segunda-feira, 16 de abril de 2012

Apagando os barris de pólvora

Por Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico, 16/4/2012

Estamos a dois anos do centenário da Primeira Guerra Mundial. Neste período, o mundo mudou a ponto de se tornar irreconhecível. Em 1910, no funeral do rei da Inglaterra, Eduardo VII, os embaixadores francês e norte-americano se incomodaram, porque as carruagens com os representantes das duas repúblicas desfilaram depois das monarquias. As outras potências eram monarquias: Rússia, Áustria-Hungria, Alemanha, Itália. Todas estas, hoje, são repúblicas. Daí a pouco, o Kaiser alemão faria guerra a seus primos que reinavam na Inglaterra e na Rússia. O condomínio monárquico iria cindir-se, na guerra mais cruel e letal até então travada.

Um dos maiores empenhos da diplomacia, no século que se sucedeu a essa tragédia lenta, foi impedir uma nova guerra suscitada por um entrevero local. Porque a Grande Guerra foi isso: um tiro em Sarajevo, na periferia da Europa, matando o herdeiro do trono austríaco, leva Viena a dar um ultimato à Sérvia, que é aliada da Rússia, que o é da França... Em semanas, se mobilizam milhões de soldados que vão matar-se por um episódio que poderia ter sido circunscrito. Circunscrever conflitos se tornou o grande êxito dos diplomatas no século XX. Não foi fácil.

Numa primeira etapa, o empenho dos britânicos e franceses - mas não dos nazistas -em evitar uma segunda guerra mundial enfraqueceu as democracias diante de Hitler. A cada passo do mega-criminoso, os ocidentais buscavam manter a paz. Mesmo quando deram um basta a suas chantagens, ainda houve franceses e ingleses que achavam absurdo "morrer por Dantzig", isto é, lutar pela Polônia contra o nazismo. Eram gatos escaldados pela chacina iniciada em Sarajevo.

Guerras locais hoje não mais ameaçam o mundo

Mas, desde 1945, com a derrota do nazismo e o advento da bomba nuclear, o cuidado de que lutas locais não se globalizem foi decisivo. Leiam jornais de 1950 e vejam o medo que tinham, ocidentais e comunistas, de uma guerra geral, que extinguiria nossa espécie. Cada lado se preparou para enfrentar o outro - às vezes, até sonhando com uma arriscada guerra preventiva. Felizmente, ela não ocorreu.

Houve todo tipo de contribuição para impedir o transbordamento do particular para o mundial. Kissinger, em seu recente "On China", obcecado que era com a ideia de equilíbrio de poder, dá sua versão de como a improvável aliança dos Estados Unidos com a China comunista teria inibido a União Soviética, detendo os projetos agressivos de Brejnev. Este certamente acharia o contrário: suas alianças no Terceiro Mundo teriam contido o imperialismo norte-americano. Mas o resultado foi este tempo melhor, em que hoje vivemos.

Porque um dos êxitos de nosso tempo é que sobraram poucos barris de pólvora de impacto global. A África vive um período difícil, com fomes e guerras calamitosas. Mas nenhum de seus conflitos corre o risco de atear fogo ao mundo. A contenda local mais perigosa continua sendo a que opõe Israel ao mundo árabe e islâmico. Mesmo assim, o Estado judeu tem relações diplomáticas com o Egito e outros países da região. Acredito que esse conflito seja o único com potencial letal para o mundo. Israel tem armas nucleares e, se atacar o Irã, não se sabe em que isso dará. É certo que haverá reações de Estados da região - o mínimo que farão será congelar suas relações com Israel, produzindo um afastamento que não trará bem a ninguém - e atentados pelo mundo inteiro.

O fator preocupante é que os Estados Unidos dificilmente se dissociarão desse eventual ataque. Em 1956, quando Israel, os ingleses e franceses invadiram o Egito, o presidente Eisenhower mandou que se retirassem. Foi o último presidente norte-americano a enfrentar Israel. Obama não fará isso. Portanto, se o Irã for atacado, as respostas se dirigirão contra a única grande potência. Falo de respostas políticas, legítimas, e terroristas, ilegítimas. Os Estados Unidos não serão derrotados, mas haverá estragos enormes, que serão pagos pelo mundo inteiro. Lembremos o que aconteceu depois de 11 de setembro de 2001. Os terroristas não criaram seu emirado islâmico. Mas tornaram o mundo um lugar pior do que era. Aumentou a insegurança. Aumentou o caráter policial dos Estados. Os direitos humanos padeceram.

No passado, a esquerda acreditou que seria bom "desmascarar" a natureza repressiva de Estados que fingiam ser democráticos enquanto oprimiam seus pobres e suas colônias. Mas essa foi uma ilusão. Alguns hoje creem nisso, entre os extremistas islâmicos (que nada têm a ver com a esquerda, quase sempre laica). Mas não é bom romper nenhum diálogo, por exemplo, o de israelenses e árabes. Não é bom um Estado minimamente democrático sacar a "máscara", porque sem liberdade só piora a vida de quem está abaixo na escala social. É um jogo sem vencedores.

Além da região em que está Israel, há hoje só mais um conflito com riscos de se globalizar - o da Índia com o Paquistão, dois países com arsenal nuclear, ainda por cima vizinhos do Afganistão. Mas, desde a guerra de 1971, já se somam quatro décadas de paz, ainda que armada. É de se esperar que as coisas continuem assim - e melhorem.

Para que comentar isso? Para celebrar. Trinta anos atrás, o mundo tinha dezenas de conflitos com potencial para extinguir a vida humana. Diplomatas e governantes reduziram isso em enorme escala. Essas mudanças em boa parte vieram de cima, de quem está no poder. Muitos de nós gostamos de criticar as elites e elogiar o povo. Aqui, o mérito foi de elites sábias, que viram o horror da guerra. Sirva-nos isso de alerta. Será bom pacificar o que resta de perigoso no mundo. Esta deveria ser uma prioridade política - e humana.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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