Renato Janine Ribeiro
Temos falado de ética. Mas a ética encontra um grande problema em nosso tempo: é que condutas que eu acho honestas, corretas, certas, são consideradas por muitas outras pessoas como desonestas, más, erradas. Falei do aborto em semanas passadas, mas isso vale para muita coisa, a começar pelo que diz respeito ao amor e ao sexo.
Muitas pessoas, corretíssimas em tudo o mais, passam em algum momento da vida por uma ruptura e recomeço de relação. Elas estão casadas e, de repente, se apaixonam. Vivem, por um tempo, na mentira e no engano. Depois, se tiverem sorte, iniciam uma nova relação.
Serão fiéis e quererão que o novo companheiro também seja fiel. Isto é, pedirão do novo relacionamento o que negaram no anterior. Quer isso dizer que são hipócritas? Não necessariamente. Se tiverem um mínimo de dignidade, sentirão que estiveram numa situação difícil, sofrerão, tentarão reduzir os danos que causaram ao antigo parceiro.
Pois é disso que se trata: os ideais, hoje, nem sempre funcionam. Há rachas na sociedade, e um dos principais deles diz respeito ao sexo. As atitudes em relação à sexualidade vão da promiscuidade irresponsável, passando pela busca do prazer mas com responsabilidade, e pelo amor sexuado entre pessoas que não precisam estar casadas mas são fiéis uma à outra, até a castidade dos solteiros e mesmo a aversão ao sexo. Não dispomos de consenso a este respeito, e cada um destes grupos se acha ético no que faz. Como, então, ficamos?
Numa sociedade complexa como a nossa, o acordo sobre os valores se torna problemático. Vá lá que isso sempre aconteceu, e o que para uns é crime – por exemplo, a invasão de uma fazenda – para outros é legítimo direito de lutar pela vida e mesmo pela sobrevivência.
Mas numa sociedade democrática as diferenças entre os valores se tornam maiores, e com isso se mostra impossível chegarmos a consensos morais. Por isso, quando pedimos ética na política, ou na sociedade, às vezes estamos pedindo o impossível, ou aquilo que nós mesmos não queremos, porque há o risco de junto com a honestidade dos políticos – por exemplo – vir o moralismo sexual, ou sei lá o quê.
Daí, uma idéia que cresce nos últimos anos, e que é a da redução de danos. Não vou tratar dela tecnicamente. O que importa é que se renuncia à pretensão de impor plenamente determinados valores morais, e em vez disso se procura apenas diminuir o desastre. Penso que o direito ao aborto faz parte desse pacote. Já comentei que ninguém é “a favor” do aborto, mas apenas a favor do direito de que as mulheres, em certos casos, decidam se querem ou não abortar; e, mesmo entre as que abortam, pouquíssimas o fazem sem dramas de consciência ou sem sofrimento psíquico.
Mas há outros exemplos. A droga é um caso típico de redução de danos. Por que tantas pessoas, que não se drogam nem têm simpatia alguma por drogas, querem descriminalizar o usuário? Vejamos suas razões.
A primeira é que a repressão à droga é quase inviável. Tornou-se enorme o número de pessoas que as utilizam. A esmagadora maioria delas, além disso, não causa mal nenhum com seu hábito. Pouquíssimos usuários da maconha produzem danos à sociedade. Portanto, a pena não tem nada em comum com o suposto delito.
Uma segunda razão é mais grave: é que certas proibições levam à corrupção no aparelho policial. Por isso, fica pior reprimir do que tolerar. Toda sociedade assim admite, na prática, certas condutas que na teoria ela desaprova. E a principal razão para isso é que o custo de punir se mostra alto demais.
Vejam-se os Estados Unidos. Eles têm cerca de um por cento de sua população na cadeia. Essa proporção é de longe a mais elevada em qualquer país democrático. Além disso, como a repartição dos presidiários varia em função da classe social, da cor da pele e da idade, isso significa que mais da metade dos jovens negros do sexo masculino passou ou passará pela prisão.
O custo social disso se revela assustador. Uma guerra civil latente pulsa nos Estados Unidos. Não seria melhor encontrar penas alternativas à prisão para boa parte deles ou, mesmo, perguntar se certos crimes não deveriam sair do código? Porque na verdade não é só na polícia que ocorre, então, a corrupção. É na sociedade como um todo.
A corrupção deixa então de ser apenas o furto de dinheiro público, como hoje ela é entendida. A corrupção volta a ser o que era no passado, isto é, a degradação de todas as relações. O que é uma família na qual provavelmente metade dos homens esteve, está ou estará na cadeia em algum momento? Que educação assim se dá aos filhos?
Reduzir os danos é, então, fazer um cálculo: em certos casos, punir o crime com rigor é a pior solução. Mas isso não quer dizer que devamos fazer, simplesmente, vista grossa ao delito. O melhor é retirá-lo do código penal, ou substituir o tipo de pena. Devemos parar de pensar só em cadeia como castigo.
Mas, como aqui estamos falando em ética, e não em lei penal, precisamos ir mais longe. O que faz que cada vez mais pessoas que estudam o crime pensem em punir menos, em vez de punir mais? Há um velho ditado, que é “Fiat lex (alguns dizem: Fiat justitia), pereat mundus”. Em português, seria “faça-se a lei (ou a justiça), ainda que pereça o mundo”. É um adágio irônico, que mostra que a aplicação rigorosa demais das leis pode gerar problemas vultosos.
Ou seja, em muitos casos pode ser tão nocivo exagerar no cumprimento da lei quanto desobedecer a ela. Mas a razão dos que defendem uma redução dos danos, em vez da observância estrita da lei, é que não podemos ter um ideal de condutas perfeitas. Não só porque os humanos não são perfeitos mas, sobretudo, porque os modelos de perfeição são bastante duvidosos.
O que, para terminar, significa que numa sociedade democrática, dividida em grupos que sustentam valores diferentes mas coexistem em certa paz, não é possível (nem seria bom) ter um ideal muito estrito de bem. Aquilo que eu chamo de bem, de ideal ou de perfeição está longe de ter as mesmas qualidades para o outro.
No fundo, se eu decido reduzir os danos, em vez de impor ao outro os meus valores morais, não é por preguiça nem por complacência. É porque percebo que não dá para ter uma única visão de mundo. E neste sentido a redução de danos deixa de ser, apenas, a busca de um mal menor. Deixa de ser a renúncia ao bem. Torna-se, isso sim, a renúncia ao bem propriedade privada minha, à minha pretensão de ser dono da verdade. E é bom para a sociedade que as pessoas não queiram ter, sozinhas, toda a razão.
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