segunda-feira, 6 de junho de 2011

O vice mais forte de nossa história


Renato Janine Ribeiro
Valor econômico, 06/06/2011

Nunca antes na história deste país, tivemos um vice-presidente poderoso quanto Michel Temer. Outros alcançaram poder depois da Vice-Presidência, como João Goulart, José Sarney e Itamar Franco, que se tornaram presidentes graças à renúncia, morte ou impeachment do titular. Mas Sarney e Itamar, como vices, foram apagados. No final da ditadura militar, Jô Soares nos divertia com um sketch em que um político se recusava terminantemente a ser vice. Indagava: "Alguém já viu uma avenida Vice-presidente Fulano? Uma praça Vice-presidente Beltrano?" Dizia-se que era uma piada com Marco Maciel, ex-governador nomeado de Pernambuco que, como presidente da Câmara dos Deputados, ajudara o ditador Geisel a redigir as emendas constitucionais baixadas com o nome de "pacote de abril", em 1977.

Assim, quando Sarney aceitou a Vice-Presidência, ele provavelmente não esperava ser sequer nome de rua. Encerrava sua carreira. A ironia é que, com a morte de Tancredo Neves, esse vice conseguiu uma sobrevida de três décadas, bem como a continuidade de seu mando no Maranhão, acrescido do Amapá, enquanto Marco Maciel veio a ser vice-presidente, sim, mas de Fernando Henrique Cardoso - um vice honrado e inexpressivo.

Na verdade, antes de Temer, o único vice importante como vice foi João Goulart. Em 1955, ele se elegeu com o presidente Juscelino, do PSD, trazendo-lhe os votos dos sindicatos e do PTB. Nesse mandato, foi influente. Mas em 1960 ele se elegeu vice de Jânio, sem ser seu parceiro de chapa. Só que, em sua segunda vez, ele foi o contrário de Michel Temer. Longe de ter poder, Goulart foi um vice esvaziado.

Temer, um grande articulador, pode ofuscar Dilma

O que temos hoje com Temer? Há fatos e há rumores. Os fatos são que ele conseguiu manter a bancada do PMDB coesa, a favor de Dilma quando se votou o salário mínimo, contra ela quando se aprovou o código do desflorestamento. Os rumores são que Dilma ameaçou demitir todos os ministros do PMDB - ameaça que, não sendo cumprida, corre o risco de desmoralizar a Presidência - e que Temer e Palocci mantiveram um bate-boca. São quatro vitórias para o vice. O que não tivemos, nos vices eleitos pelo povo em nossa história, foram personagens que, de seu cargo pouco destacado, mostrassem uma capacidade de articulação tão grande quanto a sua.

Some-se que um vice pode ser isolado, excluído, o que se quiser; mas não pode ser demitido. Ele, na pior das hipóteses, é o nada que pode virar tudo. Collor tentou reduzir Itamar a um nada. Itamar acabou presidente. Portanto, se Dilma rompesse com Temer, demitindo por exemplo todos os ministros pemedebistas, ela não poderia ficar doente, viajar nem, muito menos, ter uma moléstia grave, renunciar ou morrer. Veja-se, a título de comparação, José Alencar, nosso último vice. Sabíamos todos que ele discordava completamente da política econômica de Lula, mas jamais mexeu com ela, em suas muitas interinidades. Já Temer, se presidente, fará o governo que ele quiser.

Daí, seguem-se duas consequências. A primeira é que o PMDB pode mudar de perfil. Não é provável, mas se torna remotamente possível. A força do PMDB, desde o fim da ditadura, esteve em não ter identidade. Ele reúne gente digna e gente interesseira, políticos de direita e de esquerda. Mas Temer está conseguindo articular esses líderes tão distintos entre si. Até agora, o PMDB se mostrou poderoso na medida em que renunciou, há 20 anos, a lutar pela hegemonia que representa a Presidência da República, investindo em vez disso em bancadas numerosas no Congresso e numa vasta população de governadores e prefeitos. O que os une não tem sido nenhum ideal, mas o interesse: ele é um amplíssimo lobby. Hoje, porém, começa a ser possível, embora ainda muito improvável, uma disputa do PMDB pela hegemonia política.

A segunda é que Dilma Rousseff precisa, mais que nunca, tornar-se uma imagem de marca, imprimir seu estilo à política. Comentei, meses atrás, que ela não mostrava um estilo, ao contrário de seus dois antecessores, ambos políticos sedutores. Fernando Henrique conquistava pela fala racional - ainda, ressalva ele com humor, que fosse uma razão "no nível do senso comum". Lula chegava aos corações e mentes pelas metáforas e pela linguagem da experiência cotidiana. Talvez Dilma não precise, tanto quanto eles, de um estilo - porque eles, a despeito de suas diferenças, fizeram o trabalho que tinha de ser feito, consolidando a democracia, mudando a economia, tornando prioritárias as políticas sociais.

Dificilmente Dilma, ou qualquer outro político sensato, terá hoje a propor algo tão inovador em nossos costumes quanto seus predecessores. A grande mudança já ocorreu. Seu papel é o de dar continuidade. Mas, mesmo assim, o estilo lhe faz falta. Num comício na Bahia, ela só foi (muito) aplaudida quando mencionou Lula. Entende-se que, perto do mais carismático de nossos presidentes, Dilma empalideça. Lula ofuscaria qualquer um. Mas ela não pode se empalidecer diante de seu próprio vice, Michel Temer. Se Dilma jogar o papel da técnica competente na Presidência, ajudada no Congresso pelos operadores que temos visto, sem ter por trás algo como o apelo de FHC à opinião pública ou de Lula ao povo, ela pode perder. Temer conhece muito melhor do que ela o Parlamento. O que fortaleceu Fernando Henrique e Lula foi a capacidade que demonstraram de ir além do Executivo e do Legislativo, para falar com a sociedade. Respeitaram os poderes constituídos, mas souberam cultivar o povo soberano. Como Dilma vai fazer isso, como vai conseguir ser líder, não sei. Mas, se a liderança presidencial ficar vazia, alguém a ocupará.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br

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