segunda-feira, 4 de junho de 2012

A verdade

Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 28/5/2012 O Brasil sempre lidou mal com sua história. Nossas rupturas não são para valer, mesmo quando deveriam ser. Mudamos tudo para manter tudo como estava, na célebre frase do romance de Lampedusa, "O Leopardo". Ou "façamos a revolução antes que o povo a faça", como disse o governador de Minas Gerais, Antonio Carlos, em 1930. Daí que nossas mudanças fiquem truncadas. Vejamos os grandes acontecimentos de nossa história. A independência foi proclamada pelo príncipe herdeiro de Portugal, a conselho do pai ("Pedro, toma essa coroa antes que um aventureiro lance mão dela"). A abolição foi assinada pela princesa regente do Império. A República foi proclamada por Deodoro, que o imperador fizera marechal. A revolução de 1930 foi liderada por Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda do presidente que ele depôs. A ditadura Vargas foi derrubada em 1945 por Gaspar Dutra, ex-ministro da Guerra do presidente que ele depôs. A segunda ditadura caiu em 1985, colocando na presidência José Sarney, que um ano antes chefiava o partido do regime. Com tudo isso, como "passar o Brasil a limpo"? Cada coisa ruim de nossa história - a colônia, a escravidão, o despotismo, a fraude eleitoral da oligarquia, o golpe militar de 1964 - sai de cena derrotada, mas na hora de mudar não se vai adiante. Não se cobra, não se conserta, não se renova. Não precisamos ter medo da verdade nem da Comissão A Comissão de Verdade é a tentativa, simbólica e mais que simbólica, de ir além disso. O Brasil demorou a criar a sua. Vários países já o tinham feito. Finalmente o fizemos. Pela primeira vez em nossa história, tratamos o passado vergonhoso de maneira consequente. Se ele é infame, por que calá-lo? Se foi repudiado nas ruas, por que não apurar o que ele efetivamente foi? Vá lá uma anistia, mas anestesia e amnésia por quê? O Supremo Tribunal decidiu não rever a anistia autoconcedida pelos mesmos que violaram leis humanas e acima do humano. Mas como perdoar, sem antes saber quem e o que está sendo perdoado? Na verdade, a lógica da Comissão é a mesma da lei do governo FHC, que manda indenizar as vítimas da ditadura. É também a lógica das ações afirmativas, que o Supremo recentemente validou por unanimidade. Em todos esses casos se reconhece que quem mandava no Brasil agiu mal - fosse o regime militar, fosse a oligarquia escravagista. Essa ação má e injusta causou vítimas e danos. Ora, numa linha de ação consistente mas inédita em nosso país, desde a iniciativa citada do presidente Fernando Henrique o Estado brasileiro explicitamente condena a ação má desses grupos e, consequência lógica também nova entre nós, busca reverter os resultados igualmente maus que produziram. Essa a razão, por exemplo, de compensar os afrodescendentes para que seu terrível ônus histórico, que os situou nas camadas subalternas da sociedade, seja temporária e instrumentalmente convertido em bônus. Isso também exige trabalhar a memória. Mentiras e silêncios precisam ser substituídos pela verdade. Uma tradição forte que nos vem da Grécia antiga celebra o bem, o belo e o verdadeiro. Essa trindade de valores deveria andar junta. A verdade sobre o passado exige expor o que nele representa o mal. Só assim produziremos algo do bem. Tratando-se de uma história construída a partir do poder, tem que ser revelado o mal exercido com e pela dominação. Quando passamos, gradualmente, à democracia, a contínua linha histórica baseada na exclusão e na opressão não deve subsistir. Mas não basta distribuir renda. É preciso abrir o pensamento, a compreensão do passado, a construção do futuro. Nada disso se fará com a mentira ou a ignorância. Pessoalmente, não defendo a revisão da anistia. Mas isso porque a verdadeira discussão é sobre a memória. Notem que já esquecemos os presidentes da ditadura. O último governante que lembramos com admiração, antes dos recentes, foi Kubitschek, que a ditadura cassou; antes dele, Getúlio, cuja herança ela quis liquidar. Contra o mal na política, a verdade é o que há de mais precioso. Só precisa ter medo dela quem tem razões para temê-la. É bom separar o joio, raro, do trigo, abundante. Dezenas de milhares de oficiais das nossas Forças Armadas, que nada têm a ver com a tortura, só podem se sentir bem ao se demarcarem da minoria que, um dia, agiu contra a honra da farda. O Brasil ganha, desenvolvendo um processo de mudança consistente, pelo qual não só reduz a pobreza medida em poder de compra mas também, e sobretudo, revisa a fundo os significados atribuídos pela sociedade ao que são liberdade e opressão, crescimento econômico e exploração do outro, florescimento da pessoa e sua escravização ou humilhação. Isso não ocorre só no Brasil. Um século atrás, três por cento da população mundial, se tanto, tinham direitos humanos em ampla escala. Hoje, mesmo não sendo otimista, essa proporção terá passado a trinta, talvez quarenta por cento no mundo. Falta muito. Mas nunca tanta gente - incluindo mulheres, povos de cor, como os chamava Sukarno, minorias comportamentais, como homossexuais - desfrutou de direitos como esses. Essa multiplicação por dez do porcentual de seres humanos respeitados, em cem anos, é um avanço que nunca antes ocorreu - e nunca mais ocorrerá, nessa dimensão. Se e quando todos os habitantes do mundo tiverem reconhecidos seus direitos humanos, o avanço a partir de hoje será uma multiplicação por dois ou três, não por dez, que foi o que conseguimos nas últimas gerações. Ora, para realizar este processo, é preciso acabar com a mentira. Saber o que foram (ou, infelizmente, ainda são) a tortura e a opressão extrema é uma condição para se construir um mundo melhor. Renato Janine Ribeiro - é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras © 2000 – 2012. Todos os direitos reservados ao Valor Econômico S.A. . Verifique nossos Termos de Uso em http://www.valor.com.br/termos-de-uso. Este material não pode ser publicado, reescrito, redistribuído ou transmitido por broadcast sem autorização do Valor Econômico. Leia mais em: http://www.valor.com.br/politica/2678714/verdade#ixzz1woCQxpNL

Popularidade e eleições

Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 21/5/2012 Faltam cinco meses para as eleições, e o quadro é o seguinte. A presidente da República tem forte popularidade. Mas seu partido, o PT, parece ter poucas chances na competição pelas principais capitais. Está fora de cena no Rio e talvez Belo Horizonte. Já em Porto Alegre e São Paulo, pela primeira vez desde que existe o segundo turno (1988), até corre o risco de ficar fora da final. Como conciliar dados assim antagônicos, um favorável e outro contrário ao PT? Comecemos notando que esse cenário desmente os comentários que ouvimos de adversários figadais: tucanos, que acusam o governo federal de mexicanizar o país, querendo abolir toda oposição; petistas, que se regozijam de ver a oposição minguando e já anunciam sua extinção. Nenhum deles tem razão. É verdade que muitos, inclusive eu, pensamos que a principal oposição, a que o PSDB comanda, com apoio do DEM e PPS, está sem muito projeto ou rumo. Mas ela tem votos. Pode ser que, se voltar ao poder, não saiba bem o que fazer. Só que uma parte razoável dos eleitores está disposta a votar nela. Ou seja, nem a oposição morreu, nem o Brasil vai ter um partido só. Como sempre, o exagero não é bom conselheiro. Mas, com todos os riscos que implica uma previsão a quase meio ano das eleições, o que o quadro atual indica para nossa política? Primeiro, que a popularidade presidencial não se traduz automática ou integralmente em votos. Lula foi o presidente mais popular de nossa história, pelo menos desde que esse dado importa - isto é, desde que o povo passou a ser ator em nossa política, o que não aconteceu no Império, na República Velha ou na ditadura militar. Mas, de cada cem cidadãos que o aplaudiam no final de mandato, quarenta não votaram em sua candidata, no primeiro turno, e quase trinta escolheram o rival dela na decisão das eleições. De lá para cá, Dilma superou a frieza com que o povão a recebeu de início e ainda lhe somou o respeito da classe média e rica, granjeando um nível elevado de respeito. Parabéns. Mas isso se traduz em votos? Não é óbvio. Em que prefeituras o PT estará apostando em 2010? Continua havendo uma estranha política em nosso país. Por um lado, o PT governa, na escala federal - mas a partir de um único cargo, o maior da estrutura política brasileira, porém ainda assim solitário: a Presidência da República. Com um vice que não é confiável, isso significa depender demais de uma só pessoa, Dilma Rousseff. O PT é tudo e pode tornar-se quase nada. Por outro lado, as forças políticas minoritárias, que não conseguem afrontar a presidência, mostram os músculos nos Estados e municípios. Mais nos Estados do que nas cidades. Aliás, muitos municípios de tamanho médio passaram para o PT estes anos. Graças à Presidência da República ele as conquistou, à medida que políticas as mais variadas - sociais, econômicas, universitárias - beneficiavam cidades que, antes, se sentiam abandonadas. Mas o PT avançou pouco no plano dos Estados. Hoje ele, que é fraco nos três maiores PIBs, governa o quarto e o sexto, Rio Grande do Sul e Bahia. Mas em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, nem chega ao segundo turno. Uma razão para o semi-isolamento do PT é sua característica de partido que, sem ser extremista, está num dos polos da política brasileira. Ele foi para o centro desde que ganhou a Presidência, em 2002 - mas ninguém com algum peso está à sua esquerda. Por isso, ele não pode jogar um lado contra o outro. O PSDB pode aliar-se com o PMDB ou o DEM. Só não namora o PT. Já este não pode se aliar com o PSDB ou o DEM. Só lhe resta, dos partidos grandes, o PMDB, a agremiação menos definida do país. O próprio PSD, ao dizer seu fundador que não é de direita, de centro nem de esquerda, se mostra um PMDB mais explícito que o original em sua vagueza. Daí que o PT só ganhe eleições quando a polarização das coisas o coloca como finalista, e o êxito de suas políticas no âmbito respectivo cai bem junto aos eleitores. Por isso, ele perdeu governos que conquistara - Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. Por isso, conservou o governo federal e a Bahia. Um esgotamento de material o levou à derrota em Porto Alegre, até então sua vitrina, e dificulta sua volta ao poder naquela cidade. Felizmente, estamos longe do partido único. Mas o caminho do PT é curioso. Até 2002, muitos esperavam uma ascensão gradual do PT: prefeituras, Estados e, finalmente, a Presidência. Lula conseguiu inverter a ordem. Contudo, nas eleições para os Estados ocorridas desde então - 2002, 2006 e 2010 - o PT avançou pouco. Mas prospera nos municípios pequenos e médios (nem tanto nas capitais). No fundo, é aquela mesma estratégia com uma modificação. A mudança foi ter começado pela presidência, que governa a economia e é decisiva para programas sociais. Economia e sociedade afetam diretamente os municípios. Dizia Ulysses Guimarães: as pessoas não moram nos Estados ou na União, mas nos municípios. É neles que a ação do PT mais dá retornos. Na verdade, no Brasil, não sabemos bem o que são os Estados. Não são os componentes originais da Federação. Não foram eles que a criaram; foi ela que lhes deu autonomia. Desde a colônia, a força no Brasil é municipal. As competências legislativas das Câmaras, municipal e federal, são notórias. Já as assembleias estaduais têm menos a fazer. Talvez por isso, conquistar municípios seja uma boa estratégia de longo prazo. Consolida a presidência, dá apoio nas bases, prepara - um dia - a eleição de mais governadores, que são personagens importantes na política nacional, líderes em seus Estados mas, no fundo, afetam menos a vida das pessoas que um bom (ou mau) prefeito. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 14 de maio de 2012

A democracia e a presidência

Autor(es): Renato Janine Ribeiro Valor Econômico - 14/05/2012 Ouvimos com frequência advogados, juristas, políticos e analistas políticos dizerem que, no Brasil, a iniciativa de legislar saiu do Poder Legislativo e foi tomada pelo Executivo. Dizem isso, e o lamentam. Concordo com o diagnóstico, mas nem tanto com o lamento. Há razões fortes, objetivas, para o protagonismo legislativo da Presidência da República. Isso porque, gostemos ou não (eu, pessoalmente, não gosto), em nosso país o Poder mais democrático é o Executivo. Quero dizer: ele é o Poder cuja eleição é mais democrática. Só na escolha do chefe de Estado todos os brasileiros são iguais, todos os nossos votos têm o mesmo peso. Esse fato fortalece a Presidência, aos olhos do povo, e enfraquece o Parlamento. Sim, há outro argumento que é dado para nossa preferência - brasileira, latina ou do continente americano - pelo presidente, em detrimento dos parlamentares. É que nós, sobretudo os latino-americanos, gostaríamos de personalizar a política. Para nós, o nome da pessoa e sua história importam mais que o partido e seu programa. Seria esse, quem sabe, um sinal de nossa imaturidade política. Mas tal explicação, mesmo que parcialmente correta, é insuficiente. Na verdade, a grande ferida de nossa vida institucional é que a forma de composição da Câmara dos Deputados reduz seu peso democrático. No regime presidencialista, que predomina nas Américas, é comum o Parlamento (na verdade, usa-se mais o nome "Congresso") contar com duas casas. Uma delas, a Câmara dos Deputados, dos Representantes ou Câmara Baixa, representa o povo e é renovada integralmente cada tantos anos. Outra, o Senado, tem mandatos longos, conta com membros mais experientes (mais velhos, também, ou, pelo menos, que tenham "senioridade") e representa os Estados, províncias ou até mesmo, em raros casos, outras organizações da sociedade. O Senado, ou Câmara Alta, é ainda chamado de "casa revisora", porque seria menos importante que os deputados. Estes, porque representam o povo, numa democracia são mais significativos. O Senado revisaria decisões dos deputados, mas teria menos atribuições que eles. Só que no Brasil o Senado é mais relevante que a Câmara. Por quê? Insisto: esse fato é estranho, se o poder vem do povo e quem representa o povo são os deputados (o Senado, em nosso sistema, representa os Estados). Acredito que a Câmara se tenha esvaziado porque não representa fielmente o povo e, em parte, imita o Senado. Há um piso e um teto para o número de deputados por unidade da federação, o que achata a representação do Estado mais populoso e exacerba o número de deputados de vários Estados com pequena população. Na Câmara, os brasileiros não são iguais. Uns valem mais que outros. Isso é correto? No Senado, sim. O princípio de nosso Senado é dar igual peso a cada unidade federada. Há um certo elemento artificial e mesmo artificioso nisso, porque, ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil não foi formado pela união de Estados soberanos. Foi a república, desde 1889, que concedeu autonomia às antigas províncias, antes governadas por presidentes nomeados pelo poder central, sediado no Rio de Janeiro. O Senado não deriva da formação histórica do país. Ele é uma criação política, já no Império, que mudou de papel ao longo de nossa história republicana. Mas assim seja: no Senado, faz sentido cada Estado ter o mesmo número de votos. Só que, quando esse princípio de representar os Estados (e não só o povo) se estende à Câmara, esta perde seu significado. Lembremos que a Constituição americana garante, a cada Estado, o "mínimo" de um deputado. A nossa assegura oito... Daí, também, que lá haja Estados com um deputado e dois senadores, isto é, mais senadores do que deputados. Aqui, o menor Estado tem três senadores e oito deputados. Uma Câmara que se senatizou se priva de parte de seu papel. Ela deveria representar o povo ou, se quiserem, o eleitorado. Quando passa a representar o povo com ressalvas, sua missão constitucional se perturba. Vejamos: São Paulo, com 21,5% da população, tem 13,6% dos deputados. Em contrapartida, chegando-se aos Estados menos populosos, a super-representação fica nítida. Acre, Amapá, Rondônia, Roraima e Tocantins, contando com entre 0,3 e 0,8% da população brasileira, têm cada um 1,6% dos deputados. Já o Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Sergipe superam 1% da população cada um, mas ainda estão afastados do 1,6% de que dispõem na Câmara. Essa desigualdade se acentuou com a mudança na Constituição efetuada pelo ditador Geisel, em 1977. Com isso, a Câmara não representa cada brasileiro; representa paulistas, acreanos, mineiros; não é o que devia ser. Imitando (mal) o Senado, ela falta à sua missão e perde a vocação de voz maior do povo brasileiro. Disso, o que decorre? Que, se quisermos ver onde a voz do povo melhor se expressa, é quando escolhe o presidente da República. Não importa quem seja ele ou ela, ou seu partido. Isso valeu para Fernando Henrique e Lula, vale para Dilma e valerá para seus sucessores, se não houver uma grande mudança institucional. Será muito difícil alguém considerar que a voz do Parlamento - ainda por cima, dividido em numerosas legendas - seja mais representativa da vontade popular do que o eleito do voto universal e, sobretudo, igual. Se quisermos que o Parlamento ganhe o poder que deve ser seu, antes de mais nada precisa ser fortalecida a Câmara e, para isso, a principal medida tem de ser fazê-la representar o povo, não os Estados - que, para isso, já têm o Senado. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A Constituição tem um programa

Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 7 de maio de 2012 O Supremo falou: as políticas de ação afirmativa são constitucionais. Elas consistem em tratar desigualmente os desiguais, por um tempo e como meio, para que se consiga um fim fundamental, que é promover a igualdade de direitos entre as pessoas. A unanimidade na decisão é um sinal de que a sociedade brasileira, pelo seu maior tribunal, opta pela inclusão social dos grupos que, ao longo da história, foram discriminados negativamente. Mas vale a pena ver algumas implicações de longo prazo da decisão do STF. Comentei na semana passada que o Supremo dá mais valor a direitos humanos do que aos políticos. Nossos juízes compreendem melhor os direitos que têm pessoas - individuais ou mesmo muitos indivíduos - como titulares do que os que têm a pólis, a sociedade inteira como sujeito: por exemplo, o direito ao que se chama "democracia", o poder do povo. Conta-se que certa vez Fernando Henrique Cardoso teria reclamado de uma sentença do Supremo, má para as finanças governamentais, dizendo que "eles não pensam no Brasil". Mudando o contexto, eu poderia sugerir que os ministros pensam mais nos brasileiros do que no Brasil. Os brasileiros são titulares dos direitos humanos. Estes têm sido tratados com esmero por nossa corte suprema. Já o Brasil é a sociedade democrática que estamos construindo. A esse respeito, o STF parece ter menos convicções. Tolerou, como observei aqui, a concessão de dois governos estaduais a candidatos derrotados nas urnas. Se a reflexão dos ministros desse à questão da democracia a atenção que tem dedicado aos direitos humanos, isso não teria acontecido. Talvez pela mesma razão, salvo erro meu, os ministros não basearam seus votos sobre a ação afirmativa no artigo 3º da Constituição, que define os "objetivos fundamentais" de nossa sociedade. O Brasil assim se propôs em 1988 a "construir uma sociedade livre, justa e solidária" e a "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". Durante os primeiros anos de vigência da Constituição, esses pontos ficaram de lado. O salário mínimo não subia sequer o mesmo que a inflação, contrariando o artigo 7º da Carta, que diz quais necessidades do trabalhador ele deve atender. Mas os "objetivos fundamentais" do país foram se implantando. Por exemplo, é meta do Brasil a integração latino-americana (artigo 4º). Disso, podemos sugerir que o Mercosul e ações análogas sejam imperativo constitucional. Se um governo quiser sair dele sem razões muitíssimo boas, o Supremo poderá impedi-lo. Ou, se tivesse pretendido participar da invasão do Iraque, a corte suprema poderia tê-lo proibido, dado o princípio constitucional da não-intervenção. Não quer dizer que o Brasil não possa travar guerra alguma, nem ter conflitos políticos com os países vizinhos; mas isso teria de ser bem justificado. Nossa Constituição manda erradicar miséria e pobreza Entendo que as ações afirmativas visam a erradicar a desigualdade acentuada. Aliás, a Constituição manda erradicar, não só a miséria, mas a pobreza. Simplificando, é pobre quem vive da mão para a boca. Poupa ou progride pouco. Tudo o que ganha vai para sua sobrevivência. Já o miserável, trabalhando ou sem emprego, corta na própria carne. Alimenta-se de suas reservas físicas. Degrada-se. Está abaixo da linha de sobrevivência. Até se entenderia que a Carta priorizasse o fim da miséria. Mas ela não quer erradicar só esse traço indecente de nossa sociedade. Ela propõe "erradicar a pobreza". A Constituição quer uma sociedade brasileira de classe média. Quando a presidente Dilma disse que esse era seu objetivo, expressava a meta dos constituintes de 1988. Eles não quiseram o fim dos ricos. Mas propuseram o fim da pobreza. Todos devem ter direito de ascender na vida e de, poupando, adquirir bens duráveis. Se o farão, é outra coisa; mas a sociedade deve dar-lhes oportunidade para isso, de modo que, se não o conseguirem, tenham que culpar somente a si mesmos. Exige-se, do governante, que aja para reduzir a desigualdade injusta. É o que fundamenta - e limita - as ações desse tipo. Quando se tornarem desnecessárias, não deverão persistir; mas não antes disso. Assim, se é lícito adotar ações que ampliem a presença social de negros, mulheres e egressos de escolas públicas, por outro lado serão inconstitucionais medidas legais que direta ou mesmo indiretamente aumentem o protagonismo de brancos, varões e formados por escolas caras. Evidentemente, ninguém colocará isso às escâncaras; mas nosso país é perito em subsidiar os ricos e a classe média em programas ditos sociais, que aumentam, em vez de diminuir, a desigualdade. Parece-me legítimo interpretar a parte programática da Constituição de modo a determinar ações dos gestores públicos, em especial, penso eu, a das prefeituras. Há dias, Laura Capriglione informou, no jornal "Folha de S. Paulo", que a Prefeitura de São Paulo gasta "per capita", no Jardim Europa, o dobro do que despende em bairros pobres e necessitados da cidade. A Constituição permite contestar essa política. É até plausível contestar políticas que, mesmo não agravando a miséria, não a minorem. Talvez as consciências ainda não estejam maduras para isso. Mas acredito que em breve, se os poderes eleitos na cidade ou no país não explicitarem políticas de redução da pobreza, sobretudo a extrema, serão cobrados para tanto, pela opinião pública, pelo voto popular e também pelo Ministério Público e o Judiciário. Desde já, deveríamos exigir que cada plano diretor diga como vai melhorar a condição de vida dos pobres. Leis ou atos que aumentem a distância entre quem mora bem e quem mora mal devem ser declarados inconstitucionais. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

O Supremo e a Constituição

Renato Janine Ribeiro Valor Econômico 30/04/2012 Ao tomar posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Ayres de Brito recomendou ler a Constituição todos os dias. Isso vale para quem opera com o Direito e, penso eu, para todos os cidadãos. Muito bem. Mas será bom que os tribunais superiores e o próprio Supremo também sigam a sugestão do novo chefe do Poder Judiciário. Porque decisões importantes do Tribunal Superior Eleitoral, endossadas ou toleradas pelo STF, vão contra o maior princípio de nossa Constituição: a democracia. Há várias teses sobre a democracia. Mas uma delas é fundamental e inconteste. Democracia é, literalmente, poder do povo. Só há democracia se o povo escolher os governantes. É ele, diretamente ou por seus representantes eleitos, quem decide leis e impostos. Ninguém governa democraticamente um país, Estado ou município se não tiver sido eleito. Nas Américas, que adotam o regime presidencialista, os chefes do Executivo são votados diretamente pelo povo. Só em casos excepcionais, como se vagar o cargo perto do fim do mandato, cabe uma eleição indireta para completá-lo. E nessa eleição votam representantes do povo, isto é, pessoas que este elegeu. No parlamentarismo, o povo não elege diretamente o chefe de governo, mas vota em deputados, que elegerão o primeiro-ministro. Também aí, só pode governar quem o povo, em última análise, escolheu. Na democracia, todo poder emana do povo e é exercido em seu nome, como disseram nossas Constituições republicanas, ou diretamente por ele, como acrescentou a Constituição de 1988. A democracia não admite governante não eleito O que não se admite, num regime democrático, é que se dê posse ao candidato derrotado pelo povo. Esse é o fim da democracia. Mas, nos últimos anos, o TSE cassou mandatos de governantes eleitos e mandou dar posse ao candidato derrotado. Em 2009, destituiu os governadores do Maranhão, Jackson Lago (PDT), e da Paraíba, Cassio Cunha Lima (PSDB), dando seus cargos a Roseana Sarney e José Maranhão. O mesmo tinha acontecido em vários municípios - como Mauá (SP), que, depois da eleição de 2004, foi governado por quatro anos pelo candidato perdedor. Debato aqui só os eleitos pelo voto majoritário - presidente, governadores, prefeitos e senadores. No voto proporcional, a cassação prejudica o candidato, mas sua cadeira permanece com seu partido (ou coligação). O voto popular é preservado. No majoritário, a cassação tem o efeito oposto. É um tapetão. Descarta o voto popular. Não sou contra cassação de governantes pela via judicial. Se cometeram crimes graves, percam o mandato. Haverá que medir a gravidade do delito. A cassação deveria valer somente para delitos sérios. Hoje ela está prevista para tantos casos que sua aplicação ou não é aleatória; não há meio termo. Mas essa é uma questão de dosagem jurídica do erro e da pena. O que discuto aqui é mais fundamental: é teórico, é constitucional, é ético. O que ofende a essência da democracia é dar posse ao candidato que o povo recusou. Nenhum tribunal tem, no regime democrático, o direito de inverter a decisão popular. Ele organiza o processo eleitoral. Pode mandar recontar os votos. Pode até anular uma eleição e convocar uma nova. Mas não pode virar pelo avesso a vontade do povo. Nem um tribunal, nem ninguém. Ainda em 2009, o governador de Tocantins também foi cassado. Mas, alegando razões técnicas, o TSE determinou nova eleição - indireta, pois se acercava o fim do mandato e seria difícil uma consulta popular. Foi uma solução correta. O novo governador foi eleito por deputados que o povo tinha escolhido. Teve legitimidade. Talvez o TSE se arrependesse das decisões anteriores. E jamais se atreveria a dar posse a um candidato derrotado em São Paulo, Minas Gerais ou Rio de Janeiro. Mas o grave, mesmo, é que a Corte não percebeu a gravidade do que fizera. Não soube articular teórica e juridicamente o que é democracia. Considero preocupante que nosso tribunal especializado em eleições, bem como o tribunal guardião da Constituição, ignorem em questão tão crucial o que é o significado essencial de democracia. Os defensores dessas sentenças poderiam alegar que o TSE cumpre a lei. Mas leis não podem violar a Constituição. Aliás, com razão, o TSE e o STF debateram - até longamente - a Lei da Ficha Limpa, para que ela respeitasse princípios constitucionais importantes. Talvez nossos juízes entendam melhor os preceitos constitucionais que respeitam os direitos individuais ou pessoais, do que os que dizem respeito aos cidadãos e à coletividade. Sua formação os orienta mais nessa direção. Por isso insisto, neste artigo, no valor da democracia e da república. Não são palavras genéricas. "Democracia" quer dizer que o poder é do povo. "República" quer dizer que a coisa pública não pode ser apropriada por interesses particulares. Basta a Constituição dizer que o Brasil é uma república, para que ações cometidas em flagrante prejuízo do bem comum - nepotismo, concessão de bens públicos em troca de corrupção ou de vantagens pessoais, uso do mandato em benefício próprio - sejam ilícitas. Igualmente, basta a Constituição afirmar o caráter democrático de nossa pólis para que seja errado dar o poder a quem perdeu as eleições. Aliás, a solução para esse problema é bastante simples. Espanta que não tenha sido tomada por nossos tribunais superiores. Casse-se o mandato de quem cometeu o crime eleitoral, com as penas que merecer, inclusive a inelegibilidade. Convoque-se nova eleição, para que o povo escolha novo governante. Dará algum trabalho. Custará dinheiro. Mas custará menos do que ter, como governante, alguém que o eleitorado rejeitou. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Roteiros para Cuba


Por Renato Janine Ribeiro Valor Econômico, 23 de abril de 2012. Não acredito que a Cúpula das Américas tenha ficado sem um texto final só porque Estados Unidos e Canadá não endossaram a posição, majoritária no continente, sobre a integração de Cuba e a pretensão argentina às Ilhas Malvinas. Afinal, o único país que se importa com as ilhas geladas é a própria Argentina; quanto à ilha tropical, faz tempo que Cuba deixou de ter peso na política do mundo. Hoje, só lhe resta o papel simbólico. Terá servido, se tanto, de pretexto para a maioria manifestar sua irritação com o descaso de Washington por agendas mais substanciais, e para os americanos agradarem aos cubanos da Flórida. Se a reunião prometesse algo importante, a bola não teria sido jogada para escanteio. Mas por que Cuba perdeu o relevo político que foi seu, na época em que vencia os sul-africanos em Angola e Fidel tentava mediar o conflito da Somália com a Etiópia, ambas "socialistas" (assim, entre aspas)? E para onde se orienta esse país? Porque, hoje, a única importância que lhe resta é a que lhe dão os Estados Unidos. Em outubro, fará meio século a crise dos mísseis, que quase levou à guerra nuclear, por conta de foguetes soviéticos com ogivas nucleares em Cuba. Por duas semanas, o futuro do planeta esteve por um fio. Hoje, essa cena parece impossível. Atualmente, conflitos locais permanecem locais. Um atirador louco em Sarajevo não enlouquecerá o mundo. Um assassínio localizado não causará dezenas de milhões de mortes. Melhoramos. Cuba aceitou o capital, desde que sem burguesia Mas o que fazer em Cuba e com Cuba? Vale a pena pensar a respeito. Primeiro, em algum momento acabará o bloqueio. Os Estados Unidos, que não perdoam o momento em que a ilha foi um Davi heroico contra o Golias mau do imperialismo, esperam a saída dos irmãos Castro. Talvez queiram ver humilhado o regime cubano. Mas percebem que, enquanto isso, Cuba abre espaço econômico para o capital europeu. Se os americanos demorarem, Cuba continuará sendo - para eles - só uma foto velha na parede. Talvez doa. Segundo, a restauração do capitalismo parece uma questão de tempo. Em que dimensão, resta discutir. Há vários roteiros possíveis. A depender de Fidel, pouco acontece. O problema não é o capital externo, que ele aceitou - mas a formação de uma burguesia cubana. Para ele, uma burguesia local significaria o fim da pureza ética e a legitimação da ganância. Essa é a questão crucial. Como as coisas escapam gradualmente de Fidel, creio que Raúl prefira um cenário chinês "com rosto humano". Manteria o poder político e policial no partido, abriria o capitalismo, inclusive nativo, tentando conter seu instinto animal - e o rosto humano estaria numa rede de proteção social maior que a chinesa. Sem isso, de nada terá valido enfrentar Golias. Mas como conter uma burguesia cubana dinâmica? Outra via pode estar na restauração do capitalismo, somada à queda do PC. Contudo, embora essa opção possa agradar a Washington, traz problemas. Talvez eu leve a sério o belo romance policial (anticomunista) de Roberto Ampuero, "Falcões da noite", em que a CIA impede um atentado contra Fidel. Porque uma instabilidade aguda numa ilha tão perto da Flórida seria um desastre para os Estados Unidos. Eles estariam para Cuba como a Alemanha Ocidental para a Oriental, após a queda do muro: um lugar rico, onde todos têm o direito legal de ir morar. Ampuero imagina 1 milhão de cubanos fugindo para Miami em dias, com muitos morrendo no mar e outros sobrecarregando a população do Estado. Os americanos têm interesse numa transição controlada. Mas controlada por quem, se não for pelo regime cubano? A questão cubana está cheia de quadraturas do círculo... O discurso público do governo americano, contrário a qualquer concessão a Havana, não expressa exatamente o que seus dirigentes pensam. Washington prefere que nenhum Castro esteja presente, mas seu pior receio é um milhão ou mais de latinos invadindo seu território. E a diáspora cubana? Ela e a comunidade judaica controlam segmentos importantes da política externa americana. Quando Clinton mandou devolver ao pai o menino cubano que foi parar em Miami, sacrificou sua sucessão (houve, também, a fraude eleitoral). A diáspora cubana torna o governo americano refém de seus interesses particulares. Mas será bom a diáspora aumentar o diálogo com Havana. Isso funcionará melhor no pós-Castro, mas também é uma condição para a própria transição. Precisa haver negociações tanto da diáspora quanto de Washington com Havana, para evitar a perda de controle. O pior para os americanos seria uma guerra civil cubana ou a debandada para o Norte. Pode ser que já estejam conversando; mas sempre fica a questão de quem pisca primeiro. Um dia alguém da nomenklatura dirá, como disse nosso ditador Figueiredo sobre os exilados brasileiros, que "lugar de cubano é em Cuba". Esse é um direito essencial dos exilados e seus descendentes. Mas restará negociar quantos, dos cubanos de Miami, poderão e quererão residir e votar na ilha. O regime aprendeu com a queda das ditaduras comunistas na Europa Oriental, mais de 20 anos atrás, e fará tudo para evitar uma reprise desse cenário. Isso inclui evitar que o dinheiro da Flórida compre as primeiras eleições que forem livres - mas também incluirá retirar do Partido e dos Comitês de Defesa da Revolução os próprios públicos que eles possuem e utilizam. Enfim, há parâmetros. O governo comunista pode desabar, o capitalismo voltar, Miami vencer as eleições. Ou o regime pode se abrir, controlando o capital. Entre os extremos, muito pode ser negociado. Quanto mais cedo, melhor. Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Apagando os barris de pólvora

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 16/4/2012

Estamos a dois anos do centenário da Primeira Guerra Mundial. Neste período, o mundo mudou a ponto de se tornar irreconhecível. Em 1910, no funeral do rei da Inglaterra, Eduardo VII, os embaixadores francês e norte-americano se incomodaram, porque as carruagens com os representantes das duas repúblicas desfilaram depois das monarquias. As outras potências eram monarquias: Rússia, Áustria-Hungria, Alemanha, Itália. Todas estas, hoje, são repúblicas. Daí a pouco, o Kaiser alemão faria guerra a seus primos que reinavam na Inglaterra e na Rússia. O condomínio monárquico iria cindir-se, na guerra mais cruel e letal até então travada.

Um dos maiores empenhos da diplomacia, no século que se sucedeu a essa tragédia lenta, foi impedir uma nova guerra suscitada por um entrevero local. Porque a Grande Guerra foi isso: um tiro em Sarajevo, na periferia da Europa, matando o herdeiro do trono austríaco, leva Viena a dar um ultimato à Sérvia, que é aliada da Rússia, que o é da França... Em semanas, se mobilizam milhões de soldados que vão matar-se por um episódio que poderia ter sido circunscrito. Circunscrever conflitos se tornou o grande êxito dos diplomatas no século XX. Não foi fácil.

Numa primeira etapa, o empenho dos britânicos e franceses - mas não dos nazistas -em evitar uma segunda guerra mundial enfraqueceu as democracias diante de Hitler. A cada passo do mega-criminoso, os ocidentais buscavam manter a paz. Mesmo quando deram um basta a suas chantagens, ainda houve franceses e ingleses que achavam absurdo "morrer por Dantzig", isto é, lutar pela Polônia contra o nazismo. Eram gatos escaldados pela chacina iniciada em Sarajevo.

Guerras locais hoje não mais ameaçam o mundo

Mas, desde 1945, com a derrota do nazismo e o advento da bomba nuclear, o cuidado de que lutas locais não se globalizem foi decisivo. Leiam jornais de 1950 e vejam o medo que tinham, ocidentais e comunistas, de uma guerra geral, que extinguiria nossa espécie. Cada lado se preparou para enfrentar o outro - às vezes, até sonhando com uma arriscada guerra preventiva. Felizmente, ela não ocorreu.

Houve todo tipo de contribuição para impedir o transbordamento do particular para o mundial. Kissinger, em seu recente "On China", obcecado que era com a ideia de equilíbrio de poder, dá sua versão de como a improvável aliança dos Estados Unidos com a China comunista teria inibido a União Soviética, detendo os projetos agressivos de Brejnev. Este certamente acharia o contrário: suas alianças no Terceiro Mundo teriam contido o imperialismo norte-americano. Mas o resultado foi este tempo melhor, em que hoje vivemos.

Porque um dos êxitos de nosso tempo é que sobraram poucos barris de pólvora de impacto global. A África vive um período difícil, com fomes e guerras calamitosas. Mas nenhum de seus conflitos corre o risco de atear fogo ao mundo. A contenda local mais perigosa continua sendo a que opõe Israel ao mundo árabe e islâmico. Mesmo assim, o Estado judeu tem relações diplomáticas com o Egito e outros países da região. Acredito que esse conflito seja o único com potencial letal para o mundo. Israel tem armas nucleares e, se atacar o Irã, não se sabe em que isso dará. É certo que haverá reações de Estados da região - o mínimo que farão será congelar suas relações com Israel, produzindo um afastamento que não trará bem a ninguém - e atentados pelo mundo inteiro.

O fator preocupante é que os Estados Unidos dificilmente se dissociarão desse eventual ataque. Em 1956, quando Israel, os ingleses e franceses invadiram o Egito, o presidente Eisenhower mandou que se retirassem. Foi o último presidente norte-americano a enfrentar Israel. Obama não fará isso. Portanto, se o Irã for atacado, as respostas se dirigirão contra a única grande potência. Falo de respostas políticas, legítimas, e terroristas, ilegítimas. Os Estados Unidos não serão derrotados, mas haverá estragos enormes, que serão pagos pelo mundo inteiro. Lembremos o que aconteceu depois de 11 de setembro de 2001. Os terroristas não criaram seu emirado islâmico. Mas tornaram o mundo um lugar pior do que era. Aumentou a insegurança. Aumentou o caráter policial dos Estados. Os direitos humanos padeceram.

No passado, a esquerda acreditou que seria bom "desmascarar" a natureza repressiva de Estados que fingiam ser democráticos enquanto oprimiam seus pobres e suas colônias. Mas essa foi uma ilusão. Alguns hoje creem nisso, entre os extremistas islâmicos (que nada têm a ver com a esquerda, quase sempre laica). Mas não é bom romper nenhum diálogo, por exemplo, o de israelenses e árabes. Não é bom um Estado minimamente democrático sacar a "máscara", porque sem liberdade só piora a vida de quem está abaixo na escala social. É um jogo sem vencedores.

Além da região em que está Israel, há hoje só mais um conflito com riscos de se globalizar - o da Índia com o Paquistão, dois países com arsenal nuclear, ainda por cima vizinhos do Afganistão. Mas, desde a guerra de 1971, já se somam quatro décadas de paz, ainda que armada. É de se esperar que as coisas continuem assim - e melhorem.

Para que comentar isso? Para celebrar. Trinta anos atrás, o mundo tinha dezenas de conflitos com potencial para extinguir a vida humana. Diplomatas e governantes reduziram isso em enorme escala. Essas mudanças em boa parte vieram de cima, de quem está no poder. Muitos de nós gostamos de criticar as elites e elogiar o povo. Aqui, o mérito foi de elites sábias, que viram o horror da guerra. Sirva-nos isso de alerta. Será bom pacificar o que resta de perigoso no mundo. Esta deveria ser uma prioridade política - e humana.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras