segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O direito de errar

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 26/12/2011

Estudantes invadem a reitoria da universidade. A imprensa liberal pede que sejam desalojados. O governo afirma que só agirá a pedido do reitor. E este diz que prefere dialogar a chamar a polícia.

Sonho de estudantes brasileiros? Não. Pesadelo na Tunísia. Os estudantes, homens e barbudos, exigem a segregação das classes por sexo. Isso mesmo: salas separadas para alunos e alunas. O que permite dizer que Sartre errou quando, no rescaldo de maio de 1968, disse que "sempre há razão em se revoltar". Há revoltas indefensáveis.

Estive na Tunísia este mês, para um encontro da Academia da Latinidade, criada por Candido Mendes, que tratou precisamente das primaveras árabes. Os islamistas foram participantes minoritários nas revoltas mas, como disse um expositor, estão vencendo o outono, quando se realizam as eleições. Fui para lá com algumas convicções. Primeira, que não adianta dialogar com os islamistas; são fanáticos e sempre lhe responderão com um versículo do livro sagrado. Segunda, que eles devem ter plena liberdade de expressão e de concorrer às eleições. O maior erro no mundo árabe, nas últimas décadas, foi os militares argelinos, com o apoio da França, impedirem o partido islamista de assumir o poder conquistado nas eleições - as primeiras livres que houve no país - de 1991. Daí resultou uma guerra civil que matou umas 150 mil pessoas.

Os islamistas conseguem falar melhor aos pobres

Ao impasse argelino, contrapõe-se a saída turca. Desde 2002 a Turquia, país muçulmano mas secular, em que a separação entre Igreja e Estado foi um dos dogmas do fundador da república, Kemal Ataturk ("pai dos turcos"), é governada por um partido islamista. Houve choques entre ele e a cúpula militar mas, ao fim e ao cabo, as mulheres não foram obrigadas a trajar vestes que ocultem seu corpo, rosto ou cabelos. O que se fez foi, não proibir, mas permitir: islamistas foram autorizadas a ser apresentadoras de televisão com os cabelos cobertos. Ou seja, dois ganhos: um partido que poderia ameaçar o Estado de direito foi domesticado, e também o foram os militares, que antes disso deram vários golpes sangrentos de Estado.

Continuo convicto de que os islamistas não devem ser proibidos de disputar eleições. Mas adquiri uma percepção nova do que está acontecendo, pelo menos na Tunísia. Se é verdade que a maior bancada na Constituinte é islamista, também é certo que tem só um terço das cadeiras. Um dispositivo absurdo da lei eleitoral tunisiana dá, ao maior partido, isoladamente considerado, o direito de indicar o primeiro-ministro. Mas ele tem, claro, de obter o apoio da maioria do Parlamento. Portanto, o Ennahda (é o nome do partido) fez o chefe do governo, mas precisou compor com dois partidos de centro-esquerda e laicos para ter maioria e formar o gabinete. Resulta assim difícil os islamistas imporem a poligamia, a amputação de mãos para ladrões ou o apedrejamento de adúlteros. Além disso, a economia tunisiana não vai bem, a Constituinte tem mandato de apenas um ano e haverá eleições no fim de 2012. Tudo isso, disse-me o advogado Khaled Beji, submeterá a liderança islamista a um desgaste que poderá levá-la à derrota nas urnas, daqui a um ano.

Porém, é fato que os cinco países árabes da África do Norte terão, no ano que vem, islamistas no governo. Já há ministros deles na Argélia, como parceiros menores numa coligação. No Egito, a Irmandade Muçulmana, perseguida por Nasser e seus sucessores, encontrou gente mais fanática que ela - os salafistas. Somados, fizeram dois terços dos votos no primeiro turno para a Constituinte. No Marrocos, uma lei igual à tunisiana garante que o primeiro-ministro será islamista. Na Líbia, deposto Khadafi, é provável que a religião apareça na política mais do que em seu tempo.

Esse não é o melhor dos mundos para quem acredita em valores leigos, mas precisamos saber lidar com ele. O que fazer, senão dialogar? Há dados curiosos. Na Tunísia, a lei eleitoral mandava as listas de candidatos à Constituinte, fechadas e não abertas (isto é, estabelecidas de antemão pelos partidos e não, como no Brasil, pelo voto dos eleitores), alternarem homens e mulheres. Como vários partidos elegeram número ímpar de parlamentares, e homens encabeçavam as listas, o resultado foi cerca de 30% de mulheres - menos que a metade, mas bem mais do que nos parlamentos britânico, francês, alemão, norte-americano e brasileiro. O irônico é que a maior bancada feminina é logo a do Ennahda, que tomou posse com dezenas de deputadas que pareciam clones, todas cobertas de preto da cabeça aos pés.

Mas o diplomata francês Yves de la Messuzière, que foi embaixador da França na Tunísia na década passada, me alertou para não me fiar nas aparências. Contou que esteve em encontros do Hamas: as mulheres - embora hipervestidas - disputavam cargos de liderança com os homens. Querer a "modéstia" na vestimenta não significa, necessariamente nem sempre, querer a sujeição da mulher ao homem. Afinal, há mulheres para quem a exposição do corpo constitui uma submissão da mulher ao desejo masculino, assim como há outras para quem exibir o próprio corpo é um direito. O importante é não impor ao outro os seus valores. Mas, talvez, o mais preocupante seja que para muitos dos mais pobres o islamismo radical apareça como seu porta-voz. É o que sucede nas eleições egípcias. Cabe aos partidos leigos conquistar os pobres. Mesmo assim, a tragédia argelina deveria levar-nos a considerar que, enquanto houver urnas, há esperança. As sociedades, como as pessoas, podem aprender com o erro. Já quando não lhes é dada a chance de errar, não terão jamais como acertar.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Apurar até depois do fim

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 19/12/2011
Depois da queda de sete ministros em 11 meses, agora estão sob ataque os titulares das Cidades e do Desenvolvimento. Isso permite duas suposições fortes, embora conflitantes. A primeira é que haja um plano para derrubar um a um os ministros, acusando-os de corrupção. Basta ver que, a cada vez, o fogo se concentra num ministro, sem se dispersar; mas, tão logo ele cai, outro é visado. Tática de artilharia. Mas, ao dizer isso, não desculpo o governo - e este é meu segundo ponto. Os ministros não teriam caído se convencessem a opinião pública de sua inocência. Eu poderia enfatizar um lado ou outro da questão, puxando para o lado tucano ou petista, mas os dois me parecem importantes.

As acusações ao ministro Fernando Pimentel mostram que o ataque muda de patamar. Até agora foram expostos ministros pouco importantes ou, no caso de Palocci, mais próximos de Lula que de Dilma. Já Pimentel talvez seja o ministro mais chegado a ela. O roteiro Dilma - exigir do auxiliar que se explique, demitindo-o se não se defender bem - fica difícil agora. Se ele sair, a presidente terá entregue um auxiliar próximo. E, a continuarmos nesse ritmo, na hora das eleições já terão caído, se usarmos uma elementar regra de rês, 15 ministros ou mais: quase metade do gabinete. O custo será devastador para Dilma.

A política pode ser mais exigente que a própria ética

Daí que o lógico, mesmo que surjam provas contra Pimentel (por ora, são apenas suspeitas), será o governo defendê-lo. Essa parece ser a batalha decisiva. O ministro lembra que, quando prestou consultoria à Fiemg, não exercia cargo público. Mas na política não vale o princípio de que todos somos inocentes até prova em contrário. Quando uma acusação emplaca, o suspeito é culpado até provar sua inocência. Isso porque a política - e a mídia - seguem regras distintas das da lei penal. Imprensa e política lidam com aparências. FHC e Lula foram chamados de "teflon" porque nenhuma acusação grudava neles. A imagem que construíram era tão boa que vencia qualquer suspeita. Não é o caso dos ministros.

Acreditamos que a ética seja mais exigente que a política. Não é certo. Os ministros demitidos podem ser inocentes não só na lei penal, que exige provas robustas, mas também no plano ético. Podem ser gente direita. Só que a política é implacável. Uma imagem negativa é difícil de limpar.

Uma grande pergunta: qual o tamanho da corrupção? Nos últimos oito anos a Advocacia Geral da União, órgão do Poder Executivo, ajuizou ações para reaver R$ 67 bilhões, que estima desviados pela corrupção. Os processos se referem a atos do governo Lula, mas também dos anteriores - inclusive o de FHC. A soma é alta. Se juntarmos tudo o de que são acusados os ministros demitidos, talvez não chegue a um milésimo desses R$ 67 bilhões. Há muito mais a apurar. É possível que a grande corrupção vá por outros dutos, não pelos que foram denunciados.

Apurar, eu disse. Jamais afirmaria que este governo, o anterior ou qualquer um é o mais corrupto de nossa história. Simplesmente porque não há estudos medindo a corrupção. Só posso acreditar, com muita convicção, que na ditadura, que tinha dinheiro para investimentos e se valia da falta de transparência dos negócios públicos, a corrupção deve ter sido alta. Receio que, no governo tucano, as privatizações possam ter levado a desvios. Mas, se tenho esta convicção e este receio, é porque quase nada foi apurado. As denúncias que surgiram não chegaram a termo. Não se teve condenação nem absolvição, o que deixa forte odor de suspeita. Isso vale ainda para os governos petistas. A Controladoria Geral da União, também do Poder Executivo, demitiu milhares de funcionários desonestos - mas nenhum ministro.

O que fazer? Sentimos o descaso dos poderes constituídos por investigar, mas também a irresponsabilidade da mídia que denuncia. O mínimo a fazer, quando o ministro cai, é continuar a apuração. Se o Ministério Público e a polícia não o fazem, a mídia deveria manter a chama acesa. Mas não. Sai o ministro e ele some do noticiário. É pena. Se for culpado, o país tem de vê-lo punido. Mas, se for inocente, isso tem de ser reconhecido. Não devemos esquecer dois nomes que a política e a imprensa escondem, os grandes injustiçados dos anos 90: Alceni Guerra, ministro de Collor, execrado por um ato de corrupção que, depois se soube, ele não cometeu; Ibsen Pinheiro, que presidiu a votação do impeachment de Collor, cassado por um malfeito que, mais tarde se soube, ele não praticou. Guerra poderia ter sido governador do Paraná; Ibsen, presidente do Brasil. Suas carreiras foram truncadas. Ninguém pagou por isso.

Está na hora de cobrar. Se um ministro não tem mais o respeito da sociedade para continuar no cargo, a mídia que o derrubou deve exigir a apuração completa dos fatos e se empenhar nisso. Ele deve terminar condenado - ou ser reabilitado com todas as honras. Não cabe meio termo. Na Polônia do século XVIII, os negócios públicos estavam paralisados devido ao "liberum veto" - o direito de qualquer membro do Parlamento a vetar, mesmo sozinho, uma deliberação da Casa inteira. Para resolver esses impasses (que acabaram destruindo a Polônia, retalhada por seus poderosos vizinhos), Rousseau sugeriu que quem usasse o veto fosse julgado seis meses depois. Se provasse que tinha razão, seria exaltado; se não, executado. É claro que não defendo a pena de morte. Mas cada um dos ministros deveria ter seu caso apurado até o fim. Então seria proclamada sua inocência ou culpa. Igual rigor deve se aplicar a quem denuncia. Está na hora de parar de brincar com o sentimento de honestidade de nosso povo.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

São Paulo precisa mudar

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 12/12/2011

A menos de um ano das eleições municipais, a situação em nossa maior cidade parece se definir. Ninguém mais pode mudar de partido para concorrer. O PT irá com Fernando Haddad, como um novo valor que se prepara para voos mais altos. O PMDB investe em Gabriel Chalita, uma das pessoas mais simpáticas que existem. Sei, por experiência, que é capaz de retribuir críticas com educação e cooperação - o que é um trunfo que, se aproveitado no tempo de televisão de seu partido, lhe renderá votos. Já o PSDB tem uma dura opção. Ou escolhe um nome novo, com pouca chance de recompor a aliança tucana que há tempos governa a cidade e o Estado, ou convence José Serra a desistir da Presidência da República, que provavelmente ele almeja em 2014, e a encerrar sua carreira como prefeito - o que certamente não almeja. Mas é a grande chance tucana.

Mas nada disso tem muita importância. Poderia continuar o artigo como o iniciei, mas quero inverter a argumentação: em vez de perguntar que candidatos têm chance, indagar do que a cidade precisa. É mais difícil. Se focarmos os nomes e os partidos, sabemos que algo sairá: alguém será eleito. Teremos prefeito... Porém, se perguntarmos do que São Paulo precisa, é possível que o futuro prefeito não esteja à altura. Só que, na democracia, devemos ir de baixo para cima: do povo, dos cidadãos, para os políticos. Estes podem mandar, decidir, fazer muita coisa errada e alguma boa, mas o metro para avaliá-los são os eleitores, os anônimos.

O custo São Paulo é o trânsito parar a cidade

Do que São Paulo precisa, então? Vou me concentrar em poucos pontos. O primeiro é o transporte. É uma cidade em colapso. Quando o rodízio municipal de veículos foi introduzido, há uma década e meia, gerou um trânsito bom. Mas em poucos anos o enorme crescimento vegetativo da frota eliminou esse ganho. Nenhuma iniciativa audaz corrigiu a gradual conversão dos automóveis em imóveis. Um amigo diz que os carros vão parar de pagar IPVA e começar a recolher IPTU. Estamos perto disso. Os pobres gastam duas ou três horas para ir ao trabalho. A classe média facilmente leva, de carro, uma hora nesse trajeto.

Isso tem dois custos. Um é econômico. Todo serviço que dependa de locomoção, inclusive a entrega de mercadorias, tornou-se muito caro. Dificilmente um técnico de televisão visitará mais que duas casas num período do dia. Com um trânsito melhor, faria o dobro. Daí vem um "custo São Paulo", que merece ser destacado em comparação com o tão citado "custo Brasil". Este último é o peso tributário e burocrático sobre os negócios, somado a uma malha de transportes insuficiente para escoar a produção, sobretudo, agrícola. O custo São Paulo é o tempo perdido. Um prefeito inteligente de uma cidade pequena pode competir com a capital paulista. Introduzirá wi-fi por toda a parte e combinará com o Senac e o Sesi a formação de mão de obra para serviços não presenciais. Algo parecido sucede na Índia, onde vivem muitos atendentes das linhas telefônicas de vendas que servem os Estados Unidos. Para comprar uma geladeira, você liga um 1-800 e fala com alguém em... Nova Delhi. Nem percebe, porque o indiano treinou o sotaque americano. E há trabalhos a distância melhores. Em suma, qualquer lugar periférico pode competir com metrópoles estressadas, em tudo o que exija mais raciocínio que presença.

Outro custo do nosso transporte público ruim e do trânsito caótico é humano. O desgaste das pessoas é espantoso. Quem pode aguentar horas, por dia, guiando um carro? Hoje há até uma rádio, da qual eu pessoalmente gosto, consagrada ao trânsito. Ela tem fãs que, quando falam na emissora, usam as expressões e termos dos repórteres: surgiu até um dialeto da rádio Trânsito, neste ponto a mais bem sucedida de nossas emissoras. E o sofrimento humano de que falei pode ser quantificado. Ele aumenta doenças, onera relacionamentos pessoais, amplia a violência. Mas basta dizer que é um custo humano alto. Gente submetida a um tal desgaste emocional sofre.

Falei do transporte. "Dá para resolver", como dizia a "Folha de S. Paulo" em boxes no interior de suas páginas, anos atrás; mas ela abandonou a expressão, não sei se porque terá perdido a esperança. Há um problema, porém, que pode vir justamente do êxito. São Paulo é a cidade mais rica do país e oferece oportunidades de trabalho e de renda boas. Isso faz dela um polo de atração para pessoas, de todas as qualificações, de outros lugares. Chegamos à dura situação de que, se a cidade resolver seus problemas, com isso criará novos, porque atrairá mais pessoas. A única saída para isso é surgirem outros polos de atração.

Na verdade, a única saída consistente para São Paulo é o restante do Brasil se desenvolver bastante. Muitas soluções paulistanas são, na verdade, brasileiras. Nossos destinos estão indissoluvelmente entrelaçados. Para o transporte funcionar, o Brasil tem de parar de investir tanto no carro. Um dos maiores erros de Lula foi em 2008, a fim de enfrentar a crise, incentivar a compra de automóveis. Já para São Paulo ter uma dimensão humana - o que, no limite, exigiria reverter a migração, reduzindo seu número de habitantes - o Brasil tem de ser mais igual. É bom o fato de estar avançando neste rumo.

Os candidatos estão à altura desses desafios? Não sei. Mas a cidade e o Brasil ganharão se nós, eleitores ou comentadores, pensarmos menos em quem vai ganhar - ou perder - o governo, e mais em quem ganhará - ou perderá - com o governo. Um começo seria uma campanha, pelas redes sociais, por uma consciência de que não adianta facilitar o uso do carro, porque ele cria adictos; o negócio é melhorar o transporte público.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Democracias fazem guerra a democracias?

Por Renato Janine Ribeiro

Valor econômico, 5 de dezembro de 2011

Em fevereiro de 1979, a China, comunista, invadiu o Vietnã, também comunista. Quatro anos antes, o Vietnã tinha vencido os Estados Unidos após um conflito de duas décadas - a única derrota deste último país em sua história. O mundo se surpreendeu com o fato de dois Estados marxistas entrarem em guerra. Muitos disseram: em compensação, democracias não fazem guerra a democracias. Essa seria uma de suas grandes qualidades.

Mas será verdade? Na Grécia, onde começou o governo pela maioria do povo, Atenas guerreou várias outras cidades que eram igualmente democráticas. É possível que sua derrota na longa guerra do Peloponeso (431-404 antes de Cristo) - que coincidentemente é seguida pela execução de Sócrates, o modelo dos filósofos, e pela decadência da cidade-Estado - se deva em larga parte ao que hoje chamamos de "dupla moral": para os nossos tudo, para os outros, nada. O caso de Roma é ainda mais flagrante. Foi durante séculos uma república poderosa, em que o povo tinha voz, ainda que limitada, perante os aristocratas. Mas jamais soube - ou quis - reconhecer aos povos que conquistou fora da Itália os mesmos direitos que tinham os cidadãos romanos. Daí que fosse, como explicou Hobbes, uma democracia para uso interno, e uma monarquia (diríamos hoje: uma ditadura) na relação com os países colonizados.

A grande questão da democracia é crescer e incluir

Modernamente, é verdade que nenhum país democrático invadiu outro que também o fosse. Mas a questão ateniense e romana continua presente: várias democracias adotam um padrão para uso interno e outro, bem diferente, para uso externo. Todo o colonialismo e, por que não dizer, imperialismo modernos assim se explicam. No século XIX, a Grã Bretanha, a França e os Estados Unidos já eram Estados democráticos - menos do que hoje, mas bastante. No entanto, negavam a outros países os direitos de seus cidadãos. Há coisa pior, porém.

Refiro-me às intervenções de alguns desses países para eliminar movimentos democráticos em nações subdesenvolvidas. O caso talvez mais grave, até porque o feitiço se virou contra o feiticeiro, é o do Irã. Em 1953, o primeiro-ministro Mossadegh, favorável a uma democracia em estilo ocidental, é deposto por um golpe promovido pela CIA. O episódio é bem estudado por Stephen Kinzer, em seu excelente "All the Shah's Men". O xá volta ao poder, reprime ferozmente os rebeldes, prende Mossadegh (não ousa executá-lo) e - um quarto de século depois - é deposto por uma oposição religiosa que sequer existiria, caso a oposição leiga dos anos 50 tivesse podido se expressar. O que se segue - a teocracia islâmica - é pura culpa dessa agressão de um país democrático a um que tentava tornar-se democrático.

Ou pensemos no apoio dos Estados Unidos ao golpe contra João Goulart, presidente do Brasil, ou Salvador Allende, do Chile. Nos dois casos, tratava-se de países democráticos, com governos escolhidos segundo a Constituição em eleições limpas. Ora, subverter um regime, apoiar a deposição de um governo não são formas de fazer guerra? Então um regime democrático, o americano, guerreou outros, o brasileiro e o chileno, para não falar em muitos mais. Portanto, democracias fazem sim, na Antiguidade ou na era moderna, guerras umas a outras.

Que consequências podemos tirar desse fato? Primeira, se isto é um consolo, que entre si as democracias não fazem guerras explícitas, declaradas, como invasões. Se é verdade que "a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude", porque o desonesto se envergonha de sua desonestidade, então - pelo menos - os governantes democraticamente eleitos sabem que é feio atacar um regime democrático ou que se está democratizando. Faz alguma diferença, mas talvez seja pouca, porque a hipocrisia não impede o delito.

A segunda consequência é mais complicada. Digamos que a democracia é contagiosa, no melhor sentido do termo. Ela atrai. Então, quando uma democracia se fecha sobre si e nega direitos - seja a negros, a árabes, a mulheres, a quem for - ela se torna vulnerável e, pior, começa a sabotar a si mesma. Parece que uma democracia tende a ser aberta, integral, em expansão: não só amplia os direitos de quem a integra como, também, alarga o número dos que reconhece como pessoas, titulares de direitos. Aqui entra em cena o cosmopolitismo: a ideia, que vem do filósofo grego Diógenes, o Cínico, de que existe algo como um "cidadão do mundo", um "kosmopolites". Uma polis confinada em si mesma não faz sentido. Indo mais longe: é ou deveria ser da natureza das polis, dos Estados democráticos, serem amigos.

Não vivemos num mundo de conto de fadas, onde todas as democracias são gentis entre si. Mas a história mostra que os regimes populares do mundo antigo - a democracia ateniense e a república romana - sucumbiram por não saber integrar o dentro e o fora, os direitos reconhecidos a seus membros e o desprezo e exploração votados ao estrangeiro. Se a democracia é atraente e por isso tende a se hiperpovoar, isso não se resolve fechando-se suas portas ou, pior, reprimindo-se outros povos para que não a ameacem. Até porque novas democracias podem ser diferentes das que já existem. A democracia brasileira, sustento há tempos, coloca a necessidade de um afeto político democrático que rompa com uma tradição nossa do afeto autoritário, que até poucos anos prevalecia em nosso país. As democracias árabes, que poderão existir ou não, formulam novas perguntas. Não temos ainda as respostas mas - com toda a certeza - ela não virá negando-se o que conseguiram de democracia, porém somente o aumentando. Mesmo que isso implique riscos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras