Renato Janine Ribeiro
Tempos atrás, escrevi um livrinho chamado A etiqueta no Antigo Regime, que já teve três edições [1]. Estava redigindo minha tese e notei que tinha reunido todo um material sobre as boas maneiras, que não ia usar no trabalho, por isso achei que valeria a pena publicá-lo em separado, na coleção “Tudo é História”, criada por Caio Graco Prado na editora Brasiliense.
É um livro de história, mas é claro que o título me levou a receber alguns convites curiosos:
A
Por exemplo, o filósofo Erasmo escreve um livro inteiro, quinhentos anos atrás, para explicar que não devemos cuspir à mesa nem na mesa, nem beber a sopa direto da sopeira, nem colocar as botas em cima da mesa... Soaria estranho fazer isso hoje, mas houve um tempo em que os nobres
Portanto, a
A segunda idéia é a da hierarquia entre as pessoas. Os bons modos podem ser também um meio de reforçar a desigualdade social. Trato de maneira diferente meu superior e meu inferior.
A rainha Maria Antonieta, da França, era excelente nisso. Conseguia, encontrando um grupo de pessoas, saudar cada uma de um jeito diferente – digamos, tocava com o dedo o chapéu para cum
Sua camareira, Mme. Campan, que escreveu Memórias que foram um certo sucesso de livraria no século 19, considerava essa a maior qualidade da rainha...
A etiqueta teve, então, em sociedades altamente hierarquizadas, dois sentidos. O
Tomemos um manual de etiqueta. Quando eu era criança, li Marcelino de Carvalho, que era o “papa da etiqueta”. Naquela época, existia em São Paulo um personagem chamado “quatrocentão”. A cidade completou quatrocentos anos em 1954 e nas décadas seguintes os descendentes dos
Marcelino de Carvalho fazia a etiqueta dos quatrocentões. Lembro que estranhei muito as regras que ele ditava: por exemplo, o luto, que devia ser utilizado por um longo tempo. Mas ninguém, que eu conhecia, usava mais roupa
E o mais estranho eram as regras para como tratar um
Mas digo tudo isso para quê? É que me perguntaram se etiqueta tem a ver com ética. De fato, alguns a chamam de “small morals”, pequena ética, donde etiqueta. É possível. Mas em francês, pelo menos, a
E daí veio a idéia de que etiqueta é um rótulo. É um modo de rotular as pessoas. Por exemplo, num lugar público eu avisto uma pessoa que não conheço. Mas, pelo modo como a tratam, ou então pelo modo como ela se exibe, tenho noção de sua importância. É o seu rótulo. E por isso vou tratá-la com atenção maior ou menor.
A etiqueta tem a ver então com as aparências. Dá para entender por que tanta gente se veste com cuidado, apura os gestos, enfim, joga com as aparências para im
No Brasil, ficou famosa uma novela do final dos anos 60 – do momento exato em que a ditadura dava o golpe conhecido como “Ato 5” – que foi “Beto Rockefeller”, um pobre que freqüentava a alta sociedade paulista e se fazia passar por rico. A personagem foi tão forte que ainda hoje o ator que a fez, Luis Gustavo, é conhecido por esse papel – e embora ninguém, com menos de quarenta anos, tenha visto essa novela. Eram as aparências que levavam os outros a aceitá-lo como membro da “alta”.
Essa seria a etiqueta, digamos, de direita: dou mais respeito a quem usa terno (e por isso as igrejas evangélicas, dando aos mais pobres noção do seu
Haverá uma etiqueta “de esquerda”? O termo pode soar exagerado, mas se pensarmos na outra idéia de etiqueta – não a da hierarquia, mas a do respeito –, faz sentido dizer que haja uma etiqueta democrática. É a de quem recusa ser superior ao outro. Cedo a vez a ele. Peço licença, se quero fumar na frente de um estranho, e aceito a negativa.
Conhecemos a imagem do militante de esquerda sujo, fumando o tempo todo, sem bons modos. Mas ela é uma mentira e uma raridade. A maior parte dos militantes que conheço são educados, respeitosos. Podem não conhecer certas regras (a colocação das facas), mas essa só é a essência da etiqueta conservadora, “de direita”, hierárquica. Há, sim, uma etiqueta democrática – e ela não está nas regras, mas num valor básico: mostrar ao outro que temos respeito por ele, que não nos sentimos superiores, que acreditamos no valor e na igualdade de todos. Quando cedo a vez ao outro, é isso o que estou dizendo: uma lição de igualdade.
Só que há um “pulo do gato” em toda etiqueta, mas disso vou falar na semana que vem.
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