Renato Janine Ribeiro
Nas duas últimas colunas, tratei do aborto, que é uma das grandes questões éticas de nosso tempo. Agora quero tratar da própria ética e de seus problemas nos dias que correm.
A ética (ou moral – usarei os termos como quase sinônimos) vive um grande desafio desde o século 19. Ela lida, como sempre lidou, com uma distinção entre condutas que aprovamos e desaprovamos, entre o certo e o errado. Contudo, alguns autores mudaram isso completamente. Vou lembrar Marx, na segunda metade do século 19, e Freud, na primeira metade do século 20.
As questões éticas são questões de consciência. Falamos na consciência moral de uma pessoa. Ora, Marx e Freud mostram que a consciência que temos, das coisas que fazemos, é bastante limitada.
Marx fala nos aristocratas franceses que se comovem a fundo pelas dores de princesas exiladas; mas, acrescenta ele, na hora decisiva, o que conta para eles é a renda agrária. Ou seja, há uma dimensão belíssima em que as pessoas vivem dramas de consciência, mas por trás disso tudo há interesses bastante chãos, terra-a-terra, que são os econômicos.
Assim como Marx destaca a economia, Freud mostra a importância do sexo por trás de nossas decisões. Vivemos dramas, sofremos, acusamos, defendemos; mas, abaixo disso, sem que tenhamos consciência, pulsa o inconsciente. Não espanta, então, que tanta condenação moral se dirija aos atos sexuais.
Termos como economia, sexo, inconsciente sofrem alterações ao longo dos tempos e não importa aqui a exatidão deles. O que conta é que, para Marx e Freud, a consciência é uma dimensão bastante limitada do que vivemos. Há algo mais forte que ela, que poderá estar nas relações de produção (ou na economia), para Marx, ou na vida sexual, para Freud, mas que em todos os casos escapa à consciência de quem age.
E isso coloca a ética, não em xeque, mas em questão. Como tratar de questões de consciência, se a consciência é um aspecto limitado, superficial, de nosso ser? O risco de nos enganarmos se torna enorme. Mesmo quem conhece pouco da psicanálise sabe o que é a “projeção”, isto é, o projetar no outro aquilo que na verdade é nosso: isso quer dizer que muitos dos juízos mais severos sobre a conduta alheia apenas expressam algo de nossa psique. Por exemplo, acusamos o outro de fazer exatamente o que fazemos nós mesmos.
Esse vai ser o grande problema da ética desde o século 19, crescendo cada vez mais ao longo do século 20 e do atual. Como saber se nossos julgamentos são válidos – ou só a tradução de preconceitos muito pessoais? Por isso, perguntei nas últimas colunas se a oposição ao direito de abortar (que pode incluir argumentos de certa qualidade) não ocultaria um desejo de punir as mulheres que vivem sua sexualidade. Perguntas desse tipo se tornaram necessárias, hoje, quando se enuncia algo na ética.
Ou talvez eu pudesse começar de outro ponto. A ética passa por uma revolução no século 18, em especial com Kant. O filósofo alemão enfrenta uma questão decisiva. Até sua época, a ética estava subordinada à crença em Deus e à religião. Chamava-se de “ateu” não só quem não acreditasse em Deus, mas também quem recusasse a crença no inferno, isto é, num severo castigo a quem pecasse.
Pensava-se, pelo menos no mundo cristão, que sem inferno não haveria moralidade. As pessoas seriam éticas na medida em que acreditassem, não só em Deus, mas na punição eterna pelo pecado. Sem medo, não haveria ética.
Kant levanta a questão de uma ética que não precisa de um Deus punitivo para enunciá-la. Seus preceitos podem ser encontrados pelo homem. Resumidamente, ele diz que, toda vez que eu ajo, estou proclamando que meus atos têm a validade de uma regra universal. Isso é brilhante. Rompe com a separação entre o que eu faço e o que eu digo – porque, quando faço algo, implicitamente declaro que essa ação é a correta, para todos. Cada ação minha é uma escolha ética para toda a humanidade.
Por exemplo, se respeito o sinal de trânsito, estou declarando que sempre devemos parar na luz vermelha. Inversamente, se furo o sinal vermelho, proclamo (implicitamente) que todos têm o direito de passar com a luz fechada – e portanto autorizo os outros carros a baterem no meu. Se não pago o que devo, autorizo todos (inclusive os meus devedores) a não pagarem as dívidas. Essa é talvez a melhor base para uma ética de sustentação humana, sem precisar de Deus para decretá-la ou para punir quem a viole.
A ética assim fica humana. Ninguém mais pode ter a certeza de falar em nome de Deus, ou dizer de cima para baixo o que é certo ou errado. Mas Marx e Freud trazem um problema a esse quadro. Eles põem sob suspeita minhas motivações ou razões para enunciar juízos morais. Não terei mais segurança de ser honesto, porque quando emito algum julgamento posso estar apenas dando saída a preconceitos de classe ou de sexo, a interesses econômicos, a ódios pessoais. As certezas morais ficarão fracas.
Posso decretar normas universais, mas quem garante que elas sejam, mesmo, universais? Por exemplo, se insisto num direito absoluto de propriedade, posso estar discriminando os sem-terra, os não proprietários, os pobres em geral. Sabemos que o sistema penal pune mais os crimes contra a propriedade do que os crimes contra a vida.
Às vezes, para salvar a vida, alguém ataca a propriedade alheia. Como fica isso, eticamente? Condenar o furto por necessidade pode ser um preconceito de classe social, mais do que um sólido e autêntico princípio ético.
Isso não quer dizer que a ética tenha perdido o sentido, hoje. Ao contrário: é justamente porque não tenho certeza absoluta que a pergunta ética se torna mais importante do que nunca. Não é mais lícito uma pessoa pontificar do alto de uma posição de dono da verdade: cada um precisa, hoje, ser capaz de duvidar de si próprio. E para tanto posso concluir tentando uma diferença entre moral e ética.
Distinguem-se duas posições em matéria moral. Uma tem por critério os costumes da maioria. Costumes, em latim, é “mores”. Por isso, a palavra “moral” pode se referir aos costumes ou modos que o grupo considera os melhores. Também por isso, muitos acham que a moral alude aos costumes que a sociedade valoriza. Por sua vez, a palavra “ethos”, em grego, designa “caráter”. Daí, muitos entendem que a ética remete a escolhas morais que cada um realiza, em seu caráter, independentemente da opinião da maioria.
A moral seria a do grupo (da “manada”, dirão os críticos), enquanto a ética seria da pessoa, do indivíduo que pensa por si próprio. Mas é importante lembrar que a filosofia tem dois mil e quinhentos anos de idade. Portanto, também há autores que chamam de moral o que chamamos de ética, e vice-versa. Mas para concluir é bom dizer que, mesmo que os nomes sejam trocados, a distinção é valiosa.
E por isso o desafio ético (ou moral) é sair da manada e pensar por si mesmo. Devemos ser capazes de pôr em dúvida os preconceitos que os outros nos incutiram – e também os que nós temos. Julgar é uma tarefa árdua. Não deve ser cometida sem autocrítica.
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