segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A presidência no feminino

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 2/1/2012

Estamos completando um ano com uma mulher na Presidência da República, a primeira em nossa história. A data pede reflexão. Três importantes países da América Latina elegeram nos últimos anos mulheres para governá-los: na ordem cronológica, Michelle Bachelet, no Chile, Cristina Kirschner, na Argentina, e Dilma Rousseff. Todas tiveram ótima avaliação. Bachelet, que não fez seu sucessor, saiu do governo altamente popular. Cristina foi reeleita com ampla votação. As pesquisas de opinião são bem favoráveis a Dilma. Mas mal temos mulheres nos demais escalões do poder. São poucas as governadoras, prefeitas, deputadas, senadoras e vereadoras. Sentimos dificuldade até com a palavra para designar quem está na chefia de Estado. Embora Dilma Rousseff se diga "presidenta", quase toda a imprensa a chama de "presidente". O dicionário valida ambas as formas, mas já li no Facebook, depois que usei o "presidenta", que isso provaria meu suposto petismo... Uma dedução, obviamente, mal feita.

Porém, tudo isso é sintoma de uma grande dificuldade, não apenas dos brasileiros mas dos homens em geral - e aqui uso "homem" no sentido de varão e no de membro do gênero humano -, para assimilar a novidade que é ter mulheres no poder. Só no século XX elas adquiriram o direito de voto. No Brasil, votaram pela primeira vez em 1933. Antes disso, algumas mulheres exerceram o poder como rainhas, por direito próprio - isto é, não como meras esposas de homens que fossem reis. Mesmo isso não foi fácil. Ironicamente, a maior estadista inglesa, Elizabeth I, que reinou de 1558 a 1603, só nasceu devido à ansiedade do pai, Henrique VIII, por ter um filho varão. Como o primeiro casamento do rei lhe deu apenas uma filha, ele receava que uma sucessão feminina fosse contestada. Daí, a famosa série de divórcios de Henrique e sua ruptura com a Igreja Católica - para, afinal, ter como definitiva sucessora logo uma mulher... Mas, embora Elizabeth tivesse enorme poder em suas mãos, seus auxiliares a pressionavam para se casar. Ela deveria ceder o poder a um homem. No fim das contas, ela só governou porque decidiu conservar-se solteira. Contudo, a estabilidade de seu longo governo teve um preço: com ela, terminou sua dinastia. O trono inglês passou aos reis da Escócia.


A despeito de tudo, avançamos muito. Lembro que, em 1989, a antropóloga Mariza Corrêa foi a primeira diretora de uma faculdade na Unicamp. Já a USP demorou mais - o que é espantoso, levando-se em conta que tem unidades, como a enfermagem e a educação, predominantemente femininas - mas já teve uma reitora. A primeira senadora do Brasil foi Eunice Michilles, em 1979; ela era, porém, apenas uma suplente, que assumiu o cargo com a morte do titular. Só em 1990 tivemos mulheres eleitas para o Senado. Hoje, isso já não é exceção, mas está longe de ser a regra. Uns anos atrás, ouvi uma vereadora paranaense contar que - toda vez que falava na Câmara - os colegas homens riam dela. Isso tornou sua vida insuportável até que, participando em Curitiba de um encontro de mulheres detentoras de mandatos, percebeu que podia ter o apoio, mesmo a distância, de outras mulheres, e enfrentou a situação.

Ainda é difícil, porém, aceitar uma mulher chefiando o governo. Não falo do mundo islâmico; curiosamente, países muçulmanos - embora não árabes - já tiveram mulheres no poder, como Benazir Bhutto, no Paquistão (mas será que o fato de ser mulher contribuiu para ela ser assassinada?). Penso em nosso próprio país. Porque o preconceito é tenaz. Mesmo quando não é agressivo contra as mulheres, um resíduo importante dele aparece na quase-impossibilidade de conciliar o que se espera da mulher e o que se espera do governante.

De quem governa, esperamos que mande. Da mulher, esperamos que seja doce. É possível mandar docemente? Milhares de anos nos acostumaram a uma experiência em que o ato de mandar é duro, agressivo, viril. Também nos acostumaram à ideia de que a mulher é boa, compreensiva, receptiva. Daí que, quando uma mulher manda, entremos em curto-circuito. Talvez tenha sido isso o que levou à queda de Nelson Jobim, político hábil e capaz: quem sabe não aceitasse que uma mulher mandasse nele, que por sua vez dava ordens à cúpula das Forças Armadas. A sucessão de declarações aparentemente desastradas de Jobim, praticamente forçando Dilma a exonerá-lo, permite considerar essa explicação tão boa quanto qualquer outra.

A situação tampouco é fácil para as mulheres. Hillary Clinton, quando o marido concorreu à Presidência dos Estados Unidos, teve que reduzir seu perfil de profissional competente e se apresentar como dona de casa que fazia "cookies". Depois voltou a seu perfil mais verdadeiro, mas parece que nunca presidirá seu país.

Creio, porém, que é justamente esse problema que traz, no seu bojo, a solução. As mulheres assumirem o poder não significa elas se tornarem másculas - imagem que se insinua, às vezes, sobre a própria Dilma. Significa um novo estilo de poder. Não é fortuito que estes anos se fale tanto em "soft power". Aproveitando a palavra, mas dando-lhe novo sentido, o poder precisa se feminizar. Ele não pode, numa democracia, estar na dureza, na repressão, na ordem. Aliás, depois do hiper-masculino Collor, nossos três últimos presidentes foram mais de persuadir que de ordenar. Sua retórica era mais importante que suas ordens. Essa é uma das tarefas que teremos de cumprir, nós e o mundo, nos próximos anos ou décadas: compreender, definir, construir um poder com mais traços femininos. Isso pode demorar bem mais que o mandato de Dilma Rousseff, mas vai acontecer.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

Um comentário:

  1. Saudações

    Uma coisa que não entendo é o apego que determinados grupos demonstram em relação à questão do gênero na Língua Portuguesa. Que importância tem chamar "presidente" ou "presidenta"? Será que a mulher fica mais competente se a chamarmos de "presidenta"? Acho que não.
    A meu ver, o mais importante é nos expressarmos com clareza, respeitando acima de tudo nossa língua-mãe.
    Não entendi o entusiasmo do ilustre articulista com o primeiro de governo Dilma. O fato de ela ser mulher não a torna mais ou menos capaz ou confiável.
    Além de serem mulheres eleitas presidentes de seus países, o que aproxima Michele, Cristina e Dilma? Por certo, não são seus modos de governar ou como lidam com o poder.
    Michele, mesmo popular, não fez sucessor. Parece ser a única que não tinha um padrinho político dando sustentação à candidatura.
    Cristina, à sombra do "maridão" Nestor, se elegeu (e reelegeu). Tomou decisões bastante questionáveis em relação à economia, envolveu-se em escândalos de corrupção (a mala de dinheiro no banheiro, por exemplo) e manteve uma relação, no mínimo, áspera com a imprensa. Aproveitou-se da morte do "maridão" e se reelegeu com folgas.
    Dilma, a "substituta do homi", como fez questão de se firmar (não me lembro de ela ter tentado se desvincular da imagem de apadrinhada do Lula), tem mantido o jogo do governo anterior. No primeiro ano de governo, manteve o discurso do Lula, fez o que o "papai" mandou. Fingiu que não viu a corrupção dos seus ministros. Afinal, quem escolheu essas figuras: ela ou o Lula? Finge que está preocupada com questões sociais, faz de conta que combate a corrupção com o que resolveram nomear de "faxina ética" e tenta desfazer a imagem de mulher durona. Aprendeu a chorar com o Lula. Mas não é isso que esperam de uma mulher, sensibilidade à flor da pele? E o pior é que o povo está comprando a imagem da mulher que comanda, quer pôr tudo em ordem, mas “sin perder la ternura”. No mínimo, risível.
    Quanto à Hillary Clinton ter se anulado pela carreira do marido, não foi bem assim. Ela, por ser muito inteligente, sabia que a eleição de seu marido idiota seria uma porta aberta para sua própria eleição à presidência dos EUA. Acontece que o Clinton cedeu aos seus impulsos animais e praticamente detonou as pretensões presidências de Hillary.
    Teria sido a saída do ex-ministro Nelson Jobim por não aceitação do comando de uma mulher? Ou será que as “declarações desastrosas” tinham um fundo de verdade? Se fosse por declaração desastrosa, o ex-ministro Lupi não teria durado tanto (O cara disse que só saía abatido a tiros. Depois, disse que amava a presidente. De lascar, não?).
    O preconceito está em achar que mulher tem que ser doce, que poder, doçura, compreensão, receptividade e bondade não combinam ou que sejam apenas características femininas.
    Na verdade, devemos nos perguntar de que "poder" se está falando. A mulher precisa descobrir que já tem poder quando é responsável, diretamente – por vontade própria ou não –, da educação das crianças (futuros homens e mulheres).
    A mulher só conseguirá se impor quando abandonar o machismo. Quando a mulher não exige o uso de camisinha por medo de perder o parceiro, ela é machista. Quando ela acha que precisa se equiparar ao homem para ser respeitada, ela é machista. Mulheres não são iguais aos homens. É essa diferença, o que nos torna únicas.
    O problema do Brasil não é ter mulheres mais mulheres em cargos de chefia. A questão é ter gente honesta (de qualquer gênero, cor de pele, estatura, etc.), educada e competente no poder.

    Um abraço.
    Patricia Jacques Fernandes.

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