segunda-feira, 23 de abril de 2012

Roteiros para Cuba


Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 23 de abril de 2012. Não acredito que a Cúpula das Américas tenha ficado sem um texto final só porque Estados Unidos e Canadá não endossaram a posição, majoritária no continente, sobre a integração de Cuba e a pretensão argentina às Ilhas Malvinas. Afinal, o único país que se importa com as ilhas geladas é a própria Argentina; quanto à ilha tropical, faz tempo que Cuba deixou de ter peso na política do mundo. Hoje, só lhe resta o papel simbólico. Terá servido, se tanto, de pretexto para a maioria manifestar sua irritação com o descaso de Washington por agendas mais substanciais, e para os americanos agradarem aos cubanos da Flórida. Se a reunião prometesse algo importante, a bola não teria sido jogada para escanteio. Mas por que Cuba perdeu o relevo político que foi seu, na época em que vencia os sul-africanos em Angola e Fidel tentava mediar o conflito da Somália com a Etiópia, ambas "socialistas" (assim, entre aspas)? E para onde se orienta esse país? Porque, hoje, a única importância que lhe resta é a que lhe dão os Estados Unidos. Em outubro, fará meio século a crise dos mísseis, que quase levou à guerra nuclear, por conta de foguetes soviéticos com ogivas nucleares em Cuba. Por duas semanas, o futuro do planeta esteve por um fio. Hoje, essa cena parece impossível. Atualmente, conflitos locais permanecem locais. Um atirador louco em Sarajevo não enlouquecerá o mundo. Um assassínio localizado não causará dezenas de milhões de mortes. Melhoramos. Cuba aceitou o capital, desde que sem burguesia Mas o que fazer em Cuba e com Cuba? Vale a pena pensar a respeito. Primeiro, em algum momento acabará o bloqueio. Os Estados Unidos, que não perdoam o momento em que a ilha foi um Davi heroico contra o Golias mau do imperialismo, esperam a saída dos irmãos Castro. Talvez queiram ver humilhado o regime cubano. Mas percebem que, enquanto isso, Cuba abre espaço econômico para o capital europeu. Se os americanos demorarem, Cuba continuará sendo - para eles - só uma foto velha na parede. Talvez doa. Segundo, a restauração do capitalismo parece uma questão de tempo. Em que dimensão, resta discutir. Há vários roteiros possíveis. A depender de Fidel, pouco acontece. O problema não é o capital externo, que ele aceitou - mas a formação de uma burguesia cubana. Para ele, uma burguesia local significaria o fim da pureza ética e a legitimação da ganância. Essa é a questão crucial. Como as coisas escapam gradualmente de Fidel, creio que Raúl prefira um cenário chinês "com rosto humano". Manteria o poder político e policial no partido, abriria o capitalismo, inclusive nativo, tentando conter seu instinto animal - e o rosto humano estaria numa rede de proteção social maior que a chinesa. Sem isso, de nada terá valido enfrentar Golias. Mas como conter uma burguesia cubana dinâmica? Outra via pode estar na restauração do capitalismo, somada à queda do PC. Contudo, embora essa opção possa agradar a Washington, traz problemas. Talvez eu leve a sério o belo romance policial (anticomunista) de Roberto Ampuero, "Falcões da noite", em que a CIA impede um atentado contra Fidel. Porque uma instabilidade aguda numa ilha tão perto da Flórida seria um desastre para os Estados Unidos. Eles estariam para Cuba como a Alemanha Ocidental para a Oriental, após a queda do muro: um lugar rico, onde todos têm o direito legal de ir morar. Ampuero imagina 1 milhão de cubanos fugindo para Miami em dias, com muitos morrendo no mar e outros sobrecarregando a população do Estado. Os americanos têm interesse numa transição controlada. Mas controlada por quem, se não for pelo regime cubano? A questão cubana está cheia de quadraturas do círculo... O discurso público do governo americano, contrário a qualquer concessão a Havana, não expressa exatamente o que seus dirigentes pensam. Washington prefere que nenhum Castro esteja presente, mas seu pior receio é um milhão ou mais de latinos invadindo seu território. E a diáspora cubana? Ela e a comunidade judaica controlam segmentos importantes da política externa americana. Quando Clinton mandou devolver ao pai o menino cubano que foi parar em Miami, sacrificou sua sucessão (houve, também, a fraude eleitoral). A diáspora cubana torna o governo americano refém de seus interesses particulares. Mas será bom a diáspora aumentar o diálogo com Havana. Isso funcionará melhor no pós-Castro, mas também é uma condição para a própria transição. Precisa haver negociações tanto da diáspora quanto de Washington com Havana, para evitar a perda de controle. O pior para os americanos seria uma guerra civil cubana ou a debandada para o Norte. Pode ser que já estejam conversando; mas sempre fica a questão de quem pisca primeiro. Um dia alguém da nomenklatura dirá, como disse nosso ditador Figueiredo sobre os exilados brasileiros, que "lugar de cubano é em Cuba". Esse é um direito essencial dos exilados e seus descendentes. Mas restará negociar quantos, dos cubanos de Miami, poderão e quererão residir e votar na ilha. O regime aprendeu com a queda das ditaduras comunistas na Europa Oriental, mais de 20 anos atrás, e fará tudo para evitar uma reprise desse cenário. Isso inclui evitar que o dinheiro da Flórida compre as primeiras eleições que forem livres - mas também incluirá retirar do Partido e dos Comitês de Defesa da Revolução os próprios públicos que eles possuem e utilizam. Enfim, há parâmetros. O governo comunista pode desabar, o capitalismo voltar, Miami vencer as eleições. Ou o regime pode se abrir, controlando o capital. Entre os extremos, muito pode ser negociado. Quanto mais cedo, melhor. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Apagando os barris de pólvora

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 16/4/2012

Estamos a dois anos do centenário da Primeira Guerra Mundial. Neste período, o mundo mudou a ponto de se tornar irreconhecível. Em 1910, no funeral do rei da Inglaterra, Eduardo VII, os embaixadores francês e norte-americano se incomodaram, porque as carruagens com os representantes das duas repúblicas desfilaram depois das monarquias. As outras potências eram monarquias: Rússia, Áustria-Hungria, Alemanha, Itália. Todas estas, hoje, são repúblicas. Daí a pouco, o Kaiser alemão faria guerra a seus primos que reinavam na Inglaterra e na Rússia. O condomínio monárquico iria cindir-se, na guerra mais cruel e letal até então travada.

Um dos maiores empenhos da diplomacia, no século que se sucedeu a essa tragédia lenta, foi impedir uma nova guerra suscitada por um entrevero local. Porque a Grande Guerra foi isso: um tiro em Sarajevo, na periferia da Europa, matando o herdeiro do trono austríaco, leva Viena a dar um ultimato à Sérvia, que é aliada da Rússia, que o é da França... Em semanas, se mobilizam milhões de soldados que vão matar-se por um episódio que poderia ter sido circunscrito. Circunscrever conflitos se tornou o grande êxito dos diplomatas no século XX. Não foi fácil.

Numa primeira etapa, o empenho dos britânicos e franceses - mas não dos nazistas -em evitar uma segunda guerra mundial enfraqueceu as democracias diante de Hitler. A cada passo do mega-criminoso, os ocidentais buscavam manter a paz. Mesmo quando deram um basta a suas chantagens, ainda houve franceses e ingleses que achavam absurdo "morrer por Dantzig", isto é, lutar pela Polônia contra o nazismo. Eram gatos escaldados pela chacina iniciada em Sarajevo.

Guerras locais hoje não mais ameaçam o mundo

Mas, desde 1945, com a derrota do nazismo e o advento da bomba nuclear, o cuidado de que lutas locais não se globalizem foi decisivo. Leiam jornais de 1950 e vejam o medo que tinham, ocidentais e comunistas, de uma guerra geral, que extinguiria nossa espécie. Cada lado se preparou para enfrentar o outro - às vezes, até sonhando com uma arriscada guerra preventiva. Felizmente, ela não ocorreu.

Houve todo tipo de contribuição para impedir o transbordamento do particular para o mundial. Kissinger, em seu recente "On China", obcecado que era com a ideia de equilíbrio de poder, dá sua versão de como a improvável aliança dos Estados Unidos com a China comunista teria inibido a União Soviética, detendo os projetos agressivos de Brejnev. Este certamente acharia o contrário: suas alianças no Terceiro Mundo teriam contido o imperialismo norte-americano. Mas o resultado foi este tempo melhor, em que hoje vivemos.

Porque um dos êxitos de nosso tempo é que sobraram poucos barris de pólvora de impacto global. A África vive um período difícil, com fomes e guerras calamitosas. Mas nenhum de seus conflitos corre o risco de atear fogo ao mundo. A contenda local mais perigosa continua sendo a que opõe Israel ao mundo árabe e islâmico. Mesmo assim, o Estado judeu tem relações diplomáticas com o Egito e outros países da região. Acredito que esse conflito seja o único com potencial letal para o mundo. Israel tem armas nucleares e, se atacar o Irã, não se sabe em que isso dará. É certo que haverá reações de Estados da região - o mínimo que farão será congelar suas relações com Israel, produzindo um afastamento que não trará bem a ninguém - e atentados pelo mundo inteiro.

O fator preocupante é que os Estados Unidos dificilmente se dissociarão desse eventual ataque. Em 1956, quando Israel, os ingleses e franceses invadiram o Egito, o presidente Eisenhower mandou que se retirassem. Foi o último presidente norte-americano a enfrentar Israel. Obama não fará isso. Portanto, se o Irã for atacado, as respostas se dirigirão contra a única grande potência. Falo de respostas políticas, legítimas, e terroristas, ilegítimas. Os Estados Unidos não serão derrotados, mas haverá estragos enormes, que serão pagos pelo mundo inteiro. Lembremos o que aconteceu depois de 11 de setembro de 2001. Os terroristas não criaram seu emirado islâmico. Mas tornaram o mundo um lugar pior do que era. Aumentou a insegurança. Aumentou o caráter policial dos Estados. Os direitos humanos padeceram.

No passado, a esquerda acreditou que seria bom "desmascarar" a natureza repressiva de Estados que fingiam ser democráticos enquanto oprimiam seus pobres e suas colônias. Mas essa foi uma ilusão. Alguns hoje creem nisso, entre os extremistas islâmicos (que nada têm a ver com a esquerda, quase sempre laica). Mas não é bom romper nenhum diálogo, por exemplo, o de israelenses e árabes. Não é bom um Estado minimamente democrático sacar a "máscara", porque sem liberdade só piora a vida de quem está abaixo na escala social. É um jogo sem vencedores.

Além da região em que está Israel, há hoje só mais um conflito com riscos de se globalizar - o da Índia com o Paquistão, dois países com arsenal nuclear, ainda por cima vizinhos do Afganistão. Mas, desde a guerra de 1971, já se somam quatro décadas de paz, ainda que armada. É de se esperar que as coisas continuem assim - e melhorem.

Para que comentar isso? Para celebrar. Trinta anos atrás, o mundo tinha dezenas de conflitos com potencial para extinguir a vida humana. Diplomatas e governantes reduziram isso em enorme escala. Essas mudanças em boa parte vieram de cima, de quem está no poder. Muitos de nós gostamos de criticar as elites e elogiar o povo. Aqui, o mérito foi de elites sábias, que viram o horror da guerra. Sirva-nos isso de alerta. Será bom pacificar o que resta de perigoso no mundo. Esta deveria ser uma prioridade política - e humana.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Quem perde com Demóstenes

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 9/4/2012

Quem saiu perdendo com a queda do senador Demóstenes Torres? Parece óbvio que a primeira vítima é o partido que ele liderou no Senado. Demóstenes angariou tal prestígio na oposição que, com exagero, seu nome até estava sendo cogitado para concorrer ao Planalto, num fantasioso voo solo do DEM. Mas o Democratas, embora perdendo seu orador mais destacado, foi rápido no gatilho. Em uma semana, afastou-o. De olho nas eleições deste ano, o partido espera ganhar votos com a imagem de uma agremiação que, se preciso, corta na carne. Mas o máximo que ele pode querer é estancar a hemorragia, sem conseguir voltar ao tempo em que tinha boa saúde e, na reeleição de FHC, em 1998, atingia a maior bancada de deputados federais. Talvez o episódio precipite o fim do DEM, que se incorporaria a outro partido, provavelmente o PSDB.

Quem mais perde, com as denúncias éticas contra o senador, é a oposição e sua estratégia principal. Os partidos oposicionistas se dedicaram, desde o segundo ano de Lula na Presidência, a acusar o governo federal de corrupto. A certa altura, a estratégia aparentou dar certo. José Dirceu foi cassado. Em meados do primeiro mandato, Lula parecia estar ameaçado. Até se sugeriu que o PSDB o pouparia da vergonha de um "impeachment"; em troca, Lula renunciaria a postular a reeleição, em 2006. Hoje, essa hipótese parece insensata. Lula conseguiu uma popularidade invejável. As duas eleições presidenciais realizadas em sua administração consagraram sua liderança. O impacto das denúncias de corrupção contra o governo se reduziu significativamente. Elas ainda mobilizam certos setores da sociedade, em especial a classe média e, sobretudo, em São Paulo. São fortes na imprensa de oposição. Pouco mais que isso.

O PT coloca a oposição na defensiva ética

O episódio do senador Demóstenes é, na verdade, o ponto culminante de uma reversão de curso. Por vários anos, acusações de corrupção choveram contra o PT e seus aliados. Desde o ano passado, porém, elas se têm dirigido também contra a oposição. Deixo claro, desde já, que não avalizo nenhuma denúncia; sei que há órgãos com a competência, ou jurídica ou técnica, para saber quais procedem e quais não. Não é meu caso. Apenas posso notar o impacto das acusações sobre a opinião pública. Ora, o fato é que na campanha de 2010 a candidata Dilma Rousseff acusou de malfeitos um antigo executivo do Rodoanel, em São Paulo; depois, saiu o livro "A Privataria Tucana", que acusa o ex-governador José Serra de envolvimentos ilícitos; e, agora, vemos cair o senador de Goiás, que era a voz mais ativa da oposição no Parlamento. Evidentemente, os acusados se declaram inocentes. E podem sê-lo. Mas assistimos a um movimento que antes não existia. De 2004 a 2009, a oposição reinou sozinha nas denúncias de corrupção. Nos últimos dois anos, porém, a esquerda começou a acusar líderes tucanos e demistas. A queda do senador é o efeito até agora mais claro dessa mudança nos papéis de acusador e acusado.

Ou seja, durante uns cinco anos, os defensores do governo evitavam a questão da corrupção. Esta, que fora tema essencial do PT na oposição, tornou-se assunto delicado, para ele, uma vez no governo. Desde o caso de Waldomiro Diniz - ironicamente, tendo como interlocutor o mesmo Carlos Cachoeira que hoje é a chave do noticiário contra a oposição - os partidos governistas minimizaram a importância da corrupção, contestaram as intenções de quem a denunciava, disseram que todos faziam isso e/ou encontraram suas causas nos modos de financiamento das campanhas políticas. Desses argumentos, o que aponta os vícios de nosso sistema partidário pode ser correto. Mas todos eram alegados com incrível mal-estar. Contudo, no último ano, os partidos do governo obtiveram munição para discutir no próprio campo adversário. Saíram da defensiva e passaram ao ataque. Nos primeiros embates, não chamaram maior atenção. A oposição continuou a denunciar, satisfeita de encontrar nos ministérios alvos que não eram cândidos. Porém, desde o livro do jornalista Amaury Jr., a situação começou a mudar. Repito que não endosso suas palavras. Apenas observo que o PSDB ainda não aproveitou a chance de responder sistematicamente a seus ataques, com uma refutação, item por item, cabal, do que ele disse.

O livro em questão pode ser contestado. O incontestável é a proximidade do senador com uma pessoa que os jornais não se pejam de chamar de criminoso. Essa se torna uma vitória dos partidos governistas no campo mesmo para o qual a oposição levou o debate político, o da corrupção nos negócios públicos. O que exige, da oposição, que tente devolver a discussão sobre os rumos do Brasil para projetos de país. Se assim agir, o escândalo terá feito bem a nossa vida política.

Contudo, não se pode dizer que o lado governista ganhou a contenda. Venceu a batalha, mas a guerra... A má fama dos políticos acaba afetando a todos. Converso muito com pessoas que não conheço, das mais variadas classes. Mesmo que eu não levante a questão política, ela surge. Noto um descontentamento com todos os partidos. Na verdade, a acusação de corrupção domina quase toda a vida republicana no Brasil. A República Velha, Getúlio, a democracia de 1946, a ditadura militar e a democracia de 1985, todas elas, tiveram por mais constante tema de crítica política a corrupção. Houve algumas exceções. A mais recente foi o PT, até chegar ao poder e, navegando em seu vácuo, o PSDB, também até a Presidência. Desde então, vivemos num país desapontado com os políticos e, em decorrência, com a política. Essa, a derradeira má contribuição do senador Demóstenes: deixar-nos ainda mais blasés.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O PT em risco

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 2/4/2012

A política do PT para o futuro depende do cargo de Dilma Rousseff e da disposição de Lula. A saúde do ex-presidente é essencial para ele continuar atuante na política; isto é óbvio; menos óbvia, mas real, é a dependência de seu partido em relação a ele. E a Presidência da República é o que garante, ao partido, a liderança na política brasileira, ante o risco que representam, não tanto o PSDB, mas cada vez mais os aliados PMDB e PSB. Os dois são capazes e talvez dispostos, a um sinal de fraqueza do PT, de abrir fogo amigo sobre ele.

Na verdade, o PT sempre dependeu muito de Lula. O partido mais de massas de nossa história contou e conta com um líder cujo carisma tem raros paralelos na mesma história. Aquilo, no PT, que é articulado, organizado e racional se equilibra com o fator emocional, não racional (o que não quer dizer irracional), que está no impacto afetivo do ex-presidente sobre a maioria dos brasileiros. Mas agora o papel de Lula é diferente do que teve no longo preparo para chegar ao poder. Isso porque o PT faz alianças. E quem as concebe, articula e assegura é, justamente, Lula. Mais, até, do que sua sucessora.

Hoje, o futuro do PT está em suas alianças. Mas durante metade de sua vida o PT foi avesso a elas. Porque representam compromissos. Ele, um partido diferente de todos os demais, só as admitia quando fossem em seus próprios termos. Por isso, seus aliados eram partidos pequenos, como o PCdoB. Contudo, entre a derrota de 1998 e a vitória de 2002, Lula decidiu que, para chegar ao poder, era preciso aliar-se a partidos maiores. O PT teria que ceder-lhes mais do que fazia. Isso demorou a se tornar realidade; em 2002, o PMDB se coligou com José Serra e, em 2006, não apoiou ninguém. Mas, com o tempo, alianças se efetivaram. Não há nada de errado nelas. Uma política democrática exige negociações, acordos, concessões. O problema maior em nossa vida política é que um estoque razoável de partidos e políticos apoiará qualquer governo, de direita ou de esquerda, desde que lhes seja vantajoso. Sem os votos desse "centrão", não haverá maioria parlamentar. Portanto, simplesmente para que o governo governe, ele precisa ceder. A menos que alteremos a Constituição, assim é e assim será.

Lula esvaziou o PT deliberadamente nos Estados

O problema imediato não é este, que para mudar exigiria uma reforma constitucional quase impossível de se aprovar. O problema próximo de nós é que essas alianças dependem de Lula - e, agora, de sua saúde. Vejamos. Em 2002, o PT venceu o pleito presidencial, em parte porque o governo de FHC findou em crise, em parte porque Lula se moderou e se cuidou. Mas, nos Estados, o PT teve desempenho pífio. Elegeu poucos governadores, nenhum deles em Estado importante. Foi uma surpresa que o PT chegasse à Presidência antes de eleger número razoável de governadores, mas este podia ser apenas um acaso. A situação, porém, repetiu-se em 2006. Consolidou-se um padrão. Já em 2010, Lula nem tentou mudar esse quadro. Surfou nele. Simplesmente abriu mão de candidaturas petistas ao governo de vários Estados e ao Senado, em prol de alianças que construiu, sobretudo com o PMDB e o PSB. O resultado foi quase triunfal. O PSDB se esvaziou no Senado e perdeu governos. Conservou São Paulo e Minas Gerais, as principais unidades federadas, mas no resto do país se enfraqueceu. A oposição tradicional (chamo-a assim, porque ainda creio que possa haver uma oposição nova, verde, defensora de uma economia sustentável) está quase mais forte em parte da imprensa do que entre os eleitos. Quase.

O que comprova a tese de que essa foi uma decisão consciente de Lula - esvaziar candidaturas do PT nos Estados para esvaziar possíveis vitórias do PSDB - é que, enquanto isso, o PT avança nos municípios. A cada eleição, faz mais prefeitos. Continua sendo um partido forte. Basta ver que dificilmente perde - ou ganha - parlamentares. Poucos são os eleitos pelo PT que deixam o partido. Raros são os eleitos por outra agremiação que migram, no exercício do mandato, para o PT. Essa é uma solidez, na entrada e na saída, que poucos partidos demonstram em nosso país.

Mas, se ele assim progride no âmbito municipal, sua fraqueza estadual o deixa vulnerável. Quem monta as alianças, com seu carisma, é Lula. O que as assegura é o fato de estar Dilma Rousseff na Presidência da República. Se Lula não continuar atuando, as alianças se irão. Se o partido perder a chefia do Executivo federal, idem.

Em outras palavras: o Brasil tem curioso equilíbrio dos Poderes. Não é só o americano, entre Executivo, Legislativo e Judiciário - embora esse exista, e as derrotas do governo no Congresso mostrem que funciona. Mas o principal é o equilíbrio de forças: o PT tem o Poder Executivo na União, enquanto o PSDB continua forte, governando os dois principais Estados e, por seu peso em parte da mídia, mantendo a hegemonia ideológica. O resto está essencialmente com PMDB e PSB. Isso significa que, se em 2014 os tucanos ganharem a Presidência, pouco restará ao PT. Neste caso, a política que Lula comandou, no sentido de aliar-se com partidos de centro, terá deixado frágil o PT, porque sem a Presidência que poder terá ele? Um sinal disso é a situação vulnerável em que ficou o partido na cidade de São Paulo. Tudo ainda pode mudar mas, por enquanto, a tão decantada intuição de Lula, ao escolher Fernando Haddad como candidato por ser um nome novo e de pouca rejeição, não deu certo. Pior, a tentativa de forjar uma aliança com o prefeito Kassab custou caro em credibilidade, a Lula e ao PT. Talvez fosse bom o PT não depender tanto de um líder e de um cargo.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras