Por Renato Janine Ribeiro
Uma coisa que me surpreendeu, quando trabalhei em Brasília num cargo de confiança bastante técnico e nada partidário (como diretor de avaliação, na Capes, incumbido de avaliar os milhares de doutorados e mestrados brasileiros), foi ver como é difícil a situação de quem assume tais cargos. Esse assunto costuma ser tratado politicamente, sob a forma de críticas ao número de cargos de confiança. Mas nunca o vi ser tratado humanamente, vendo a dificuldade que acarreta para quem se muda para a capital por um período, em princípio, provisório. Esse lado "humano", obviamente, tem consequências políticas.
Explicando os cargos de confiança: eles incluem, além dos ministros e secretários executivos, uma hierarquia de DAS, que vão de 1, o mais baixo, até 6, diretamente subordinado ao ministro. Cada nível de DAS tem remuneração e prerrogativas próprias. Por exemplo, só os DAS 4 e superiores têm direito a auxílio-residência, necessário para quem vem de fora da cidade em que vai trabalhar. Isso vale para Brasília, onde está a maioria dos dirigentes federais, mas também para outras cidades. Por exemplo, o diretor da Biblioteca Nacional, que fica no Rio de Janeiro, tem seu DAS (ou, como se diz, "é um DAS") e, se vier de fora do Rio, receberá auxílio para a moradia. Este valia 2100 reais por mês em 2008 e é apenas suficiente para pagar as despesas de residência, até porque é prudente o DAS evitar um compromisso de longo prazo (o aluguel de um apartamento por tempo fixo), dado que pode ser demitido ou demitir-se a qualquer momento.
Outra prerrogativa: os DAS 5 e 6 têm direito a usar carro oficial (a serviço, obviamente), enquanto os outros DAS só podem utilizá-los acompanhando os primeiros. Uma curiosidade é que o DAS-5 usa carro oficial branco, com logotipo enorme do órgão em que trabalha, enquanto o DAS-6 utiliza carro oficial preto, com discreto logotipo genérico anunciando tratar-se de serviço público federal. Há um curioso dégradé que vai do lógico (o pagamento diferenciado, certos direitos hierarquizados) ao risível (a cor do carro e, pior, as formas de tratamento que o dirigente tem de usar). Certa vez, tive de responder ao mais importante dos senadores. Era uma formalidade qualquer, mas disse à minha secretária que subscreveria "atenciosamente" sem nenhum problema mas me recusava a dar, àquele prócer, a fórmula "respeitosamente". Veio então uma funcionária categorizada com um manual, que mandava autoridades de meu nível usar o "respeitosamente" com os membros do Senado Federal. Lembrei um livro que escrevi sobre a etiqueta nas cortes do Antigo Regime...
Um depoimento de cinco anos na ponte aérea
Voltando ao que é sério, bastante sério: numa Federação, é preciso que um número razoável de DAS-4 a 6 venham de fora da capital. Compreende-se que os DAS-1 até 3, que não têm auxílio para morar, sejam sobretudo de carreira e/ou já morem em Brasília. Contudo, quem sai de seu Estado para viver no Distrito Federal enfrenta escolhas difíceis. Precisa decidir se muda mesmo, ou se mantém casa e família no Estado de origem. Se voltar para casa toda semana, a passagem sai do seu bolso. Este é um ônus financeiro alto. Há também o ônus afetivo de estar longe dos entes queridos. A alternativa é mudarem todos para a capital. Isso implica conseguir um emprego para o cônjuge e transferir os filhos de escola, com as rupturas de vínculos que isso requer. Evidentemente, em especial ante os riscos de apagão aéreo, humanamente falando a solução menos ruim é a segunda, mas notem os custos. Evita-se o desgaste do alto funcionário, porém seu cônjuge precisará de um emprego, geralmente no governo, mas em outro ministério, recendendo um tanto a favor, e os filhos mudarão toda a sua rede de relações, numa fase delicada da vida. Mudam amigos, sotaque, hábitos.
Dá para entender que quem se transfere mesmo para Brasília dificilmente queira sair de lá? Delfim Neto disse certa vez que camadas geológicas vão se depositando no DF, cada uma legada por um governo. Porque quem pagou tanto para se mudar dificilmente vai querer, desde que se adapte, voltar para seu Estado. Daí que muitos procurem se manter lá, seja no governo, seja em entidades não governamentais mas que com frequência têm contatos com o poder público.
Daí, também, outra consequência. Se é natural supor que, ao fim de quatro ou oito anos, isto é, de um mandato presidencial, mudem os detentores dos cargos - o que em tese permitiria prever o retorno, não fosse o enorme custo afetivo, de que falei - também sucede muita demissão e nomeação ao longo do mandato. Chefes e subordinados se indispõem. Vi ministros realocarem DAS que eles mesmos haviam demitido. Porque há o lado humano. Imaginem que em maio, na metade do ano escolar, alguém deixe o cargo e, com ele, Brasília; como ficam o cônjuge e os filhos? Em dinheiro, o custo de voltarem todos para seu Estado já é alto. Em termos humanos, o preço sobe exponencialmente. Daí que não se queira largar o cargo. Por isso, ou as pessoas se apegam a eles e fazem de tudo para os manter, ou procuram ir de cargo em cargo, governo após governo. Daí, finalmente, as camadas geológicas...
O que fazer para melhorar essa situação? Não sei. A solução que eu e vários adotamos foi a de pagar passagens para nossos Estados, onde continuamos vivendo, mesmo trabalhando a semana toda em Brasília. Não aconselho, porém; você fica sem raiz. Passei quase cinco anos sem saber onde vivia. Deve haver uma solução para isso, mas ignoro. Creio que deveria, pelo menos, levantar um problema que afeta muitos quadros graúdos do país, mas passa sem comentários na discussão politica.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
E-mail rjanine@usp.br
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