técnicas, o TSE determinou nova eleição - indireta, pois se acercava o fim do mandato e seria difícil uma consulta popular. Foi uma solução correta. O novo governador foi eleito por deputados que o povo tinha escolhido. Teve legitimidade. Talvez o TSE se arrependesse das decisões anteriores. E jamais se atreveria a dar posse a um candidato derrotado em São Paulo, Minas Gerais ou Rio de Janeiro. Mas o grave, mesmo, é que a Corte não percebeu a gravidade do que fizera. Não soube articular teórica e juridicamente o que é democracia. Considero preocupante que nosso tribunal especializado em eleições, bem como o tribunal guardião da Constituição, ignorem em questão tão crucial o que é o significado essencial de democracia. Os defensores dessas sentenças poderiam alegar que o TSE cumpre a lei. Mas leis não podem violar a Constituição. Aliás, com razão, o TSE e o STF debateram - até longamente - a Lei da Ficha Limpa, para que ela respeitasse princípios constitucionais importantes. Talvez nossos juízes entendam melhor os preceitos constitucionais que respeitam os direitos individuais ou pessoais, do que os que dizem respeito aos cidadãos e à coletividade. Sua formação os orienta mais nessa direção. Por isso insisto, neste artigo, no valor da democracia e da república. Não são palavras genéricas. "Democracia" quer dizer que o poder é do povo. "República" quer dizer que a coisa pública não pode ser apropriada por interesses particulares. Basta a Constituição dizer que o Brasil é uma república, para que ações cometidas em flagrante prejuízo do bem comum - nepotismo, concessão de bens públicos em troca de corrupção ou de vantagens pessoais, uso do mandato em benefício próprio - sejam ilícitas. Igualmente, basta a Constituição afirmar o caráter democrático de nossa pólis para que seja errado dar o poder a quem perdeu as eleições. Aliás, a solução para esse problema é bastante simples. Espanta que não tenha sido tomada por nossos tribunais superiores. Casse-se o mandato de quem cometeu o crime eleitoral, com as penas que merecer, inclusive a inelegibilidade. Convoque-se nova eleição, para que o povo escolha novo governante. Dará algum trabalho. Custará dinheiro. Mas custará menos do que ter, como governante, alguém que o eleitorado rejeitou. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Roteiros para Cuba


Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 23 de abril de 2012. Não acredito que a Cúpula das Américas tenha ficado sem um texto final só porque Estados Unidos e Canadá não endossaram a posição, majoritária no continente, sobre a integração de Cuba e a pretensão argentina às Ilhas Malvinas. Afinal, o único país que se importa com as ilhas geladas é a própria Argentina; quanto à ilha tropical, faz tempo que Cuba deixou de ter peso na política do mundo. Hoje, só lhe resta o papel simbólico. Terá servido, se tanto, de pretexto para a maioria manifestar sua irritação com o descaso de Washington por agendas mais substanciais, e para os americanos agradarem aos cubanos da Flórida. Se a reunião prometesse algo importante, a bola não teria sido jogada para escanteio. Mas por que Cuba perdeu o relevo político que foi seu, na época em que vencia os sul-africanos em Angola e Fidel tentava mediar o conflito da Somália com a Etiópia, ambas "socialistas" (assim, entre aspas)? E para onde se orienta esse país? Porque, hoje, a única importância que lhe resta é a que lhe dão os Estados Unidos. Em outubro, fará meio século a crise dos mísseis, que quase levou à guerra nuclear, por conta de foguetes soviéticos com ogivas nucleares em Cuba. Por duas semanas, o futuro do planeta esteve por um fio. Hoje, essa cena parece impossível. Atualmente, conflitos locais permanecem locais. Um atirador louco em Sarajevo não enlouquecerá o mundo. Um assassínio localizado não causará dezenas de milhões de mortes. Melhoramos. Cuba aceitou o capital, desde que sem burguesia Mas o que fazer em Cuba e com Cuba? Vale a pena pensar a respeito. Primeiro, em algum momento acabará o bloqueio. Os Estados Unidos, que não perdoam o momento em que a ilha foi um Davi heroico contra o Golias mau do imperialismo, esperam a saída dos irmãos Castro. Talvez queiram ver humilhado o regime cubano. Mas percebem que, enquanto isso, Cuba abre espaço econômico para o capital europeu. Se os americanos demorarem, Cuba continuará sendo - para eles - só uma foto velha na parede. Talvez doa. Segundo, a restauração do capitalismo parece uma questão de tempo. Em que dimensão, resta discutir. Há vários roteiros possíveis. A depender de Fidel, pouco acontece. O problema não é o capital externo, que ele aceitou - mas a formação de uma burguesia cubana. Para ele, uma burguesia local significaria o fim da pureza ética e a legitimação da ganância. Essa é a questão crucial. Como as coisas escapam gradualmente de Fidel, creio que Raúl prefira um cenário chinês "com rosto humano". Manteria o poder político e policial no partido, abriria o capitalismo, inclusive nativo, tentando conter seu instinto animal - e o rosto humano estaria numa rede de proteção social maior que a chinesa. Sem isso, de nada terá valido enfrentar Golias. Mas como conter uma burguesia cubana dinâmica? Outra via pode estar na restauração do capitalismo, somada à queda do PC. Contudo, embora essa opção possa agradar a Washington, traz problemas. Talvez eu leve a sério o belo romance policial (anticomunista) de Roberto Ampuero, "Falcões da noite", em que a CIA impede um atentado contra Fidel. Porque uma instabilidade aguda numa ilha tão perto da Flórida seria um desastre para os Estados Unidos. Eles estariam para Cuba como a Alemanha Ocidental para a Oriental, após a queda do muro: um lugar rico, onde todos têm o direito legal de ir morar. Ampuero imagina 1 milhão de cubanos fugindo para Miami em dias, com muitos morrendo no mar e outros sobrecarregando a população do Estado. Os americanos têm interesse numa transição controlada. Mas controlada por quem, se não for pelo regime cubano? A questão cubana está cheia de quadraturas do círculo... O discurso público do governo americano, contrário a qualquer concessão a Havana, não expressa exatamente o que seus dirigentes pensam. Washington prefere que nenhum Castro esteja presente, mas seu pior receio é um milhão ou mais de latinos invadindo seu território. E a diáspora cubana? Ela e a comunidade judaica controlam segmentos importantes da política externa americana. Quando Clinton mandou devolver ao pai o menino cubano que foi parar em Miami, sacrificou sua sucessão (houve, também, a fraude eleitoral). A diáspora cubana torna o governo americano refém de seus interesses particulares. Mas será bom a diáspora aumentar o diálogo com Havana. Isso funcionará melhor no pós-Castro, mas também é uma condição para a própria transição. Precisa haver negociações tanto da diáspora quanto de Washington com Havana, para evitar a perda de controle. O pior para os americanos seria uma guerra civil cubana ou a debandada para o Norte. Pode ser que já estejam conversando; mas sempre fica a questão de quem pisca primeiro. Um dia alguém da nomenklatura dirá, como disse nosso ditador Figueiredo sobre os exilados brasileiros, que "lugar de cubano é em Cuba". Esse é um direito essencial dos exilados e seus descendentes. Mas restará negociar quantos, dos cubanos de Miami, poderão e quererão residir e votar na ilha. O regime aprendeu com a queda das ditaduras comunistas na Europa Oriental, mais de 20 anos atrás, e fará tudo para evitar uma reprise desse cenário. Isso inclui evitar que o dinheiro da Flórida compre as primeiras eleições que forem livres - mas também incluirá retirar do Partido e dos Comitês de Defesa da Revolução os próprios públicos que eles possuem e utilizam. Enfim, há parâmetros. O governo comunista pode desabar, o capitalismo voltar, Miami vencer as eleições. Ou o regime pode se abrir, controlando o capital. Entre os extremos, muito pode ser negociado. Quanto mais cedo, melhor. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Apagando os barris de pólvora

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 16/4/2012

Estamos a dois anos do centenário da Primeira Guerra Mundial. Neste período, o mundo mudou a ponto de se tornar irreconhecível. Em 1910, no funeral do rei da Inglaterra, Eduardo VII, os embaixadores francês e norte-americano se incomodaram, porque as carruagens com os representantes das duas repúblicas desfilaram depois das monarquias. As outras potências eram monarquias: Rússia, Áustria-Hungria, Alemanha, Itália. Todas estas, hoje, são repúblicas. Daí a pouco, o Kaiser alemão faria guerra a seus primos que reinavam na Inglaterra e na Rússia. O condomínio monárquico iria cindir-se, na guerra mais cruel e letal até então travada.

Um dos maiores empenhos da diplomacia, no século que se sucedeu a essa tragédia lenta, foi impedir uma nova guerra suscitada por um entrevero local. Porque a Grande Guerra foi isso: um tiro em Sarajevo, na periferia da Europa, matando o herdeiro do trono austríaco, leva Viena a dar um ultimato à Sérvia, que é aliada da Rússia, que o é da França... Em semanas, se mobilizam milhões de soldados que vão matar-se por um episódio que poderia ter sido circunscrito. Circunscrever conflitos se tornou o grande êxito dos diplomatas no século XX. Não foi fácil.

Numa primeira etapa, o empenho dos britânicos e franceses - mas não dos nazistas -em evitar uma segunda guerra mundial enfraqueceu as democracias diante de Hitler. A cada passo do mega-criminoso, os ocidentais buscavam manter a paz. Mesmo quando deram um basta a suas chantagens, ainda houve franceses e ingleses que achavam absurdo "morrer por Dantzig", isto é, lutar pela Polônia contra o nazismo. Eram gatos escaldados pela chacina iniciada em Sarajevo.

Guerras locais hoje não mais ameaçam o mundo

Mas, desde 1945, com a derrota do nazismo e o advento da bomba nuclear, o cuidado de que lutas locais não se globalizem foi decisivo. Leiam jornais de 1950 e vejam o medo que tinham, ocidentais e comunistas, de uma guerra geral, que extinguiria nossa espécie. Cada lado se preparou para enfrentar o outro - às vezes, até sonhando com uma arriscada guerra preventiva. Felizmente, ela não ocorreu.

Houve todo tipo de contribuição para impedir o transbordamento do particular para o mundial. Kissinger, em seu recente "On China", obcecado que era com a ideia de equilíbrio de poder, dá sua versão de como a improvável aliança dos Estados Unidos com a China comunista teria inibido a União Soviética, detendo os projetos agressivos de Brejnev. Este certamente acharia o contrário: suas alianças no Terceiro Mundo teriam contido o imperialismo norte-americano. Mas o resultado foi este tempo melhor, em que hoje vivemos.

Porque um dos êxitos de nosso tempo é que sobraram poucos barris de pólvora de impacto global. A África vive um período difícil, com fomes e guerras calamitosas. Mas nenhum de seus conflitos corre o risco de atear fogo ao mundo. A contenda local mais perigosa continua sendo a que opõe Israel ao mundo árabe e islâmico. Mesmo assim, o Estado judeu tem relações diplomáticas com o Egito e outros países da região. Acredito que esse conflito seja o único com potencial letal para o mundo. Israel tem armas nucleares e, se atacar o Irã, não se sabe em que isso dará. É certo que haverá reações de Estados da região - o mínimo que farão será congelar suas relações com Israel, produzindo um afastamento que não trará bem a ninguém - e atentados pelo mundo inteiro.

O fator preocupante é que os Estados Unidos dificilmente se dissociarão desse eventual ataque. Em 1956, quando Israel, os ingleses e franceses invadiram o Egito, o presidente Eisenhower mandou que se retirassem. Foi o último presidente norte-americano a enfrentar Israel. Obama não fará isso. Portanto, se o Irã for atacado, as respostas se dirigirão contra a única grande potência. Falo de respostas políticas, legítimas, e terroristas, ilegítimas. Os Estados Unidos não serão derrotados, mas haverá estragos enormes, que serão pagos pelo mundo inteiro. Lembremos o que aconteceu depois de 11 de setembro de 2001. Os terroristas não criaram seu emirado islâmico. Mas tornaram o mundo um lugar pior do que era. Aumentou a insegurança. Aumentou o caráter policial dos Estados. Os direitos humanos padeceram.

No passado, a esquerda acreditou que seria bom "desmascarar" a natureza repressiva de Estados que fingiam ser democráticos enquanto oprimiam seus pobres e suas colônias. Mas essa foi uma ilusão. Alguns hoje creem nisso, entre os extremistas islâmicos (que nada têm a ver com a esquerda, quase sempre laica). Mas não é bom romper nenhum diálogo, por exemplo, o de israelenses e árabes. Não é bom um Estado minimamente democrático sacar a "máscara", porque sem liberdade só piora a vida de quem está abaixo na escala social. É um jogo sem vencedores.

Além da região em que está Israel, há hoje só mais um conflito com riscos de se globalizar - o da Índia com o Paquistão, dois países com arsenal nuclear, ainda por cima vizinhos do Afganistão. Mas, desde a guerra de 1971, já se somam quatro décadas de paz, ainda que armada. É de se esperar que as coisas continuem assim - e melhorem.

Para que comentar isso? Para celebrar. Trinta anos atrás, o mundo tinha dezenas de conflitos com potencial para extinguir a vida humana. Diplomatas e governantes reduziram isso em enorme escala. Essas mudanças em boa parte vieram de cima, de quem está no poder. Muitos de nós gostamos de criticar as elites e elogiar o povo. Aqui, o mérito foi de elites sábias, que viram o horror da guerra. Sirva-nos isso de alerta. Será bom pacificar o que resta de perigoso no mundo. Esta deveria ser uma prioridade política - e humana.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Quem perde com Demóstenes

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 9/4/2012

Quem saiu perdendo com a queda do senador Demóstenes Torres? Parece óbvio que a primeira vítima é o partido que ele liderou no Senado. Demóstenes angariou tal prestígio na oposição que, com exagero, seu nome até estava sendo cogitado para concorrer ao Planalto, num fantasioso voo solo do DEM. Mas o Democratas, embora perdendo seu orador mais destacado, foi rápido no gatilho. Em uma semana, afastou-o. De olho nas eleições deste ano, o partido espera ganhar votos com a imagem de uma agremiação que, se preciso, corta na carne. Mas o máximo que ele pode querer é estancar a hemorragia, sem conseguir voltar ao tempo em que tinha boa saúde e, na reeleição de FHC, em 1998, atingia a maior bancada de deputados federais. Talvez o episódio precipite o fim do DEM, que se incorporaria a outro partido, provavelmente o PSDB.

Quem mais perde, com as denúncias éticas contra o senador, é a oposição e sua estratégia principal. Os partidos oposicionistas se dedicaram, desde o segundo ano de Lula na Presidência, a acusar o governo federal de corrupto. A certa altura, a estratégia aparentou dar certo. José Dirceu foi cassado. Em meados do primeiro mandato, Lula parecia estar ameaçado. Até se sugeriu que o PSDB o pouparia da vergonha de um "impeachment"; em troca, Lula renunciaria a postular a reeleição, em 2006. Hoje, essa hipótese parece insensata. Lula conseguiu uma popularidade invejável. As duas eleições presidenciais realizadas em sua administração consagraram sua liderança. O impacto das denúncias de corrupção contra o governo se reduziu significativamente. Elas ainda mobilizam certos setores da sociedade, em especial a classe média e, sobretudo, em São Paulo. São fortes na imprensa de oposição. Pouco mais que isso.

O PT coloca a oposição na defensiva ética

O episódio do senador Demóstenes é, na verdade, o ponto culminante de uma reversão de curso. Por vários anos, acusações de corrupção choveram contra o PT e seus aliados. Desde o ano passado, porém, elas se têm dirigido também contra a oposição. Deixo claro, desde já, que não avalizo nenhuma denúncia; sei que há órgãos com a competência, ou jurídica ou técnica, para saber quais procedem e quais não. Não é meu caso. Apenas posso notar o impacto das acusações sobre a opinião pública. Ora, o fato é que na campanha de 2010 a candidata Dilma Rousseff acusou de malfeitos um antigo executivo do Rodoanel, em São Paulo; depois, saiu o livro "A Privataria Tucana", que acusa o ex-governador José Serra de envolvimentos ilícitos; e, agora, vemos cair o senador de Goiás, que era a voz mais ativa da oposição no Parlamento. Evidentemente, os acusados se declaram inocentes. E podem sê-lo. Mas assistimos a um movimento que antes não existia. De 2004 a 2009, a oposição reinou sozinha nas denúncias de corrupção. Nos últimos dois anos, porém, a esquerda começou a acusar líderes tucanos e demistas. A queda do senador é o efeito até agora mais claro dessa mudança nos papéis de acusador e acusado.

Ou seja, durante uns cinco anos, os defensores do governo evitavam a questão da corrupção. Esta, que fora tema essencial do PT na oposição, tornou-se assunto delicado, para ele, uma vez no governo. Desde o caso de Waldomiro Diniz - ironicamente, tendo como interlocutor o mesmo Carlos Cachoeira que hoje é a chave do noticiário contra a oposição - os partidos governistas minimizaram a importância da corrupção, contestaram as intenções de quem a denunciava, disseram que todos faziam isso e/ou encontraram suas causas nos modos de financiamento das campanhas políticas. Desses argumentos, o que aponta os vícios de nosso sistema partidário pode ser correto. Mas todos eram alegados com incrível mal-estar. Contudo, no último ano, os partidos do governo obtiveram munição para discutir no próprio campo adversário. Saíram da defensiva e passaram ao ataque. Nos primeiros embates, não chamaram maior atenção. A oposição continuou a denunciar, satisfeita de encontrar nos ministérios alvos que não eram cândidos. Porém, desde o livro do jornalista Amaury Jr., a situação começou a mudar. Repito que não endosso suas palavras. Apenas observo que o PSDB ainda não aproveitou a chance de responder sistematicamente a seus ataques, com uma refutação, item por item, cabal, do que ele disse.

O livro em questão pode ser contestado. O incontestável é a proximidade do senador com uma pessoa que os jornais não se pejam de chamar de criminoso. Essa se torna uma vitória dos partidos governistas no campo mesmo para o qual a oposição levou o debate político, o da corrupção nos negócios públicos. O que exige, da oposição, que tente devolver a discussão sobre os rumos do Brasil para projetos de país. Se assim agir, o escândalo terá feito bem a nossa vida política.

Contudo, não se pode dizer que o lado governista ganhou a contenda. Venceu a batalha, mas a guerra... A má fama dos políticos acaba afetando a todos. Converso muito com pessoas que não conheço, das mais variadas classes. Mesmo que eu não levante a questão política, ela surge. Noto um descontentamento com todos os partidos. Na verdade, a acusação de corrupção domina quase toda a vida republicana no Brasil. A República Velha, Getúlio, a democracia de 1946, a ditadura militar e a democracia de 1985, todas elas, tiveram por mais constante tema de crítica política a corrupção. Houve algumas exceções. A mais recente foi o PT, até chegar ao poder e, navegando em seu vácuo, o PSDB, também até a Presidência. Desde então, vivemos num país desapontado com os políticos e, em decorrência, com a política. Essa, a derradeira má contribuição do senador Demóstenes: deixar-nos ainda mais blasés.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O PT em risco

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 2/4/2012

A política do PT para o futuro depende do cargo de Dilma Rousseff e da disposição de Lula. A saúde do ex-presidente é essencial para ele continuar atuante na política; isto é óbvio; menos óbvia, mas real, é a dependência de seu partido em relação a ele. E a Presidência da República é o que garante, ao partido, a liderança na política brasileira, ante o risco que representam, não tanto o PSDB, mas cada vez mais os aliados PMDB e PSB. Os dois são capazes e talvez dispostos, a um sinal de fraqueza do PT, de abrir fogo amigo sobre ele.

Na verdade, o PT sempre dependeu muito de Lula. O partido mais de massas de nossa história contou e conta com um líder cujo carisma tem raros paralelos na mesma história. Aquilo, no PT, que é articulado, organizado e racional se equilibra com o fator emocional, não racional (o que não quer dizer irracional), que está no impacto afetivo do ex-presidente sobre a maioria dos brasileiros. Mas agora o papel de Lula é diferente do que teve no longo preparo para chegar ao poder. Isso porque o PT faz alianças. E quem as concebe, articula e assegura é, justamente, Lula. Mais, até, do que sua sucessora.

Hoje, o futuro do PT está em suas alianças. Mas durante metade de sua vida o PT foi avesso a elas. Porque representam compromissos. Ele, um partido diferente de todos os demais, só as admitia quando fossem em seus próprios termos. Por isso, seus aliados eram partidos pequenos, como o PCdoB. Contudo, entre a derrota de 1998 e a vitória de 2002, Lula decidiu que, para chegar ao poder, era preciso aliar-se a partidos maiores. O PT teria que ceder-lhes mais do que fazia. Isso demorou a se tornar realidade; em 2002, o PMDB se coligou com José Serra e, em 2006, não apoiou ninguém. Mas, com o tempo, alianças se efetivaram. Não há nada de errado nelas. Uma política democrática exige negociações, acordos, concessões. O problema maior em nossa vida política é que um estoque razoável de partidos e políticos apoiará qualquer governo, de direita ou de esquerda, desde que lhes seja vantajoso. Sem os votos desse "centrão", não haverá maioria parlamentar. Portanto, simplesmente para que o governo governe, ele precisa ceder. A menos que alteremos a Constituição, assim é e assim será.

Lula esvaziou o PT deliberadamente nos Estados

O problema imediato não é este, que para mudar exigiria uma reforma constitucional quase impossível de se aprovar. O problema próximo de nós é que essas alianças dependem de Lula - e, agora, de sua saúde. Vejamos. Em 2002, o PT venceu o pleito presidencial, em parte porque o governo de FHC findou em crise, em parte porque Lula se moderou e se cuidou. Mas, nos Estados, o PT teve desempenho pífio. Elegeu poucos governadores, nenhum deles em Estado importante. Foi uma surpresa que o PT chegasse à Presidência antes de eleger número razoável de governadores, mas este podia ser apenas um acaso. A situação, porém, repetiu-se em 2006. Consolidou-se um padrão. Já em 2010, Lula nem tentou mudar esse quadro. Surfou nele. Simplesmente abriu mão de candidaturas petistas ao governo de vários Estados e ao Senado, em prol de alianças que construiu, sobretudo com o PMDB e o PSB. O resultado foi quase triunfal. O PSDB se esvaziou no Senado e perdeu governos. Conservou São Paulo e Minas Gerais, as principais unidades federadas, mas no resto do país se enfraqueceu. A oposição tradicional (chamo-a assim, porque ainda creio que possa haver uma oposição nova, verde, defensora de uma economia sustentável) está quase mais forte em parte da imprensa do que entre os eleitos. Quase.

O que comprova a tese de que essa foi uma decisão consciente de Lula - esvaziar candidaturas do PT nos Estados para esvaziar possíveis vitórias do PSDB - é que, enquanto isso, o PT avança nos municípios. A cada eleição, faz mais prefeitos. Continua sendo um partido forte. Basta ver que dificilmente perde - ou ganha - parlamentares. Poucos são os eleitos pelo PT que deixam o partido. Raros são os eleitos por outra agremiação que migram, no exercício do mandato, para o PT. Essa é uma solidez, na entrada e na saída, que poucos partidos demonstram em nosso país.

Mas, se ele assim progride no âmbito municipal, sua fraqueza estadual o deixa vulnerável. Quem monta as alianças, com seu carisma, é Lula. O que as assegura é o fato de estar Dilma Rousseff na Presidência da República. Se Lula não continuar atuando, as alianças se irão. Se o partido perder a chefia do Executivo federal, idem.

Em outras palavras: o Brasil tem curioso equilíbrio dos Poderes. Não é só o americano, entre Executivo, Legislativo e Judiciário - embora esse exista, e as derrotas do governo no Congresso mostrem que funciona. Mas o principal é o equilíbrio de forças: o PT tem o Poder Executivo na União, enquanto o PSDB continua forte, governando os dois principais Estados e, por seu peso em parte da mídia, mantendo a hegemonia ideológica. O resto está essencialmente com PMDB e PSB. Isso significa que, se em 2014 os tucanos ganharem a Presidência, pouco restará ao PT. Neste caso, a política que Lula comandou, no sentido de aliar-se com partidos de centro, terá deixado frágil o PT, porque sem a Presidência que poder terá ele? Um sinal disso é a situação vulnerável em que ficou o partido na cidade de São Paulo. Tudo ainda pode mudar mas, por enquanto, a tão decantada intuição de Lula, ao escolher Fernando Haddad como candidato por ser um nome novo e de pouca rejeição, não deu certo. Pior, a tentativa de forjar uma aliança com o prefeito Kassab custou caro em credibilidade, a Lula e ao PT. Talvez fosse bom o PT não depender tanto de um líder e de um cargo.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 26 de março de 2012

A "ética" dos corruptos

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 26/3/2012

É ético um jornalista usar câmaras secretas para comprovar um crime que, depois, ele irá denunciar? Não discuto, aqui, a legalidade de sua ação, porque não tenho a formação jurídica necessária para me pronunciar sobre as leis e jurisprudência cabíveis no caso. Mas a questão adquire relevância diante do fato que movimentou a sociedade brasileira na semana que passou: a revelação, em imagens incontestáveis, de uma rede de corrupção atuando justamente nos hospitais - o que torna particularmente desumano o crime, porque está sendo cometido contra pessoas especialmente vulneráveis. Isso, além de ser uma área em que cronicamente falta dinheiro, até porque os custos com a saúde costumam subir mais que a inflação, em parte devido aos grandes avanços que a medicina tem conhecido.

O que é flagrante é a falta de ética das pessoas que vimos no "Fantástico" e no "Jornal Nacional". Os corruptos (vou chamá-los assim, embora tecnicamente não o sejam, porque não são servidores públicos) não mostraram nenhum pudor. Imaginando-se a salvo, foram francos. Duas afirmações me chocaram em especial. Primeira, quando uma senhora diz que está praticando "a ética do mercado". Mas o que ela faz não é nada ético. A não ser, claro, que use "ética" num sentido apenas descritivo, como quando se diz que a "ética do bandido" é matar quem o alcagueta, ou que a "ética do machista" é assassinar a esposa suspeita de adultério. Contudo, um dos ganhos dos últimos anos tem sido a redução desse emprego da palavra "ética", só descritivo. Cada vez mais, entendemos a ética como prescritiva, normativa, como exigente - não como a mera descrição de condutas praticadas em alguma área da ação humana. Uma expressão de Claudio Abramo, frequentemente citada pelos profissionais da imprensa, é significativa: "A ética do jornalista é a mesma do marceneiro, de qualquer pessoa".

Educando os filhos para também serem corruptos

Na verdade, até esperei, depois dessa frase sobre "a ética do mercado", que "o mercado" reagisse de alguma forma. Se ela dissesse que essa é a ética dos médicos, as associações não iriam protestar? É claro que "o mercado" não é um sujeito. Aliás, sua riqueza e eficácia estão, justamente, em ele não ser um sujeito único, mas uma rede em que se cruzam e medem inúmeros sujeitos. No entanto, aqui se coloca uma questão crucial, sempre presente quando se trata do capitalismo. Brecht tem a frase famosa: "O que é roubar um banco, em comparação com fundar um banco?" O capitalismo sempre esteve assombrado pela diferença entre o lucro obtido legítima e legalmente, e o que é extorsão, usura, roubo. Na Idade Média, a igreja cristã condenava a usura, dificultando as operações de financiamento. Por outro lado, com o capitalismo já consolidado, no final do século XIX um grupo de grandes empresários norte-americanos era chamado de "robber barons", barões ladrões, tal a sua desonestidade. Contudo, o mesmo capitalismo cresce graças a uma ética extremamente forte, que Max Weber, num livro clássico, aproximou do protestantismo. Na verdade, a distinção entre o lucro e a extorsão é crucial para o capitalismo. Um dos desafios para ele funcionar, e em especial para se tornar popular, é convencer a sociedade de que seu compromisso ético - com a construção da riqueza pelo trabalho e o esforço - supera seus deslizes, os quais serão rigorosamente punidos. Ou seja, "o mercado" precisa reagir. O debate sobre esse caso não pode ficar circunscrito à área política. "O mercado" foi injuriado, tem de responder.

O outro ponto assustador foi quando um dos personagens gravados disse que sempre ensinava a seus filhos a virtude da solidariedade. Disse isso com outras palavras, mas ele considerava digno de educar seus filhos na formação de quadrilha. Aqui, estamos diretamente na ética do crime. Mas, se na frase da senhora sobre o mercado podíamos ver alguma ironia ou resignação ("a vida como ela é"), na frase desse senhor se ouvia algo mais grave: a educação dos filhos, a construção do futuro segundo a ótica do criminoso. Uma coisa é resignar-se ao mundo como está e operar dentro dele. Outra, pior, é entender que ele não vai melhorar e, portanto, a melhor educação que se deve dar aos pequenos é ensiná-los a serem bandidos. Aqui, a tarefa afeta, em especial, os educadores profissionais, como os professores, e a multidão de educadores leigos, que são os pais e todos os que cuidam de crianças. Mas, antes mesmo disso, ela passa por uma pergunta cândida: podemos melhorar, em termos de sociedade, no que se refere ao respeito da lei e dos outros? É possível convencermo-nos, e convencermos os outros, de que seguir os preceitos éticos é absolutamente necessário? Ou viveremos nas exceções? E isso diz respeito a todos nós.

Ocorreu-me, uma vez, que no Brasil a lei tem papel mais indicativo do que prescritivo. Explico: todos concordamos que se deve parar no sinal verde - e a grande maioria o faz. Mas a pressa, o fato de não estar vindo um carro pela outra via, a demora no sinal "justificam" eventualmente passar no sinal vermelho. A lei deixa de ser lei para se tornar uma referência, apenas; ou, pior, algo que espero que os outros respeitem absolutamente, mas que infringirei quando me achar "justificado" a fazê-lo. Guiando desse jeito, vários pais mataram os próprios filhos - e isso continua acontecendo. Não precisaremos fortalecer, enquanto sociedade, a convicção de que para um bom convívio é preciso repudiar fortemente essas duas frases que, na sua euforia, os dois personagens pronunciaram sem saberem que estavam sendo gravados? Enquanto isso, obrigado aos repórteres que denunciaram esse crime.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 19 de março de 2012

Melhor que os Estados Unidos

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 19/3/2012
O Brasil está melhor que os Estados Unidos, na qualidade de sua democracia. Afirmei algo absurdo? Não. A democracia com maior continuidade na história, a única que jamais suspendeu uma eleição nem conheceu um golpe de Estado, infelizmente vive hoje, a cada quatro anos, o pavor de que a barbárie triunfe. Ou como chamar uma linha política que, como fazem os dois principais aspirantes republicanos à Casa Branca, quer desestimular os jovens de estudar nas melhores universidades que existem? No Brasil, seria inimaginável Dilma - ou Serra - dizer alguma das enormidades em que a extrema-direita norte-americana acredita. (Mesmo assim, devemos tomar cuidado com os extremistas religiosos, que têm peso no Congresso para sua luta retrógrada).

Tentemos explicar esse fenômeno. Sustento que a estabilidade democrática depende de que a grande maioria de uma sociedade vote em partidos comprometidos com a democracia - não só com a forma eleitoral dela, mas também com os direitos humanos e com essa suma da ética política, que se resume em respeitar o outro. Só que essa condição não é tão simples assim. Sua aplicação traz resultados que surpreendem.

Numa democracia, primeiro, as questões polêmicas devem ser decididas em eleições livres. É óbvio. Segundo: no mundo moderno, se entendeu que é bom haver partidos. As tentativas de construir um regime democrático que dispense essas organizações - investindo na participação direta dos cidadãos - não deram certo, pelo menos até hoje. As democracias realmente existentes se organizam em partidos, que competem pelo poder.

A direita ameaça a democracia norte-americana

Essa competição geralmente dá certo. Mesmo um partido que parece firme no poder não tem garantias de conservá-lo por muito tempo. Depois que o PSDB venceu em 1994, seu líder Sergio Mota falou num projeto de vinte anos no poder. Ficou oito. A alternância eleitoral existe na maior parte dos países democráticos - Alemanha, França, Itália, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos.

Mas o que sugiro como condição adicional para a democracia é que os partidos ou coligações que reúnem a grande maioria dos votos tenham convicções democráticas. É importante eles assumirem certos valores, em seu programa e prática, que estabilizem a sociedade. O primeiro é o da liberdade de expressão, organização e voto. O segundo é um fator recente, componente essencial das novas democracias, as que cresceram no Atlântico Norte com a guerra contra o nazismo, e na América Latina desde a queda de suas ditaduras, nos anos 1980: o empenho em eliminar a miséria e reduzir a injustiça social e a pobreza. O primeiro conjunto de compromissos garante a manutenção da forma democrática. Mas daí decorre o segundo conjunto, que se refere ao conteúdo da democracia. Esta não existirá se as pessoas não tiverem educação para tomarem decisões autônomas, em vez de repetirem a palavra alheia como papagaios; se não contarem com um mínimo de renda graças ao trabalho para serem livres em suas escolhas, inclusive políticas; e se não contarem com uma formação cultural que amplie seus horizontes. Daí, podem chegar quer a uma visão cooperativa, solidária e socialista, quer a uma atitude liberal, empreendedora e competitiva. Essa escolha, ninguém fará por elas. Mas ambas estão dentro da esfera democrática.

Ora, como fica o mapa mundi disso tudo? O Brasil se sai bem. Nas eleições presidenciais de 2010, votamos esmagadoramente em candidatos do campo democrático. Nenhum deles liquidaria as liberdades. Todos as ampliariam. Evidentemente, cada um o faria a seu modo, mas está errado dizer que algum deles poria em risco a democracia. O mesmo podemos afirmar quanto à Alemanha e ao Reino Unido. Já no tocante à Itália, não. O polo político de direita, representado por Berlusconi, tem constituído constante ameaça ao Estado de Direito naquele país. Na França, as políticas do presidente Sarkozy, copiando as medidas xenófobas da extrema-direita, afetam negativamente seu compromisso com a democracia.

Mas o caso mais grave é o dos Estados Unidos. Desde que os republicanos se tornaram reféns de extremistas, uma vitória de seu partido representa um pesadelo para a democracia. Basta ver o desastre que foi a administração de Bush 2.0. Deu presentes, por sinal desnecessários, aos mais ricos. Iniciou duas guerras. Construiu déficits cada vez maiores. Desregulou as finanças. Tecnicamente, foi um governo ruim, mas no plano dos valores foi ainda pior. Guantánamo é seu emblema.

Estamos melhor que os Estados Unidos? Neste plano, sim. Na pujança da economia, não. Mas a forma pela qual um povo concebe seu futuro tem muito a ver com os valores que se debatem na praça pública. Não espanta que o Brasil esteja se dando bem nas pesquisas sobre a felicidade. Na medida em que a política concorra para isso, nosso país pode ter razoável segurança de que nenhuma de suas principais forças políticas ameaça as liberdades básicas, nem proporá um recuo nos projetos sociais desenvolvidos neste novo milênio.

Esta é uma grande mudança para o país, em face do que vivemos até 1994 em escala nacional e, no Estado e na cidade de São Paulo, até que o malufismo deixou de ser protagonista. As últimas eleições em que a direita que apoiou a ditadura se mostrou competitiva, chegando ao segundo turno, foram em 1998, para o governo do Estado, e em 2000, para a prefeitura da capital. Assim, desde 1994 ela não chega à reta final para a Presidência, desde 2002 para o governo do Estado mais populoso e desde 2004 para a prefeitura da maior cidade. Hoje, nossos principais antagonistas políticos têm credenciais democráticas.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 12 de março de 2012

Da ética e da política

Por Renato Janine Ribeiro

Valor Econômico, 12/3/2012

No ano que vem, "O Príncipe", de Maquiavel, completará meio milênio de sua primeira difusão em manuscrito. Nesses cinco séculos, a questão mais importante sobre a ética tem sido: como acontece que ela não seja suficiente? Quais são seus limites? O que fazer quando a ética não nos orienta sobre a ação que podemos julgar correta? Maquiavel e os utilitaristas provavelmente são quem mais elaborou essa questão, mas no século XX ela recebeu tratamento sofisticado, entre outros por pensadores do quilate do sociólogo Max Weber ou dos filósofos Merleau-Ponty e Isaiah Berlin. Nosso ex-presidente Fernando Henrique Cardoso citava Weber em profusão, quando discutia as fronteiras entre sua atuação como cientista social e como político. Num caso se procura conhecer; no outro, agir. Weber também servia a FHC para explicar por que este não fez tudo o que prometeu ou quis. O presidente sociólogo assim popularizou, entre nós, termos como ética de princípios e ética da responsabilidade.

Tendemos todos a concordar quanto a alguns preceitos éticos fundamentais: não matar, não furtar, em suma, não prejudicar o outro. Mas podemos divergir sobre o que eles significam. Por exemplo, "não matar" é apenas não tirar a vida de outra pessoa? Ou podemos matar outras pessoas por omissão, se não acudirmos alguém ameaçado por um agressor ou não socorrermos um faminto? Num caso, para eu ser ético, basta não fazer mal algum. Não preciso fazer o bem. É suficiente não fazer o mal. Não fiz nada de errado. Mas desta maneira terei feito o que é certo? Talvez não. Porque a ética é exigente. Nunca serei ético comodamente. A ética me incomodará. A ética exigirá que eu lute contra a fome. E quando começo a pensar desse modo, não paro mais. Para ser ético, precisarei dar comida a quem está esfomeado? E bastará isso, se eu não batalhar pela adoção de políticas contra a fome? E essas, serão eficazes ou contraproducentes? Esse é um ponto essencial da discussão ética. Ela é interminável. Não visa a nos confortar. Está aí para nos questionar. Se não o fizer, será falsa. Uma ética confortável é apenas um álibi.

Mas a discussão importante sobre a ética não é apenas sobre o que ela diz ou orienta, e sim sobre o que ela não pode dizer nem orientar. Há pelo menos cinco séculos que os observadores mais atilados da condição humana sabem que muito se faz à margem, ou mesmo contra, a ética. Maquiavel, tão mal entendido, percebeu que a ação política obedece a uma lógica diferente da moral, digamos, privada ou cristã. O pensador liberal Isaiah Berlin diz: Maquiavel não é anti-ético. Ao contrário, ele é um filósofo da ética: uma ética da cidade, da política, uma ética da vida neste mundo. Berlin a considera uma ética pagã, greco-romana. E por isso, em seu prefácio à edição brasileira d'O Príncipe, FHC apresenta Maquiavel como um cientista político de excelente qualidade, não como quem acharia que os fins justificariam os meios (o que, por sinal, ele nunca disse). Dizer as coisas como são, não como fantasiamos ou desejamos que seriam: isso é lucidez.

A ética vira arma vil num debate que esconde sua natureza

O que a ética não pode dizer é, exatamente, o que é mais difícil na vida social e política. Os dez mandamentos cristãos, ou outros princípios éticos, podem orientar em boa medida a vida privada de muita gente. Mas, quando passamos à vida coletiva e em especial quando o demônio do poder entra em cena, eles não dão conta. Os utilitaristas, como Jeremy Bentham, trataram disso com franqueza brutal. Exemplo célebre: seria justo matar uma pessoa para salvar cinco? Na falta de critérios absolutos, revelados por uma suposta divindade, cada vida vale o mesmo que outra. Cinco vidas valem mais que uma. Então, se para o Brasil prosperar é preciso avançar o sinal ético na privatização ou na obtenção de maioria no Congresso (por hipótese), o preço é nojento, mas pequeno. O bem comum assim causado supera de longe os danos.

Quais os problemas, nessa questão? São dois. Nunca se tem certeza de que o que chamamos de bem comum é, realmente, bom. Não há consenso a respeito. Uns aplaudem a privatização, outros não; o mesmo quanto aos sucessos do governo Lula. Os males causados podem ser tangíveis, reais. Mas há divergência sobre o bem comum que terão produzido. Este é o primeiro problema. Na política, não há certezas. Causamos males, indubitáveis, em troca de um bem maior, mas inseguro. Pagamos o preço, mas ganhamos algo em troca? Não sabemos.

O segundo problema é mais grave. É que na política se age como descrevi, mas isso não se discute. Um silêncio terrível paira sobre a generalização da corrupção - no mundo todo. Qualquer observador atento sabe que, na era do marketing, mais e mais dinheiro é preciso para as campanhas eleitorais. Papel vem de árvores; dinheiro, não. Vem de cofres públicos. É difícil um partido fazer sua campanha sem tais meios heterodoxos. Essa corrupção deve ser generalizada, porque todos os partidos necessitam de fartos recursos para suas campanhas. Mas é fácil usar esse fato seletivamente. Acuso o partido de que não gosto. É muito provável que o meu tenha agido da mesma forma, mas sobre isso me calo. Daí que a ética vire arma vil num debate que esconde sua real natureza política. Mas essa realidade sempre existiu; e a questão foi formulada há cinco séculos, por Maquiavel. O que fazer quando a ética usual, a do não-matarás, não basta para nos orientar? Seria melhor discutir isso, expor isso, quem sabe respondê-lo, do que manipular a ética e enganar os ingênuos. Em 2013, "O Príncipe" completa 500 anos. Quem sabe ser honesto e abrir o jogo seria um bom modo de celebrar a data?

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 5 de março de 2012

A eleição como surpresa

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 5 de março de 2012
Estas eleições prometem muito suspense. Para dizer a verdade, a campanha para as municipais de 2012 começou a soltar adrenalina, e muita, com um bom ano de antecedência. A rigor, ainda não sabemos quem vai ganhar - às vezes, nem quem vai disputar - as eleições na maior parte das capitais. Aliás, a ansiedade é uma constante em nossas eleições, excetuando talvez as duas vitórias de Fernando Henrique, em 1994 e 98. Hoje, a novela paulistana é exemplar desse ritmo de surpresas.

Primeiro ato: Lula intervém, afasta a aspirante mais popular do PT, Marta Suplicy, e emplaca Fernando Haddad. Foi uma ação surpreendente, mesmo que ela possa encontrar uma justificativa, que estaria em Haddad sofrer menor rejeição do que Marta e, portanto, ter talvez maiores chances de vencer. Segundo ato, o mais surpreendente até agora: o prefeito Kassab se distancia do aliado PSDB e negocia com o PT. Isso espantou, mas também há lógica nesse curioso minueto. Afinal, Kassab disputou as eleições municipais de 2008 com o atual governador do Estado, Geraldo Alckmin, e desde então eles se estranham. Mesmo assim, foi paradoxal ver uma aproximação do Partido dos Trabalhadores com um político de origem na direita, tanto assim que as bases do PT, já incomodadas com a intervenção de Lula na escolha do candidato, quase se rebelaram contra uma aliança tão "contra natura". Terceiro ato: a entrada de José Serra na disputa, pondo fim às negociações do prefeito paulistano com o PT. Serra não queria a prefeitura e deixara isso claro, a ponto de serem programadas prévias somente por essa razão - mas mudou de ideia. Essa foi, porém, a menor surpresa das três: foi a única saída para sua família política continuar governando a maior cidade do país, e para ele se manter na posição de grande nome do PSDB.

Desde 89 elegemos só presidentes improváveis

Três atos, disse eu, um para cada surpresa; na era clássica, ou seja, nos séculos XVII e XVIII, as peças de teatro tinham cinco atos. Hoje, têm um, dois ou três. Ninguém aguenta mais tanto intervalo... Só que nas eleições deste ano vamos ultrapassar os cinco atos de Racine e Molière. Em outras palavras: eleições, no Brasil, reservam muitas surpresas. Acredito que em nosso país a dose de imprevistos numa campanha eleitoral seja maior do que em países nos quais as preferências partidárias ou políticas dos eleitores estão consolidadas ou, se assim preferirem, engessadas. Embora nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, França, Itália, Alemanha e Espanha não seja raro uma eleição trocar o partido que está no governo, o porcentual de eleitores que mudam de opinião não é dos maiores. Já no Brasil, ele pode ser bastante elevado.

Lembremos as eleições presidenciais desde 1989. Escolho esse período, porque ele é o único marcado pela constância da democracia em nossa história. Na República Velha, as eleições eram fraudadas; depois disso, passamos por duas longas ditaduras, a de Vargas e a dos militares; e, na fase democrática de 1945 ou 46 até 1964, vivemos boa parte do tempo sob a ameaça de uma intervenção armada, que por sinal acabou ocorrendo. Mas, desde que a democracia começou a se consolidar entre nós, em 1985, um dado interessante é que somente se elegeram para a presidência da República candidatos improváveis. Poucos sabiam quem era Fernando Collor dez meses antes de ele se eleger. FHC, intelectual sofisticado, parecia o exemplo de quem jamais conseguiria falar ao povo. Seguramente, ele não se elegeria sem o Plano Real. Delfim Neto dizia que até "um poste" venceria Lula em qualquer eleição. Difícil lembrar, hoje, o quanto Lula era temido e rejeitado. Já Dilma era considerada uma tecnocrata, jamais disputara um pleito e não aparentava ter maiores dotes para a comunicação política. Em contrapartida, nenhum dos nomes óbvios - Ulysses Guimarães em 1989, Mário Covas em 1994, José Serra depois - chegou a presidente do Brasil. Parece estar em nossa tradição democrática - curta, mas creio que consolidada - a eleição como surpresa.

Essa situação tem um aspecto positivo. Nosso eleitorado não é "blasé". Ele é capaz de mudar de ideia, conforme os rumos da campanha. Sim, ele pode ser conquistado por golpes baixos, como quando Collor acusou Lula, em 1989, de tentar induzir a ex-namorada a fazer um aborto - ou, nas últimas eleições, quando de novo o aborto serviu de arma eleitoral. Mas também decide o voto com base no interesse, como aconteceu quando o plano Real domou a inflação, ou quando o governo Lula promoveu uma maciça ascensão social das classes D e E para a classe C.

Ou pensemos no eleitorado, tal como está representado na Câmara. Nossa política tem dois polos, o PT, com 88 deputados eleitos em 2010, e o PSDB, com 54. Partidos de convicções firmes são esses dois, mais o DEM, o PCdoB e o PSOL. Talvez o PPS. Somados, têm uns 200 deputados, num total de 513. Quase todas as demais agremiações, inclusive a segunda maior, o PMDB, com 79 representantes, carecem de convicções tão firmes - isto é, podem apoiar qualquer governo. Isso é ruim? Muito. Mostra o oportunismo desses partidos. Mas, do ângulo dos cidadãos, indica que a maior parte deles não sente ódio excessivo a qualquer polo. Temos dois polos partidários, por sinal melhores que a média em outros países do mundo (melhores que os dos Estados Unidos, Itália ou França), mas a cidadania não está rachada entre eles. Mesmo se acreditarmos que os eleitores tucanos odeiem o PT, e os petistas detestem o PSDB - o que está longe de valer para todos -, a maior parte da população não está tão dividida. Isso é positivo. Permite que as pessoas mudem de ideia. Dá vida à política.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O projeto verde

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 27/2/2012
Preocupo-me com uma triste curiosidade da política brasileira: temos por um lado partidos sem projeto político, como é o caso de várias agremiações médias ou pequenas, que nada almejam senão uma fatia do poder e, por outro, projetos ou agentes políticos sem partidos. Estas semanas, discorri sobre este assunto. Tratei dos empreendedores e ongueiros, que, a despeito de suas diferenças, estão desenvolvendo um know-how de qualidade para organizar a sociedade - mas não têm, e talvez jamais venham a ter, projeto político. Substituem com vantagem, a meu ver, um liberalismo que nunca deitou raízes reais em nosso país, mas nem por isso se converteram em ator político. Tratei disso há poucas semanas. Na última coluna, lembrei aqueles, economistas ou políticos, que acham insuficiente o Brasil exportar produtos agropecuários e minérios, querendo uma pauta de produção e de exportações que agregue mais valor-trabalho a nossas mercadorias. Acrescentei que esta importante discussão não tem desdobramento político; fui então agradavelmente surpreendido pelo lançamento, em breve, da Frente Parlamentar em Defesa da Indústria Nacional, comunicado a mim pelo deputado Newton Lima. Espero que dê frutos, embora eu esteja convencido de que hoje a oposição indústria-lavoura está sendo substituída pela do trabalho inteligente vs. o braçal.

Chefiar governos não é o projeto do movimento verde

Hoje há duas forças políticas capazes de disputar o poder no Brasil - o PT e o PSDB. Mas há outras ideias, outras questões, que precisam ocupar mais espaço em nossa cena pública - seja criando novos partidos que com o tempo se tornem competitivos, seja levando os dois principais a levar em conta conceitos e concepções que não constam, ainda, de suas agendas. Aliás, esse foi o caminho tomado pelos verdes, na sua história de quase meio século. Sabendo que não conseguiriam votos suficientes para chefiar um governo, eles se aliaram aos socialistas, na França e na Alemanha, a fim de implantar ao menos parte de suas políticas. Isso, que vale para os verdes nos dois países mais importantes em que exerceram algum poder, parece-me valer para todos os projetos de que tratei, mais o que verei hoje, que é o dos verdes de Marina Silva. Empreendedores podem ser mais fãs do capital (ainda que social), industrializantes podem ter tido em José Serra seu político mais proeminente e Marina foi ministra de Lula; mas não há impossibilidade, de princípio, para que uma dessas políticas seja assumida, quer pelo PT, quer pelo PSDB.

Vamos então aos verdes. Eles passaram do romantismo para a ciência e a tecnologia. No começo, era o amor às matas e a tudo o que é natural. Depois, tornou-se princípio econômico. Entre nós, o lançamento da obra organizada por Ricardo Arnt, "O que os economistas pensam sobre sustentabilidade" (2010), marcou bem essa transição do ideal à proposta ou, se quiserem, esse revestimento da ética pela ciência, essa aliança do romantismo com a economia. Temos aí um projeto de vida, mais até do que uma proposta política. Estamos acostumados à ideia de que um partido importante tem uma visão global do mundo. Aqui, não é o caso. Quem tem a visão global são os defensores do desenvolvimento sustentável, isto é, membros de um partido pequeno - ou nem membros, de partido nenhum. Isso pode até fazer deles pessoas de uma nota só, mas o relevante é que tenham propostas para cada momento do dia, para a ação cotidiana assim como para o planejamento econômico.

Aqui, o paradoxo. Por um lado, os verdes têm uma visão do mundo mais detalhada e mais consistente, quem sabe, do que nossos dois principais partidos. Mas, por outro, a experiência dessas décadas lhes dá, quando muito, a chance de serem parceiros minoritários numa coligação de governo. Assim foi no estrangeiro, mas também aqui: geralmente, o PV se coliga com administrações tucanas municipais ou estaduais. Ou seja, entre seu ideal e suas possibilidades, vai uma distância. Eles bem que gostariam de moldar o mundo à sua imagem - pois têm uma utopia, talvez a única de nossos dias -, porém dificilmente o conseguirão. Mas talvez a república que eles propõem, sua visão de "coisa pública", de "como viver juntos", seja política só em parte. Como ela diz respeito a toda uma mudança espiritual e comportamental - que inclui a reciclagem, o não desperdício, o respeito à natureza e ao outro -, pode ser que seu projeto esteja mais na ética do que na política. O que, certamente, não os exclui da disputa pelo poder, mas define um leque interessante: muita ambição nos ideais, um certo pragmatismo nas alianças de governo, pouca chance de mandar.

Quer isso dizer que a candidatura de Marina Silva, com todos os votos que obteve, não terá chances - ela ou outra - de conquistar a presidência da República, ainda que a longo prazo? Assim acredito. É verdade que poderíamos compará-la, sim, ao PT, que lentamente, durante 20 anos, construiu sua ascensão ao poder. O PT é um partido de certa forma único no mundo - uma grande agremiação de trabalhadores, tendendo à esquerda, mas sem ser comunista. Há partidos trabalhistas no mundo, há partidos grandes e há esquerda não comunista; mas essas três características, ao mesmo tempo, só o PT tem. Por isso mesmo, se o PV em outros países nunca chefiou o poder, quem sabe seremos originais também nisso. Ele pode começar pelo Brasil... Mas, por ora, o papel dos verdes - não o do partido, mas o do movimento que Marina capitaneou - parece ser o da pregação ética e científica. O que, por sinal, nos longos anos de travessia do deserto, foi uma das grandes contribuições do próprio PT para nossa política.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O partido industrial

Valor Econômico, 13/2/2012
Há no Brasil um projeto político - sem partido - composto daqueles que se inquietam com a desindustrialização do país, ou melhor, com a redução da parte da indústria em nossa produção e exportações. Em meados do século 20, quando o subdesenvolvimento e seus males despertaram reflexões de alta qualidade, entendeu-se que, para saírem da miséria, os países mais pobres deveriam ir além da agricultura, pecuária e extração de minérios. A única forma de se desenvolverem seria agregando valor-trabalho a seus produtos. As mercadorias com baixa quantidade de riqueza gerada pelo homem acabam valendo menos. Mesmo a grande exceção dentre os produtos coletados, o petróleo - que, por sinal, começou a se tornar mais caro apenas na década de 1970 -, não é uma benção para as nações que o extraem. A grande exceção são os Estados Unidos, mas justamente porque sua produção de petróleo é apenas um item numa economia complexa e rica. Em outros lugares, o petróleo desestimula a geração de riquezas pelo trabalho humano. Mas, ficando no Brasil, entendeu-se que a solução de nossos males passava pela industrialização. É o que une Volta Redonda, construída ainda na ditadura Vargas, os projetos de JK na década de 1960, o planejamento de Celso Furtado e as grandes obras da ditadura militar.

Riqueza natural não basta para fazer rico um país

Contudo, os dois últimos presidentes da República, FHC e Lula, conviveram bem com o que desde a década de 1990 alguns chamaram de desindustrialização. Voltou a crescer, em nossa pauta de exportações, o que vem da terra: seja a riqueza mineral gerada ao longo de milhões de anos e que desaparece para sempre, seja o produto do campo, ora lavoura, ora pecuária. Na análise que a Cepal fazia das causas da pobreza, trata-se de produtos honrosos, mas que não permitiriam dar o salto para o desenvolvimento. É verdade que a agropecuária e a extração de minérios hoje têm uma qualidade nunca antes vista. Ciência e tecnologia estão embutidas nelas. Por outro lado, hoje não basta ter indústrias: há as de primeiro e de segundo time. Só as melhores representam um diferencial. O trabalho agora valorizado não é qualquer um - é, sobretudo, o intelectual. Ou seja, a diferença de nossos dias não é bem entre indústria e agricultura: é entre o uso da inteligência e o uso dos braços. Mesmo assim, o fato é que nas últimas décadas - por coincidência as mais estáveis de nossa história política, as que também mais contribuíram para a redução da miséria e da pobreza - nossa economia de exportação voltou a se constituir principalmente de produtos com pouca agregação de valor. Há, aí, pelo menos um paradoxo, e talvez um risco.

Testemunhei um episódio dessa história quando jovem. Meu pai, Benedicto Ribeiro, jornalista econômico (ver José Venâncio de Resende, "Construtores do Jornalismo Econômico", 2005), trabalhava em 1967 com Horácio Coimbra, que presidia o Instituto Brasileiro do Café. Horácio, dono da Cia. Cacique de Café Solúvel, perdeu o cargo, vítima das pressões norte-americanas para que o Brasil não exportasse café solúvel, mas só em grão. Em plena vigência do Ato-5, o então deputado Helio Duque relatou esse caso em "A guerra do café solúvel" (1970). A simples transformação do café para solúvel, incluindo mais trabalho no valor do produto, já era um elemento de combate ao subdesenvolvimento.

Temos economistas e políticos preocupados com essa redução da qualidade do que exportamos. Os nomes óbvios são Luiz Carlos Bresser-Pereira, que deixou o PSDB no ano passado (como revelou ao jornal Valor), e José Serra, que em sua carreira se empenhou na defesa da indústria. Contudo, este assunto hoje não é pauta de discussão política. Não tem destaque na maior parte dos jornais, nem na televisão aberta. Apenas devo lembrar, aqui, que não se trata exatamente de defender a indústria na exportação brasileira; é antes de mais nada entender que o país não pode depender tanto da exportação, digamos, de soja para alimentar o gado estrangeiro. É ótimo exportarmos esses produtos, mas não bastam. Ou seja, o que chamei de partido industrial não é bem um defensor só da indústria, ou de qualquer indústria: o que o incomoda é a hipercommoditização do que mandamos para fora, que nos deixa econômica e politicamente vulneráveis, e o que ele quer é agregar trabalho brasileiro para o país produzir mais riquezas. Mais ainda: pretende romper com a ideia do país "rico por natureza", quando riqueza é o que fazemos, com o trabalho e, cada vez mais, a inteligência.

O problema é que esse partido da agregação do valor-trabalho não existe. Há economistas preocupados com o problema. Só que o assunto não vai à praça pública. Nem sei se Serra ainda lhe dá importância: na campanha, mal o mencionou. Pode ser tema impopular - é tão barato importar da China... Mas os pontos cruciais são dois: aparentemente, vemos aqui o calcanhar de Aquiles de nossa economia, que tem permitido uma redução drástica da pobreza; e, seguramente, é o assunto de que não se fala. Haverá políticos querendo trazer o assunto para o debate? Na verdade, o que chamei de partido industrial deveria ser conhecido como o "partido da inteligência como força produtiva". Talvez aí esteja o problema: ele se concentra demais no Ministério da Ciência, Tecnologia e, agora, Inovação. Poucos sabem dele. Mas é prioritário para nosso desenvolvimento. Não sei, a rigor, se ele tem que virar partido. Como os empreendedores de quem falei na coluna passada, talvez seja melhor que contaminem as diversas forças políticas. Mas tem que fazer-se presente no debate público.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Uma posição empreendedora

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 6/2/2012

Virou gênero literário: analistas políticos acreditam saber, mais que os partidos, o que eles devem fazer. Sei que é pretensioso, mas muita gente o faz. Vamos lá, então. Já insisti, aqui, na necessidade de uma forte oposição democrática - e na inapetência do maior partido de oposição, o PSDB, para o trabalho que isso exige. Ora, vejo ao menos três possibilidades de uma boa oposição no Brasil. A primeira em outros tempos se chamaria liberal, a segunda industrial e a terceira, sustentável. Hoje me deterei na primeira.

Uma oposição liberal deve assumir um princípio essencial do capitalismo: a liberdade que de fato importa, a do indivíduo, se realiza quando ele empreende. A iniciativa de cada um para florescer na vida é da pessoa que chamávamos de empresário, que está sendo substituída pela figura do empreendedor. Empresário é um substantivo - na linguagem corrente, o detentor do capital, que se opõe ao trabalho. Já empreendedor é um adjetivo, quase sempre elogioso. Uma "pessoa empreendedora" extrapola o mundo dos negócios e mexe com todas as dimensões de vida. É quem age com iniciativa e criatividade para modificar sua existência e seu entorno. Em números, o estoque possível de empresários é limitado, ao passo que, em tese, qualquer pessoa pode ter uma atitude empreendedora.

Uma oposição focada no empreendedorismo estimularia, claro, as pessoas a empreender. Este é um projeto econômico, mas que pode ter um foco social. Há cada vez mais empreendedores sociais, que não buscam necessariamente o ganho pessoal. Conheço alguns. Mostram preferências partidárias bem diversas. Há petistas e há quem goste de "Veja". Eis algo positivo: o empreendedorismo embaralha as categorias de direita e esquerda. Cada vez mais prioriza a geração de ativos sociais, em conjunto com os econômicos, isto é: geração de renda e crescimento humano. Uma ONG pode ter outras metas. Mas, para melhorar a vida das pessoas, elas terão que ganhar seu dinheiro. Serão educadas para melhorar de salário ou criar seus negócios. São as duas vias principais, não necessariamente incompatíveis.

A tendência é serem pessoas práticas, que arregaçam as mangas para mudar de vida. Já o lado preocupante é que raramente traduzem a militância social em linguagem política. Se há empreendedores votando à direita ou à esquerda, é porque não converteram sua ação social em consciência política. Sua escolha partidária pouco tem a ver com aquilo a que dedicam a vida. É como se houvesse um abismo entre sua dedicação a um projeto e a tradução dele em proposta para alterar a balança do poder. No dia em que traduzirem sua ação própria em linguagem política, e o fizerem de maneira coletiva, hão de se espantar com sua força.

Como, mais que repetir ideologias, eles têm experiência prática e conseguem melhorar muitas vidas, estão formando um vasto contingente de quadros para dirigir - um dia - a sociedade brasileira. Mas isso depende de almejarem o poder político, o que não está no horizonte; caso se organizem, poderão ser o embrião de uma agremiação poderosa. Enquanto isso não acontece - e talvez nunca aconteça -, exprimem os valores seguintes.

O principal é a autonomia. Cada vez mais se enfatiza que o principal é ensinar a pescar. Iniciativas assistenciais cedem lugar à afirmação dos direitos humanos, sejam eles de natureza econômica ou social: o importante é a luta pela afirmação de uma equidade. Isso é emancipar as pessoas (ou promover seu "empowerment"). Elas devem ser autônomas, para não dependerem mais de ninguém. Doar-lhes coisas é menos importante do que mudar seu modo de perceber a vida. Na esfera econômica, para fazer isto funcionar e crescer, mudanças legais são desejáveis. O Simples é o sistema tributário do empreendedor. Parece bom, barato e simplificado. Mas pode ser ampliado a outras categorias. Mesmo com o Simples, a empresa lida com alguma burocracia - que pode ser reduzida. Mais grave é que a pequena empresa responda por menos de 20% de nossa economia, quinhão bem inferior ao que atinge na Itália e Alemanha (Paulo Feldmann, "Pequena empresa não ganha eleição", Folha de S. Paulo, 20/1/2012). Entraves legais dificultam sua participação em concorrências públicas e a exportação de seus produtos. São questões específicas, de solução não tão difícil, mas que enfrentariam os interesses das grandes empresas, que hoje têm garantia de acesso ao mercado estatal e estrangeiro.

Isso permite uma conclusão curiosa. O empreendedor - ou o pequeno empresário, do qual, simplificando tudo, o aproximei - não precisa de muita coisa. Do Estado, ele quer desburocratização e acesso. Ora, se isso lembra a ética capitalista estudada por Max Weber, por outro lado essas demandas podem ser atendidas por qualquer governo. Ideologicamente, sendo detentor de capital, o empreendedor poderia ser o embrião de um autêntico partido liberal. Mas nada impediria que sua posição fosse atendida pelo próprio PT.

Aliás, a palavra "liberalismo", marcada à direita, parece ceder lugar a "empreendedorismo", mais ampla. O empreendedor está mais para ter uma posição do que ser oposição. Só que nenhum partido lhe dá muita importância. Nem ele mesmo se dá, pois não se torna ator político. Mas, caso se organize, seu caminho poderá estar entre o partido próprio - que não seria de massa como o PT, nem de líderes como o PSDB, mas de uma massa de pequenos líderes - e sua absorção ou cooptação por uma coligação inteligente, que perceba sua importância para o País e integre seus membros para melhorar a gestão do Estado e da sociedade, com ganhos sociais significativos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O orgulho de nossos Estados

Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 30/1/2012

Há um traço curioso na sociedade brasileira: a maior parte das pessoas se orgulha de seus Estados. Num passado recente, passamos por um período de sérias crises econômicas e políticas, no qual se alternavam o orgulho e a vergonha de ser brasileiro. Ele findou graças em parte ao fim da inflação (governo FHC) e em parte ao avanço da inclusão social (governo Lula). Orgulhávamo-nos do país no futebol e nos envergonhávamos da inflação e muitas outras mazelas, a começar pela corrupção que, aliás, disputa com a miséria o título de maior vergonha nacional. Mas esse movimento ciclotímico, como era chamado, reduziu-se. Com a estabilidade monetária e os avanços sociais, ficamos mais estáveis em nossa nacionalidade, que hoje vivemos melhor do que na fase de inflação recrudescida, digamos, os quinze anos de 1979 a 1994. Tivemos um forte pessimismo em relação ao Brasil. Mas o curioso é que mesmo nos períodos máximos de instabilidade em escala nacional, no plano que os militares denominavam “psicossocial” (palavra que felizmente sumiu do vocabulário!) não foi ameaçado esse orgulho de que falei acima – um orgulho estadual. O Brasil podia gerar otimismo ou, em maior dose, pessimismo, a partir de suas realizações ou fracassos, mas os Estados passavam – e passam – incólumes por seu sucesso ou insucesso. Gostamos deles como são.
Isso é ainda mais curioso porque os Estados significam pouco, do ponto de vista do poder, num país cada vez menos federalista e mais unitário. Na verdade, a tradição que a colônia nos legou foi a da autonomia dos municípios, não das – então – capitanias. Pouco após a independência, foram criadas assembleias legislativas nas províncias, mas o poder executivo, nelas, era exercido por nomeação do governo sediado na Corte. Só com a República tivemos autonomia dos Estados – e, por razões difíceis de entender, talvez por importação de costumes norte-americanos, talvez para se contrapor ao centralismo imperial, ela foi exagerada. Basta ler o que Erico Veríssimo escreve sobre as guerras civis gaúchas da República Velha: enquanto tropas de um lado e outro se matam, as guarnições federais permanecem neutras. Hoje, é impossível imaginar que haja uma rebelião contra um governador e o Exército apenas assista, impassível, aos combates.
Desde 1930, vemos um gradual mas constante fortalecimento do poder federal às custas dos Estados. Nos períodos ditatoriais, com Getúlio Vargas ou sob o regime militar, obviamente foram afastados os governantes estaduais que divergissem do poder central. Mas mesmo nos períodos democráticos, como o que vivemos ininterruptamente desde 1985, as competências dos Estados diminuem. Enquanto o controle central se exercia, nas ditaduras, pela força, hoje ele passa pelo papel predominante da política econômica. Esta é competência da União, e determina quase tudo o que se pode fazer na Federação. Daí que a situação dos Estados se torne paradoxal. Por um lado, ser governador ou senador é importante. Aliás, uns e outros, escolhidos em eleições majoritárias, costumam trocar de posições. O Senado é uma casa de ex- ou futuros governadores – ou, pelo menos, eles assim se veem. Não é fortuito que o Senado seja tão mais importante que a Câmara. Lá, os Estados ou seus imaginários futuros ou passados governantes falam alto.
Mas, por outro lado, no poder legislativo brasileiro, haverá órgão menos importante do que as assembleias estaduais, justamente as únicas que portam “legislativo” no nome mas, estranhamente, têm menos assuntos para regular sob forma de lei? O Congresso legisla sobre praticamente todos os assuntos. As Câmaras Municipais decidem o plano diretor e podem regular qualquer tema que afete a vida cotidiana, o que é muita coisa. Aos deputados estaduais, pouco resta. Algumas assembleias fazem esforços enormes de imaginação para ocupar um espaço político. É digno de nota que a assembleia do Rio de Janeiro seja, das 28 que há no Brasil, a que maior presença tem; realiza eventos e até dispõe de uma sigla conhecida de todos os fluminenses, Alerj. Nos demais Estados, a sigla é só para iniciados; no Rio, todos sabem o que é. É curioso que a popularidade da Alerj – onde foram, em junho de 2011, se manifestar os bombeiros revoltados contra o governo local – subsista embora o governador, como mostrou o “Valor”, tenha reduzido a oposição a menos de 15% das cadeiras. A Câmara Distrital de Brasília é outra exceção, pois soma às competências estaduais as municipais e por isso conta com muitos assuntos para legislar. É só. Um vereador de capital perde em importância ao se tornar deputado estadual, a não ser que mostre, como os verdes Carlos Minc e Aspásia Camargo (não por acaso, ambos verdes, ambos do Rio), muita criatividade.
Então, por que o orgulho? Um Estado como o Rio Grande do Sul, que há anos enfrenta uma crise econômica e fiscal, é um dos mais altivos quanto a seu modo de ser. E eu, que já estive em praticamente todas as Unidades da Federação, senti em todas elas o orgulho de sua comida, de seu falar, de sua alegria – ou de sua seriedade. Evidentemente, há quem não compartilhe esse orgulho, mas falo de um sentimento majoritário. O curioso é que esse nativismo tardio mal tenha tradução política. É um fenômeno social forte, mas que não resulta em união pelo Estado, em posição única ante os problemas que enfrente, em nada disso – salvo em casos extremos, como o dos royalties que alguns Estados recebem pelo petróleo no mar. Por que será? Será justamente porque, do Estado, não esperamos política econômica e então podemos ser, gostosamente, bairristas?

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A falta que o PT nos faz

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 23/1/2012

O PT está fazendo muita falta ao Brasil: na oposição... Dizendo isso, não estou criticando - aliás, nem elogiando - seu governo; só constato que desde 2003, quando ele ganhou as eleições para a Presidência da República, não tivemos mais oposição digna desse nome. Mas, na verdade, pode ser que em quase dois séculos de história independente tenhamos tido apenas dois ou três partidos que realizassem uma significativa oposição democrática. Dois: o MDB (depois, PMDB), no período de 1965 a 1985, e o PT, de sua fundação até 2002. Talvez três, se incluirmos o pequeno Partido Democrático, no final da República Velha e com atuação restrita a São Paulo.

Tivemos outras oposições, mas não foram significativas e, quando o foram, não foram democráticas. Em nosso primeiro século de vida independente, as eleições foram manipuladas (no Império) ou fraudadas (na República Velha). Na Primeira República, dominada pelas oligarquias, só dava para enfrentá-las de armas na mão - daí, a interminável guerra civil do Rio Grande do Sul, a mais breve no Ceará e a rebelião de Princesa, em 1930, na Paraíba. Nosso primeiro período democrático, de 1945 a 1964, teve um partido significativo de oposição, a UDN, mas desde o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, ela tendeu ao golpismo, largando suas iniciais intenções democráticas. Só em 1965 surge nosso primeiro grande partido democrático, o Movimento Democrático Brasileiro, que reunirá as oposições à ditadura, mas tardará 20 anos a pôr-lhe fim.

A oposição tem de suar, para conquistar o povo

O MDB (desde 1980, PMDB) marca uma mudança na história do Brasil. Enfrentou a ditadura, mas com métodos e ideais da democracia. Adotou uma política de alianças, reunindo de tudo, inclusive gente pouco digna, mas sob a liderança de nomes notáveis, como Ulysses Guimarães. Praticou, assim, o diálogo. Sua moderação, embora incomodasse a vários, assegurou aos radicais um guarda-chuva protetor. Teve sucesso, pois seu trabalho de formiga concorreu seriamente para o fim da ditadura; e não o teve, já que após 1985 se converteu, rápido demais, em partido fisiológico. Mas sua história merece respeito.

Nosso segundo partido democrático também demorou duas décadas para chegar à Presidência. O PT conseguiu uma façanha admirável: uniu os descontentes de esquerda, somando ideais até divergentes num propósito comum, e o fez com muito trabalho (este é meu ponto, aqui: não se faz oposição sem suar). Esses dois partidos verteram muitíssimo suor, um tanto de sangue e provavelmente muitas lágrimas. No caso do PT basta pensar, primeiro, nos mortos do partido ou próximos a ele, em lutas de sem-terra e outros perseguidos. Eldorado do Carajás marcou um corte nítido entre os petistas e os tucanos, pois era do PSDB o governador do Pará, quando sua polícia massacrou os sem-terra, em 1996. Pensemos, segundo, nas ações petistas que exigiram disciplina e trabalho, como a Caravana da Cidadania. Tudo isso rendeu frutos, desde 2002.

O que falta à oposição atual, para se tornar significativa e ao mesmo tempo agir nos quadros da democracia? Antes de mais nada, a disposição a dar o sangue (em sentido figurado) ou, em sentido literal, a suar de tanto trabalho. Infelizmente, isso mal se vê. Uma dirigente da Associação Nacional de Jornais disse há dois anos que, na falta de uma oposição consequente, a grande imprensa assumiu o papel de opositora. A frase é infeliz, porque o compromisso da imprensa não é fazer oposição, mas dizer a verdade - ideal nada fácil, mas que não se pode abandonar - porém expressa uma triste realidade: o PSDB terceirizou o papel de se opor. Ele o delegou a alguns jornais e revistas que, por preguiça, preferiram o caminho fácil dos escândalos ao mais difícil de um monitoramento sério das ações de governo (e da oposição).

Será também uma certa preguiça a principal razão para a inércia da assim chamada oposição? Suas duas vertentes, o PSDB e em menor medida os verdes, parecem acreditar que basta ter razão para atingir o poder. Mas na política o fundamental não é ter razão, é convencer. Apostar tudo na ideia de que temos razão nos faz acreditar que quem pensa de outro jeito é patife ou, na melhor das hipóteses, ignorante - o que é um desrespeito ao soberano na democracia, o povo. Vejam, nas redes sociais, o desdém de alguns simpatizantes da oposição pela maioria de pobres. Mas não dá para fazer oposição preguiçosa. Pensemos na história dos tucanos. O PSDB, desde que nasceu, em 1988, esteve perto do poder. Alguns de seus grandes nomes foram ministros de Collor, e o próprio partido por pouco não o apoiou. Em 1994, a escolha pessoal de Itamar Franco, quase no estilo do PRI mexicano, levou Fernando Henrique à Presidência - mas qualquer nome, no bojo do Plano Real, ganharia as eleições daquele ano.

FHC é alguém especial. Ele soube converter a fortuna em virtù, para usar os termos de Maquiavel, isto é: converteu a sorte em capacidade própria. Mas perdura o fato de que o PSDB não parece disposto a suar na oposição. Isso é pena. Se ele não fizer suas caravanas da cidadania, se seus militantes não se esfalfarem, se seus líderes continuarem esperando que o poder lhes caia nas mãos, nunca serão oposição de verdade. Ora, numa democracia, para um partido se tornar governo, é preciso primeiro fazer oposição. Não sendo assim, só com sorte. É como se o partido esperasse que a imprensa de oposição faça por ele, nas próximas eleições, o que Itamar fez em seu tempo: dar-lhe o poder de presente. Mas, para nossa maturidade democrática, precisamos de uma oposição que trabalhe, lute, em suma, repetindo-me mais uma vez: que dê seu suor pela política.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br