Renato Janine Ribeiro
Discuti na semana passada se haveria uma etiqueta democrática – isto é, que em vez de insistir nos formalismos, no lugar onde se coloca o talher, atenda ao espírito de mostrar respeito ao outro.
Uma etiqueta é pedante e hierárquica quando se torna uma cilada, uma armadilha, para pegar os incautos e os incultos, para que os “finos” possam rir daqueles que bebem a lavanda destinada a molhar as mãos. E ela é democrática quando se revela uma gentileza, um modo – sem muitas regras – de deixar o outro à vontade. Essa, a diferença que conta.
A grande história a esse respeito é a do príncipe de Gales do começo do século 20, o futuro rei Eduardo VII da Inglaterra. Um dia, ele recebeu um marajá hindu, que obviamente se pôs a comer o frango com as mãos. E, quando os cortesãos começavam a rir, o próprio príncipe agarrou a ave com as mãos e também jogou os ossos no chão. O segredo é esse, você nunca humilha o outro, muito ao contrário.
Mas hoje quero falar, apesar de tudo, do “pulo de gato” que há na etiqueta. Começo com uma história que, segundo o historiador Huizinga, ocorreu na Holanda alguns anos depois de 1400. Pode ter acontecido várias vezes.
As ruas eram muito estreitas; numa esquina apertada, dois burgueses se encontram e cada um oferece a passagem ao outro. É um gesto de educação. Mas eles insistem, e gastam pelo menos quinze minutos cada um instando o outro a passar primeiro.
Do ponto de vista racional ou pragmático, é um delírio: seria mais rápido um deles passar, e pronto. Nós insistimos um pouco, e depois tanto faz. Contudo, num momento em que a Europa substitui a relativa grosseria da Idade Média pelos (bons) modos, a insistência exagerada até se compreende. Mas a questão que quero colocar é: quando um cede a vez ao outro, quem se honra mais? Quem está honrando quem?
Vamos a um exemplo mais perto de nós. É educado o homem abrir a porta do carro para a mulher, dar-lhe a passagem, a prioridade. Ele, assim, respeita-a. Ela, assim, é respeitada. Mas, quando esses gestos se praticam, quem é o mais importante: quem honra ou quem é honrado?
Não é fácil responder. Tomemos o presidente Mitterrand, que governou a França de 1981 a 1995. Ele, apesar de socialista, a certa altura mandou que nos jantares o servissem antes, até mesmo, das mulheres. Então, a exemplo dos reis de França, ele se proclamava o mais importante. Mas, se tivesse mandado servir primeiro as mulheres, ficaria ele menos importante?
Recorro a um último exemplo. Sou professor universitário e, portanto, estou acostumado a participar de bancas de teses. Há uma precedência na ordem em que os membros das bancas interrogam o candidato. Começa-se pelos examinadores convidados, de fora da Faculdade, e depois se passa aos que são de dentro. Às vezes, as mulheres falam antes dos homens. Tudo isso é gentileza: você prioriza o hóspede. Dá preferência às mulheres. Mas essa gentileza não será envenenada?
Porque a história das bancas remete aos tribunais. Nos tribunais militares, era regra a votação das sentenças começar, não pelo oficial de mais alta patente, mas pelo de mais baixa. Era uma gentileza. Era também um cuidado: se o capitão votasse depois do general, talvez ele se sentisse constrangido a repetir o voto do seu superior.
Mas, vejam, a idéia de gentileza envolve algo meio escondido, que é: quem cede a vez é porque é dono da vez. É porque é o mais importante. E, cedendo a vez, ele apenas reforça sua superioridade.
Por isso, nas bancas há um certo veneno: fala primeiro quem entende menos. Gentileza: porque assim ele não terá que repetir o que a prata-da-casa vai dizer, no fim. Veneno: porque assim ele pode errar à vontade, até com menos público, que vai chegando mais perto de terminar o ritual.
Dá então para entender por que tantas militantes feministas recusaram, numa certa época, as gentilezas masculinas, achando que eram apenas a parte emersa do iceberg machista? Quem dá honra é porque tem honra de sobra. Quem recebe a honra é, talvez, porque não a tenha.
Mas essa também não é uma resposta definitiva. Se fosse, Mitterrand comeria sempre por último!! Por sinal, se ele fosse mais esperto, faria mesmo isso. Há um jogo constante nessas regras. Aliás, há o jogo justamente porque as boas maneiras não são meras regras, são um modo de viver.
A etiqueta, sim, se resume em regras. Mas os autênticos bons modos, os do príncipe inglês que suja as mãos nos ossos de galinha, para não deixar o hindu perceber que cometeu uma gafe, sabem ajustar as regras ao respeito. Ou seja, o respeito é o fim, as regras são meros meios.
Só que, com isso, não temos muita certeza do que está acontecendo. Só fica claro o seguinte: quem faz questão de passar primeiro só mostra que, realmente, não tem modos. Agora, se você cede a vez ou se recebe a prioridade do outro, quase que tanto faz. O importante é que não ignore seu semelhante, que não o agrida ou o humilhe. Porque quem humilha, na verdade, mostra sua falta de educação.
Então, a diferença não está tanto – hoje – entre quem entra primeiro ou depois no elevador, no carro, na sala. Está em isso ser negociado, em haver um diálogo. Hoje importa relativamente pouco a ordem de precedência, pela qual pessoas já se mataram em outras épocas. O que importa é que isso resulte de uma troca de sinais, sejam palavras ou olhares.
E assim as boas maneiras podem ser, ao mesmo tempo que um sinal de respeito (a etiqueta democrática) ou de desrespeito (a etiqueta aristocrática), um campo ambíguo de conflito ou pelo menos de encontro social.
As pessoas mais superficiais pensam que, entrando na frente, ganham. As mais refinadas sabem que, insistindo em dar vantagem ao outro, na verdade elas ganham – talvez mais que ele. Mas nem todos o percebem, e talvez faça parte da vida social essa série de ambigüidades, tanto a concorrência pela prioridade, quanto a mais discreta e secreta noção de que só dá honra quem a tem de sobra, quem a tem “para dar e vender”. Honra não se vende mas, quando se tem, se dá.
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