segunda-feira, 14 de março de 2011

O aborto como mal menor

Renato Janine Ribeiro

Disse na semana passada que não podemos discutir o aborto sem pensar nos contraceptivos, e que infelizmente uma parte dos que se opõem ao aborto o faz querendo punir a mulher que teve sexo por prazer. Considero ilegítima essa posição. Uma coisa é condenar o aborto em nome do direito do feto à vida, outra coisa é, mesmo dizendo isso, na verdade querer castigar quem saiu da velha moral convencional.

Mas isso não quer dizer que os argumentos em favor do direito de abortar sejam todos eles bons. Penso que o aborto é um mal menor. Evita talvez resultados piores, mas não deixa de ser um mal. Se na semana passada eu defendi o direito de abortar, agora quero mostrar os problemas que ele coloca.

Antes de mais nada: o direito de abortar só tem sentido para evitar situações pessoais ou sociais mais graves. Ele não passa de um paliativo, em sociedades nas quais a educação sexual é incipiente. Não deve ser um método sistemático para o homem ou a mulher controlar o número de filhos que deseja. Seu sentido é o da exceção, não o da regra.

Por isso mesmo, liberar o aborto exige que se adotem medidas reduzindo ao mínimo o recurso a ele. Precisa haver uma educação sexual de qualidade, que respeite o direito de cada pessoa a escolher, não só o número de filhos que pretende criar, mas também a vida sexual de seu agrado, sem filho nenhum ou com poucos.

E esse é o problema da Igreja Católica, na sua oposição tanto ao aborto quanto a uma educação sexual efetiva: ela acredita sinceramente (penso eu) que a solução não está aí. Todo ano, vemos isso no carnaval: o governo e as entidades de saúde, admitindo que vai haver muito sexo entre desconhecidos, procuram evitar que isso resulte em maior número de gravidezes indesejadas, em transmissão de doenças venéreas.

Mas a Igreja acha que essas precauções, em vez de diminuírem o problema, só fazem aumentá-lo. Elas incentivam a promiscuidade, com relacionamentos sem profundidade, entende a Igreja. Portanto, conclui ela, se tornarmos o sexo informal mais fácil e menos arriscado, estaremos incentivando o que já é um mal. Agravaremos o problema, em vez de reduzi-lo.

Não acho esse argumento desprezível. Na verdade, ele tem uma certa razão ao apontar, justamente, que as relações humanas – e inclusive as sexuais – se tornaram descartáveis. Cada vez mais, as pessoas se livram das outras, sem lhes dar qualquer satisfação, até por e-mail, até pela Internet.

Isso não significa, porém, que antes as coisas fossem melhores. Até algumas décadas atrás, o sexo só ocorria após muitas preliminares, e geralmente dentro de um casamento; mas disso decorria muita infelicidade, tamanha era a culpa associada a ele.

Portanto, o erro da Igreja está, mesmo agindo de boa fé, em esperar uma castidade que não existe mais em nosso tempo, como regra. Diminuiu a culpa associada ao sexo, o que é positivo; e diminuiu a responsabilidade ligada ao sexo, o que é negativo; mas tudo isso é fato. Daí que devamos lidar com a realidade e tentar que ela seja a melhor possível. Ora, o que isso acarreta?

Antes de mais nada, que a educação sexual é o nó da questão. É preciso que todos saibam, cedo, quais os cuidados a tomar com sua sexualidade. Não há outro meio de evitar a gravidez indesejada ou as doenças venéreas, isto é, antes de mais nada a Aids, já que as outras – a começar pela sífilis, que massacrava populações inteiras há menos de um século – estão dominadas já faz algum tempo.

Essa é a discussão principal. Sim, há outros debates em torno do aborto. Para defendê-lo, há o argumento de que a mulher é dona de seu corpo e faz com ele o que quer. Não é um bom argumento: nenhum direito de propriedade autoriza uma pessoa a fazer o que quiser.

Há também a tese de que o embrião não tem vida própria mas depende da mãe, e portanto abortar não seria um ato contra uma vida independente. Ora, o mundo em que vivemos é feito de relações, e é freqüente uma pessoa depender de outra para muitas coisas, até mesmo (no caso das crianças pequenas, dos doentes e dos velhos já sem energia) para viver. Nem por isso, essas pessoas perdem o direito à vida. Nem por isso, quem cuida do outro tem o direito de tirar-lhe a vida.

Fiz questão de criticar, ainda que sumariamente, dois argumentos utilizados na defesa do aborto para enfatizar o ponto principal: como disse na semana passada, não conheço pessoas que sejam “a favor do aborto”. Conheço, sim, gente que defende o direito de abortar. Mas elas também defendem cuidados com as crianças, uma educação sexual de qualidade – em suma, não são “contra a vida”. Se tem sentido suprimir a maior parte das proibições relativas ao aborto, é apenas como um mal menor.

Isso significa reconhecer que abortar não é algo positivo, não é um método de controle constante de natalidade – mas também significa reconhecer que proibi-lo causa mais problemas do que os resolve. E concluo enfatizando dois deles.

O primeiro problema é que a proibição do aborto, historicamente, veio junto com a repressão à sexualidade. A solução está, portanto, não em barrar o aborto, mas em educar para o sexo seguro e responsável. A discussão essencial não é sobre o aborto, mas sobre a sexualidade.

Não é um debate fácil. Soa bonito, quando sentimos que se trata de liberar “nossa” sexualidade. Mas basta um de nós se sentir traído, sexualmente, pela pessoa amada, para tudo isso se tingir de horror (ver coluna Amar sem ser amado). Contudo, é uma discussão necessária, porque aqui lidamos com a realidade do desejo.

E o segundo problema é apenas realista. Toda sociedade renuncia a punir certos atos que ela mesma não admira. Há várias razões para essa renúncia. Pode ser porque não há mais um consenso forte sobre o que é certo e o que é errado. Mas pode ser também porque certas proibições facilitam a chantagem. O aborto ilegal fez florescerem clínicas clandestinas, achaques policiais. Se o Estado desistir de proibir o aborto nos primeiros meses de gestação (porque só neles ele tem sentido), baixará a corrupção na polícia. Isso é positivo.

Com estas duas colunas sobre o aborto, portanto, não quis só discutir esse fenômeno que hoje desafia o direito: quis também começar uma discussão sobre a ética. As questões éticas não são apenas perguntas sobre o certo e o errado. Essas idéias mudam conforme o tempo e o meio social. Numa sociedade democrática, não há nem deve haver acordo sobre todas elas.

O que precisamos é saber quais são os princípios mínimos sobre os quais há acordo. Não toleramos o assassínio nem o roubo. Mas o aborto foi deixando de ser considerado questão de assassinato. Assim saiu da esfera pública e foi passando para a privada. Nem todos concordam com isso, porém. Muitos continuam achando que abortar é assassinar.

Porém, para concluir com uma proposta positiva, enfatizarei dois pontos. O primeiro é que o único modo de evitar um enorme número de abortos é investindo na prevenção, isto é, na educação sexual. E o segundo é reconhecer que proibir o aborto causa mais problemas do que resolve. Repito, não se aborta porque se gosta disso. Não há movimentos “a favor do aborto”. A questão não é essa, mas ter uma relação mais feliz com o corpo, com a vida. Paradoxalmente, a única maneira de reduzir o número de abortos é reconhecer, dentro de limites razoáveis e legais, um direito a ele.

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